O Carioca João do Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos
Coelho Barreto, foi o inventor da reportagem no Brasil. De importância
fundamental a sua presença no jornalismo Tupiniquim. Baixinho, gordo, preto,
gay e de uma inteligência invejável. Nasceu em 1881 e morreu dois meses antes
de completar 40 anos, em 1921. A "entrevista" que segue, mistura realidade com
ficção. Tomara que gostem.
Para
Oswaldo Mendes, craque do teatro e do jornalismo, último editor do
jornal Última Hora
João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto…
Não se perca pelo nome
Meu colega jornalista
Meu colega de bancada
Meu colega de revista
Antes dele não havia
Reportagem de verdade
Entrevista com o povo
Falando de liberdade
Ele foi um bam, bam, bam
Foi um cara especial
Inventor da reportagem
Pra revista e pra jornal
Foi ele quem botou luz
Onde tinha escuridão
A imprensa deve a ele
Muito mais que gratidão
A história de João do Rio é uma história incrível.
É a história de um homem que profissionalizou o jornalismo, que inventou a
reportagem. Foi o cara que pôs no jornal a cara do povo, a cara das ruas, da
vida fora do aconchego capitalista.
Era um cara destemido. Subia e descia morros à procura de histórias.
Todos pensam que ele morreu aos 39 anos de idade. De colapso num táxi, enquanto
se dirigia a um teatro num começo de noite.
Eu conheci esse João em 1975.
Eu o procurava havia muito tempo. E falando com um aqui e outro ali, descobri
que vivia num bairro de Salvador. Discretamente, num casarão muito bonito.
Daqueles antigões. Bem conservado, com cheiro de passado e de histórias. Nada
lhe faltava.
Era tranquilo até no arrastar das pernas.
Cheguei por volta das 10 horas de um sábado primaveril, sem avisar. Bati à
porta, e um senhor de poucos cabelos, rosto liso, sem barba, atendeu-me com um
sorriso. “Quem é você?”, perguntou baixando delicadamente os óculos banhados a
ouro, ou de ouro, não sei. Bonitos.
Identifiquei-me e ele, generosamente, convidou-me a entrar.
“Como você chegou até aqui?”, perguntou, olhando-me fixamente. “Quem me deu seu
endereço foi Olegna”.
E antes de eu dar mais detalhes, ele balançou a cabeça dizendo de modo até
engraçado: “Ah, o Olegna, amigo do Caymmi. Que linguarudo! Mas enfim, o que traz
você até mim?”.
Fui direto: “Uma entrevista para o jornal O Trabuco. Gostaria que o senhor
respondesse algumas perguntas sobre a sua trajetória na imprensa”.
Ele fez hmmm... E perguntou: “O que é que você sabe a meu respeito?”.
“A seu respeito, seu João, eu sei o que a história conta. Sei da sua trajetória,
da sua presença forte no jornalismo brasileiro. Sei de seus livros. Seus livros
me encantam. Seus livros me ensinam. Pra mim, o senhor é um grande professor de
jornalismo. Um mestre”.
Ele riu com carinho, acolhendo-me nos pensamentos.
Antes de me levar à sua biblioteca, pediu licença para abrir as janelas. “Está
meio abafado”, comentou.
Em seguida elogiou-me pela fala franca, puxou uma cadeira, duas e nos sentamos
um à frente do outro.
Depois de um gostoso cafezinho trazido por uma jovem de nome Ana, Aninha, contou
enquanto levava a xícara à boca: “Essa menina é filha de uma grande amiga minha,
a Cilene. Linda, não é?”.
Num assobio discreto fez que viesse ao nosso encontro uma cachorrinha catita.
“Essa belezinha, Lilica”, disse ele, “ganhei de um amigo que chegou há pouco de
uma viagem à Inglaterra”.
O amigo em referência era o historiador e crítico literário Nelson Werneck
Sodré.
“O Nelson tem dedicado a vida a estudar o nosso País. É dele o livro A História
da Imprensa no Brasil. Se não leu, leia”, disse.
Separava-nos uma mesa de madeira de lei. Muito bem esculpida.
O vento malemolente entrava pelas janelas. Lá fora um silêncio gostoso, quebrado
apenas pelo pipilar de sabiás, curiós e bem-te-vis.
Um paraíso.
Comecei:
Eu − Antes de mais nada, gostaria de saber se o senhor realmente nasceu no
dia 5 de agosto de 1881.
Ele − Sim. Nasci nesse dia, mês e ano, no Rio de Janeiro. Meu pai, Alfredo, era
professor de Matemática, de 23 anos, e minha mãe, Florência, de 15 anos
incompletos, aluna dele. Tive um irmão, Bernardo, que morreu cedo. Meu pai
queria que eu fosse professor. Professor de qualquer coisa e aí enveredei pelos
caminhos do Jornalismo. Eu tinha uns 16, 17 anos. O primeiro jornal que me abriu
as portas foi Cidade do Rio, do abolicionista José do Patrocínio. Amigo do meu
pai. Ele olhou pra mim e foi logo dizendo: “Faça um texto sobre os negros”.
Deu-me prazo. Eu tinha dois dias para fazer aquilo. Fui à rua e no mesmo dia
entreguei o texto.
Eu − E nesse texto já aparecia o nome João do Rio?
Ele − Não, usei outro pseudônimo. Não lembro qual. Tive vários. Joe, Claude,
Caran D’ache. João do Rio nasceu nas páginas da Gazeta de Notícias.
Eu − Quanto tempo o senhor ficou no jornal do Patrocínio?
Ele − Err… Pouco tempo.
Eu – O senhor começou fazendo textos diferentes dos que se faziam na época...
Ele − Sim, claro. Todo mundo ficava na redação escrevendo coisas. Era assim com
Machado (de Assis), por exemplo. Eu gostava dele, mas ele era muito fechado. E
com Alphonsus de Guimarães e tantos… Eu sempre me senti muito à vontade nas
ruas. Ia pra casa só pra dormir. Mas escrevia nas praças, nos cafés, nos trens.
Em todo canto.
Eu − E o Lima Barreto?
Ele − Ah, o Lima era complicado, mas muito talentoso… Era da minha cor. E pobre.
A gente não se entendia. Quer dizer, ele não me entendia. Ele dizia umas coisas
horrorosas a meu respeito. Não sei por quê. Até me fez personagem de um dos seus
livros, o primeiro: Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Não liguei. Pra
falar a verdade, eu gostava do Lima. Mas ele era complexado, coitado. Chegou a
ser internado com doença de doido. Era mais velho do que eu uns três meses.
Morreu em 1922. Assis, não é? Pois bem, seu Assis, pela primeira vez vou dizer
uma coisa: não participei, mas assisti aos três dias da Semana de Arte Moderna.
Ninguém me reconheceu. Achei foi bom.
Eu − Mas como ninguém o reconheceu, se o senhor era um rosto tão conhecido?
Ele − Parabéns, meu filho. Você é atento ao que ouve. Bem, eu estava meio
escondido. Entende? Num canto sem luz. Eu e uma amiga minha.
Eu − O que o senhor achou daquela Semana?
Ele − Interessante, muito interessante. Gostei muito da apresentação do
Villa-Lobos com aqueles pezões branquelos à mostra, mas gostei mais foi das
vaias que ganhou. O Mário, o Oswald, o Menotti, muito bons. Bons mesmo! E, à
parte disso, sempre gostei de São Paulo. Bela cidade.
Eu − E o senhor escreveu alguma coisa a respeito?
Ele − Não, não. Estava ali como espectador. Eu já havia abandonado a carreira de
jornalista.
Eu − O senhor mudou a forma de fazer jornal, indo às ruas em busca de notícias.
Seguindo seus passos, apareceu uma menina chamada Eugênia Brandão…
Ele − Ah… Eu amava a Geninha. Uma mineirinha muito meiga, muito inteligente, sem
preconceito nenhum. Estava em todas. E gostava de um choppinho… Foi com ela que
acompanhei a Semana de 22. Ela foi a segunda mulher a escrever num jornal. A
primeira foi a maranhense Maria Firmina dos Reis. Negra.
Eu − O senhor foi a primeira pessoa a defender o voto feminino, o divórcio e os
direitos do trabalhador.
Ele − Sim, meu filho. A Eugênia compartilhava dos meus pensamentos. Mas ela
casou-se e foi cuidar dos filhos. Teve oito. E deixou a profissão.
Eu − No seu tempo existiam muitos jornais e revistas. Quem fazia as melhores
charges, caricaturas?
Ele − O Ângelo Agostini, K. Lixto, Belmonte, J.Carlos e Nássara eram muito bons
nas ilustrações que faziam. A Rian, também. Rian era o pseudônimo de Nair de
Teffé, esposa do marechal presidente Hermes da Fonseca. Éramos amigos.
Eu − E os mais novos?
Ele − A charge e tudo mais evoluíram com Ziraldo, Fortuna, Millôr, Claudius,
Elifas Andreato, Miécio Caffé, Jaguar, Jô Oliveira, Henfil… Esses caras.
Eu − O senhor já ouviu falar dos irmãos Caruso (Chico e Paulo), de Angeli,
Alcyr, Fausto?
Ele − O Fausto é ótimo.
Eu − De quem eram os bons textos?
Ele − Viriato Correia, Carlos Lacerda, Samuel Wainer, Tinhorão, Nelson
Rodrigues, Moacir Assunção, Kotscho, Castelinho, Moacir Werneck, José Antonio
Severo, José Maria dos Santos, Milton Coelho da Graça... Todo mundo diz que foi
o Nelson quem criou a expressão “idiotas da objetividade”. Não, não foi. O autor
dessa graça foi Werneck.
Eu − O que quer dizer idiotas da objetividade?
Ele − Era como pejorativamente chamavam o redator ou copydesk, na expressão
norte-americana. É um texto jornalístico sem alma, digamos assim. O repórter ia
à rua, trazia a notícia e o copydesk fazia o que queria com essa notícia.
Padronizava-a. É assim até hoje.
Eu − E a nova geração de repórteres?
Ele − Dia desses o Audálio (Dantas) veio me visitar acompanhado de uns jovens
chamados Zé Hamilton, Wilson Baroncelli, Eduardo Ribeiro e Marco Zanfra, os dois
últimos ainda na faculdade de Jornalismo. Impressionei-me com a história do Zé
Hamilton. Ele foi cobrir a guerra no Vietnã. Corajoso. O primeiro a cobrir
guerra no Brasil foi Euclides (da Cunha). O trabalho do Euclides foi muito bom.
Tem também umas meninas muito boas surgindo na reportagem, como Cremilda Medina,
Lu Fernandes, Dora Kramer, Miriam Leitão.
Eu − Jornais e revistas começaram a publicar fotografias no começo do século,
não foi?
Ele − A Revista Ilustrada foi a primeira a fazer isso. Mas fotos jornalísticas,
propriamente ditas, começaram a ser publicadas na metade do século. Eu gostava
muito da diagramação dos jornais Diário da Noite, Correio da Manhã e Última
Hora. Esse jornal inovou, fez uma revolução danada. Foi lançado, eu lembro, em
junho de 1951, no Maracanã. Gratuitamente. O Samuel (Wainer) chegou a me chamar
pra com ele fundar esse jornal, mas não topei. Por trás do Samuel, tinha o
Getulio (Vargas) e eu não gostava do Getulio. De mais a mais, eu queria era
sossego.
Eu − Foi Getulio quem viabilizou alguns direitos que o senhor defendia, como o
voto feminino, direitos trabalhistas…
Ele − Bom, essa é outra história. Se não fosse ele, seria outro.
Eu − Até onde percebo, Samuel inspirou-se no senhor pra fazer jornalismo. Ele
instruiu os repórteres a fazerem reportagens com um toque de “romance” e de
“humanismo”, certo?
Ele − Você é muito observador. Parabéns! Em toda boa reportagem há um quê de
literatura. O Samuel começou na Diretrizes, uma revista provocadora. De
esquerda, como se diz.
Eu − O Getulio chegou ao poder através de um golpe. E dentro desse golpe, ele
deu outro. Ditadura, Estado Novo. Em 37.
Ele − Tenho horror a ditaduras.
Eu − O que o senhor sentiu ao saber do suicídio de Getulio?
Ele − Nada, aquela foi a maneira que ele encontrou para se livrar dele mesmo e
de seu algoz, o Lacerda. Mas não posso negar que há uma grande carga de
dramaticidade na carta de despedida deixada pelo finado: “Deixo a vida para
entrar na história...”. Era vaidoso, não era?
Eu − Lacerda e Wainer eram amigos...
Ele − Eram, você disse bem, mas o Lacerda contribuiu na desgraça do Samuel. Foi
ele quem provocou a primeira CPI no Senado. Queria provar que Getulio e o Banco
do Brasil deram dinheiro ao Samuel pra fundar o Última Hora. Não deu em nada.
Foi em 1953. Lacerda chegou até a sugerir que fosse aberto um processo de
impeachment contra Getulio. Também não deu em nada.
Eu − Quanta história...
Ele − É a idade, meu filho. Com o tempo a gente acumula muita, muita coisa. Você
já ouviu falar em Pagu?
Eu − Já. Pagu foi uma libertária. Foi presa mais de 20 vezes. Os homens de
Getulio adoravam prendê-la e espancá-la.
Ele − E viveu no jornalismo. Era um texto muito bom o dela.
Eu − A República começou com Deodoro, Floriano, Prudente de Morais…
Ele − Prudente foi o nosso primeiro presidente civil. Mas ele tinha espírito de
militar, de porco, tanto que ordenou a matança de Canudos pelas forças que
estavam sob seu comando. Militar no poder é uma praga! Lugar de militar é no
quartel, ou no fronte defendendo o país de invasores. O governo do Getulio
perseguiu e matou muita gente. O Graciliano (Ramos) sofreu muito na cadeia, como
na cadeia sofreram Eugênia, a Olga, mulher do Prestes, e tal. Muita gente também
morreu nas garras dos militares que assumiram o poder em 1964. Há poucos dias,
os agentes da ditadura mataram Vladimir Herzog. Um horror! Você viu? Muitos
foram exilados, sem culpa, como Miguel Arraes e Brizola. Esses governos veem
comunistas em todo canto...
Eu − O senhor é de um tempo de muitas mazelas...
Ele − Eu passei por muitas tempestades, muitas pragas. Passei pela peste
bubônica, pela febre amarela, pela gripe espanhola. Você sabe que a meningite
chegou ao Brasil em 1906? Pois é. E pra ver como são as coisas: a meningite
voltou a matar. E os militares proibindo os jornais de noticiarem essa praga. Há
pouco, Clóvis Rossi (Estadão) e Eliane Cantanhêde (Veja) escreveram reportagens
sobre o tema, mas a censura brecou. Censura não pode existir.
Eu − E a Revolta da Vacina, como é que foi?
Ele − Um problemão. O prefeito do Rio era Pereira Passos, o homem que endoidou e
derrubou tudo quanto foi casa de pobre. Queria fazer do Rio uma Paris. A febre
estava pegando, até que o prefeito contratou o paulista Oswaldo Cruz pra dar
conta da coisa. Deu. Vacina é a solução. A espanhola também foi fogo. Morreu
muita gente, mas no fim teve até um Carnaval maluco com muitos comemorando a
vida como se fosse o fim do mundo. A polícia bateu, prendeu e matou no correr
daquela Revolta.
Eu − A febre foi em 1904, a espanhola em 1918. No meio disso, teve a Revolta da
Chibata, que também foi uma praga.
Ele − Um horror! Foi a Marinha batendo e matando marinheiros negros. João
Cândido foi um herói.
Eu − E o senhor, foi preso alguma vez?
Ele − Não, não...
Eu − Sofreu algum tipo de censura?
Ele − Também não. Tudo o que escrevi publiquei.
Eu − O senhor tem uma obra muito bonita. Muitas crônicas, muitas reportagens,
muitos contos e até um romance. Faltou-lhe fazer alguma coisa?
Ele − Não, fiz o que tinha que fazer. Sei que inovei no Jornalismo. Antes de
mim, ninguém fazia reportagem. Ninguém ia às ruas, aos cabarés, às favelas, às
cadeias, aos centros de macumba. Eu fui! Entrevistei bandidos, malandros.
Frequentei a casa da tia Ciata. Foi lá que nasceu o samba. Amaxixado, mas samba.
Em dezembro de 1916. Cantei, dancei. Fui amigo de artistas como Donga, Bahiano,
Pixinguinha, Patápio Silva, Eduardo das Neves... Eu vivia o ar das ruas.
Eu − Mas o senhor também frequentava o palácio do Catete...
Ele − No Catete eu falei com presidentes. Na Câmara e no Senado, falei com
deputados e senadores. Falei com todo mundo, de mendigos a endinheirados. As
ruas me encantavam. Os pés descalços me encantavam. Eu me misturava com eles.
Você já leu Victor Hugo?
Eu − Sim. Os Miseráveis é uma obra-prima. A propósito, quais são os seus autores
prediletos?
Ele − Além de Hugo, gosto de Shakespeare, Cervantes, Maquiavel, Petrarca,
Flaubert. E de Homero, claro. Homero era cego... só dos olhos, você sabe.
Eu − O senhor não citou nenhum brasileiro entre os seus autores prediletos.
Ele − Na prosa, Machado foi o maior de todos. Gosto muito também de Mário de
Andrade, Zé Lins do Rego, Érico Verissimo, Guimarães Rosa e Rachel de Queiróz. A
Rachel foi uma grande escritora. O Alphonsus de Guimarães, na poesia. O Augusto
(dos Anjos), também. Estilos diferentes, fortes.
Eu − E na música?
Ele − Bach, Beethoven, Ravel, Chopin. E Carlos Gomes, claro. Sempre fui um
grande apreciador de ópera. Mas também gosto de música popular, como Noel Rosa e
Chiquinha Gonzaga.
Eu − E os novos artistas?
Ele − Chico, Caetano, Vandré. Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro são ótimos.
Eu − A nação brasileira é uma nação miscigenada. Dizem que é a maior do mundo.
Mas o fato é que há uma grande discriminação contra pobres e negros. Mas tivemos
negros de grande importância, como Nilo Peçanha, certo?
Ele − Certo.
Eu − A propósito, tem uma história de que o presidente Nilo Peçanha indicou o
senhor para trabalhar na Gazeta de Notícias. É fato?
Ele − É fato. Mas todo mundo me convidava para escrever nos jornais e nas
revistas. Mas foi o Lima (Barreto) quem espalhou o boato de que eu estava em má
situação e que fui salvo pelo presidente. Pura maldade.
Eu − Mas o senhor também teve muitos amigos. Teve inimigos?
Ele − Não, que me lembre, não. Tive grandes amigos: Coelho Neto, Olavo Bilac,
João Ribeiro…
Eu − A propósito, Bilac foi o primeiro motorista do Brasil a enfiar um carro
numa árvore.
Ele − Pôxa, você sabe disso?
Eu − Sim. E o carro era de José do Patrocínio. Lembra?
Ele − É verdade. Você é uma pessoa muito interessante.
Eu − Na Gazeta o senhor começou a trabalhar em 1903 e ficou até 1915.
Ele − Sim, sim. Cheguei ao cargo de diretor, substituindo o Irineu (Marinho). Eu
e o Irineu formamos sociedade para criar A Noite. Foi esse jornal que serviu de
base para O Globo, que foi lançado em julho de 1925. A Noite, em junho de 1911.
Eu − E a Academia Brasileira de Letras?
Ele − Eu me dava bem com o Machado, que era presidente. Na primeira vez em que
me candidatei à ABL, perdi. Na segunda, também. Só ganhei na terceira. O Coelho
Neto me recebeu muito bem, com um discurso belíssimo.
Eu − Antes de ocupar cadeira na ABL, o senhor andou viajando pela Europa e até
virou membro da Academia de Ciências de Lisboa, certo?
Ele − Certo. Andei por Itália, Portugal, Inglaterra. Gostei muito de Portugal.
Eu − E aquela história do Itamaraty, em 1902?
Ele − Lamentável. Pelo fato de eu ser negro e um pouco gordo, o barão do Rio
Branco me vetou.
Eu − Preconceito?
Ele − Sim. Preconceito é uma desgraça. Somos pessoas, independentemente de cor,
política ou opção sexual. Pena. Mas como você lembrou, fiz uma obra bem legal.
Eu − Acho que é no livro A Alma Encantadora das Ruas que o senhor fala de
folhetos de cordel. É isso?
Ele − Sim. Numa viagem que fiz a Recife, conheci grandes poetas de cordel como
Silvino (Pirauá), Leandro (Gomes de Barros) e o autor de Pavão Misterioso. Como
era o nome dele? Isso! José Camelo de Melo Rezende. Coitado, até hoje ninguém
sabe como ele morreu. O corpo nunca foi encontrado. Era paraibano, acho. Conheci
também Minona Carneiro e Manezinho Araújo. Esses eram emboladores incríveis.
Cantavam depressa, tudo rimado, na ponta da língua.
Eu − O senhor escreveu belos livros. Na sua opinião, quais são os melhores?
Ele − Gosto de todos, mas As Religiões do Rio marcou por ter sido o primeiro. Eu
tinha 23 anos quando o lancei.
Eu − Religiões do Rio foi uma série de reportagens publicada originalmente na
Gazeta de Notícias...
Ele − Sim, nesse mesmo jornal publiquei uma série de perfis de intelectuais.
Virou livro também. Nele estão Osório Duque Estrada, Clóvis Bevilaqua, Guimarães
Passos, Mário Pederneiras, Afonso Celso. Tentei entrevistas com Machado de
Assis, Graça Aranha, Augusto dos Anjos, Emílio de Menezes, José Veríssimo,
Euclides da Cunha... Eles foram adiando, adiando e nada... Mas o livro ficou
bom.
Eu − Gosto desse livro. Momento Literário, não é?
Ele − Esse mesmo.
Eu − Euclides da Cunha cobriu a Guerra de Canudos, no interior da Bahia. Muita
gente acha que foi ele quem inventou a reportagem. O que o senhor tem a dizer?
Ele − Euclides era um militar do Exército e engenheiro de profissão. Foi a
Canudos pra fazer um livro. Aproveitou pra mandar notícias para um jornal de São
Paulo, A Província. Bom, eu diria: Euclides foi o primeiro correspondente de
guerra no Brasil. O seu trabalho é ótimo. Eu, da minha parte, fui às ruas para
entender o povo. Eu pus o povo nas páginas do jornal.
Eu − Euclides foi documentarista, romancista e poeta. O senhor não escreveu
poesia, mas escreveu peças para teatro, certo?
Ele − Certo.
Eu − Que peça sua fez mais sucesso?
Ele − A Bela Madame Vargas, que tinha nada a ver com a mulher de Getulio. Fez
sucesso talvez pelo fato de a personagem encarnar o society que se vivia à
época, no Rio.
Eu − Muita gente já disse que o senhor é a cara do Rio de Janeiro cuspida e
escarrada. Por que trocou o Rio por Salvador?
Ele − Apaixonei-me. Uma pessoa maravilhosa me pôs no seu coração.
Eu − Foi a dançarina Isadora Duncan?
Ele − Não, não. Deixa pra lá...
Eu – O senhor nos ensina que o repórter tem que ser persistente, tem que ir a
fundo nas questões que considere essenciais na formação da sua matéria. Em
função disso, pergunto: o senhor é homossexual?
Ele – Sem problemas. Sou sim.
Eu – E nunca enfrentou preconceito por isso?
Ele – Sim, sim, meu filho. Mas nunca neguei a minha condição de homossexual. Que
diferença faz? Sou um ser humano como você. E viva a diversidade!
Eu − Todo mundo diz que o senhor morreu em 1921, num táxi.
Ele − Pois é. Incrível. E como você vê, estou vivo!
Eu − E aquela multidão de 100 mil pessoas acompanhando o féretro de João do Rio?
Como explicar?
Ele − Mistéééério, mistééério… Ainda pretendo contar essa história num livro.
Eu − O senhor nunca deu entrevista. Por quê?
Ele − Você é um ótimo repórter. Quantos anos você tem?
Eu − Vinte e três. Na virada do século 19 já havia o que chamamos hoje de furo
jornalístico?
Ele – Essa coisa de furo é recente. No meu tempo de repórter ativo usávamos a
expressão “notícia nova” ou “a boa”. O editor gritava lá do lugar dele: “Tem a
boa hoje?” Pessoalmente, acho isso uma bobagem, mas é importante para incentivar
os repórteres a irem às ruas em busca de notícias novas. É lá que elas estão. No
mais, nada.
Eu − Como o senhor define o jornalismo?
Ele − O jornalismo é a chibata do povo. Melhor: a imprensa é a voz do povo. A
verdade e a liberdade serão sempre a principal pauta do jornalismo. Repórter bom
é caçador, é o que caça a verdade. Sem a verdade, prevalece a mentira. E esse é
um campo perigoso, propício a ditaduras.
Eu − Que mensagem o senhor daria aos jovens?
Ele − Estudem e leiam, leiam, leiam! É como disse o Lobato: “Um país se faz com
homens e livros”. Quem lê mais, sabe mais.
Um ano e meio depois desta entrevista, João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos
Coelho Barreto foi encontrado morto num quarto do casarão onde morava. Parecia
tranquilo. Nos lábios, um sorriso maroto. E para minha surpresa, no testamento
que fez doou-me a sua biblioteca. Tempos depois, essa mesma biblioteca eu doei
ao
Instituto Memória Brasil (IMB).
OUÇA: