...Peço licença ao truliso
Dos olbos das periférias
Dos chuás das pontilíneas
Dos chomotós das matérias
Das grotas dos veluais
Das mimosas deletérias.
Viva o poeta paraibano Zé Limeira!
E o grande Luiz Gonzaga!
Os versos acima, de uma sextilha, são de Zé Limeira, chamado de surrealista por seu biógrafo, Orlando Tejo.
Lembro Limeira, lembro o Rei do Baião (foto acima, tomando cerveja comigo num ano dos 70).
Certa vez perguntei a Luiz Gonzaga se conhecera ou ouvira falar de Zé Limeira.
Disse que não, nem uma coisa nem outra.
Então aproveitei para lhe falar do mote limeiriano No Dia Q´eu me Zangar/Mato Você de Carinho.
Ele adorou e disse:
- Dá baião.
Não deu, mas deu um gostoso arrasta-pé feito por ele e por seu parceiro mais frequente, João Silva.
Além de música o mote deu título a seu último LP, lançado em 1989.
Bem, eu mesmo não ia dizer nada hoje sobre Luiz Gonzaga.
Já falei e escrevi tanto a seu respeito.
Enfim, eu estava quieto, quietinho no meu canto, só uburuservando a vida, quando chegou email com mais um texto brilhante e inteligente do mais observador e ferino escrevinhador do Brasil: José Nêumanne Pinto, dizendo ora, ora, por que cargas d´águas o Rei do Baião não foi lembrado na Virada Cultural que se inicia logo mais na hora do Angelus, isto é, às 18?
Nêumanne mostrou num desabafo a sua profunda decepção e irritação.
Impossível não aplaudir Nêumanne.
Aliás, faço minhas as palavras dele (leia abaixo; texto, publicado originalmente à página D7 do Caderno 2+Música do jornal O Estado de S.Paulo, edição de hoje).
Intrigado, também me pergunto:
- Por que esqueceram de programar algo para lembrar o Rei do Baião na Virada Cultural, hein?
Essa incrível falta de sensibilidade e respeito por um dos gênios da música brasileira merece uma explicação pública da parte dos organizadores da Virada.
Será que o caso tem a ver com discriminação?
Uma vez, pelo fato de ser negro e nordestino, Gonzaga foi barrado à entrada da rádio Gazeta.
Mas a sua obra e importância do conhecimento de todo mundo.
Já andei batendo pernas mundo a fora em busca de músicas do Rei do Baião noutras línguas.
E achei em França, Portugal, Argentina...
Gravaram músicas suas a portuguesinha Carmen Miranda, em Hollywood; Peeg Lee, Dizzy Gislepie - criador do bebop, junto com Charles Parker - e outros e outros na Itália, Alemanha e e até na Ilha de Páscoa na língua lá deles, o rapa nui.
Nos anos 50 foi aprovada uma lei no Congresso argentino para impedir o baião por lá.
Motivo?
Os argentinos só queriam ouvir baião.
Agora querem nos impedir de ouvir a sua obra.
É danado isso, não é?
O texto-desabafo de José Nêumanne foi publicado hoje no Caderno 2+Música do jornal O Estado de S.Paulo.
Nêumanne também aproveitou os microfones da rádio Jovem Pan para protestar contra a insensibilidade dos programadores da Virada Cultural.
Leiam seu texto, este:l
"Os organizadores da Virada Cultural deram a maior bola fora da história da promoção ao se esquecerem da efeméride de música brasileira mais importante do ano: o centenário de Luiz Gonzaga, seu Lua, o Rei do Baião, nascido em Exu, no sertão do Araripe, Pernambuco.
Gonzagão não era apenas o compositor de clássicos do cancioneiro popular, como Asa Branca, só para citar o exemplo do maior de todos. Nem somente o intérprete singular que transportou o sertão nordestino para a programação do rádio e da televisão no Sudeste Maravilha. Sua relevância transcende a essas constatações por dois motivos.
O primeiro deles é que fundou a música regional nordestina. No dia em que resolveu o problema prático do transporte de seus acompanhantes no próprio automóvel para economizar o aluguel de um ônibus reduzindo o instrumental à sanfona que ele tocava, ao zabumba que dava o ritmo e à ajuda de um triângulo, criou um gênero, uma modalidade. E agendou no calendário nacional de festas populares a tradição de festejar as noites de São João e São Pedro com ritmos dos ermos sertanejos, tais como o xaxado dos cangaceiros de Lampião, o forró dançado nos terreiros de terra batida, o rojão do duplo sentido e o baião, que ele inventou com a cumplicidade de Humberto Teixeira, outro gênio esquecido. Se o filho do sanfoneiro Januário e de dona Santana não tivesse descoberto que o triângulo de metal percutido por uma vareta usado pelos vendedores de cavaco chinês na rua complementava a pegada do zabumba, Campina Grande, Caruaru e hoje praticamente o Nordeste inteiro não teriam adicionado a suas fontes de renda os festejos juninos.
Sem ele, sanfoneiros e cantores que se apresentam em arraiais juninos não ganhariam a vida com o suor de sua arte. Os sanfoneiros Dominguinhos e Flávio José, os intérpretes Jackson do Pandeiro, Genival Lacerda, Marinês, Elba Ramalho, Santana Cantador e Alcimar Monteiro e compositores como Antônio Barros e Cecéu, Maciel Filho, Onildo Almeida e Patativa do Assaré são filhos profissionais de Gonzagão.
A importância de Gonzaga no show business brasileiro só se compara com a da geração de sambistas da Época de Ouro dos anos 30 do século passado – Noel Rosa, Assis Valente, Ary Barroso, Cartola e Sinhô, entre tantos outros – inventaram o maior espetáculo do mundo, o samba carioca. E, um decênio depois, o sucesso do baião transportou os ecos da caatinga para os estúdios de emissoras de rádio e televisão e gravadoras.
Este sucesso lhe deu majestade e o tornou o grande símbolo da diáspora nordestina. Todas as gerações de autores e intérpretes originários do Nordeste – Manezinho Araújo, Zé Ramalho, Fagner, Alceu Valença, Geraldinho Azevedo, Caetano Veloso e Gilberto Gil, só para citar os exemplos mais óbvios – beberam na obra dele para produzirem a deles.
É, pois, signo de burrice e insensibilidade privar São Paulo, a maior cidade nordestina do mundo, de lembrar a voz que trouxe os aboios das quebradas para as esquinas de concreto. Uma virada sem Gonzaga não é paulistana de verdade".