Às vezes tenho a impressão de que involuímos. Mais: que involuímos à galope, galopadamente.
Poetas romancistas, pintores sabiam de tudo e mais um pouco, ali no passado.
Paula Brito, tipógrafo, tradutor e jornalista; José de Alencar, jurista, poeta, romancista e dramaturgo; Machado de Assis, poeta, romancista e tradutor, doido pela obra de Shakespeare.
Em 1859, a maranhense Maria Firmina dos Reis publicava o primeiro romance. Mulher e negra, pobre. Ela escreveu além do romance, Úrsula, uma novela indianista e um conto abolicionista.
Firmina dos Reis era culta. Essa percepção é clara na sua produção literária e poética.
O poema O Meu Desejo, que dedicou a um admirador, faz citação a Camões, Dante e Milton.
Camões o grande poeta português, é autor da obra prima Os Lusíadas que, modéstia às favas, transformei em uma ópera popular desenvolvida em sextilhas. Ainda inédita, mas essa é outra história.
Dante Alighieri, o grande poeta italiano da Idade Média, legou à posteridade o belíssimo Divina Comédia.
Por fim, Maria Firmina dos Reis cita no seu já referido poema o inquieto e talentosíssimo Milton.
Com relação a Dante e Camões, Milton era o caçula.
O poema clássico deixado por Milton tem conteúdo parecido com o conteúdo de Divina Comédia. É incrível. Trata de um pega-pra-capá entre anjos e o Paraíso. Adão e Eva entram no enredo. O Capeta, também.
Nos dias atuais, existem mais livros do que autores.
Cadê os clássicos de hoje?
Leiam Maria Firmina dos Reis, que morreu 11 de novembro de 1917 abandonada, pobre e cega.
Uma curiosidadezinha: Nos fins dos anos de 1930, o mineiro Ary Barroso compôs Aquarela do Brasil. Um clássico musical. Nesse clássico, o autor insere um verso lindo: "...A merencória luz da Lua".
Firmina dos Reis, no poema O Meu Desejo (abaixo) insere o verso "...A merencória Lua".
O MEU DESEJO
A um jovem poeta guimaraense
Na hora em que vibrou a mais sensível Corda de tu'alma - a da saudade, Deus mandou-te, poeta, um alaúde, E disse:Canta amor na soledade. Escuta a voz do céu, - eia, cantor, Desfere um canto de infinito amor.
Canta os extremos duma mãe querida, Que te idolatra, que te adora tanto! Canta das meigas, das gentis irmãs, O ledo riso de celeste encanto; E ao velho pai, que tanto amor te deu, Grato oferece-lhe o alaúde teu.
E a liberdade, - oh! poeta, - canta, Que fora o mundo a continuar nas trevas? Sem ela as letras não teriam vida, menos seriam que no chão as relvas: Toma por timbre liberdade, e glória, Teu nome um dia viverá na história.
Canta, poeta, no alaúde teu, Ternos suspiros da chorosa amante; Canta teu berço de saudade infinda, Funda lembrança de quem está distante: Afina as cordas de gentis primores, Dá-nos teus cantos trescalando odores.
Canta do exílio com melífluo acento, Como Davi a recordar saudade; Embora ao riso se misture o pranto; Embora gemas em cruel soidade... Canta, poeta, - teu cantar assim, Há de ser belo enlevador enfim.
Nos teus harpejos juvenil poeta, Canta as grandezas que se encerram em Deus, Do sol o disco, - a merencória lua, Mimosos astros a fulgir nos céus; Canta o Cordeiro, que gemeu na Cruz, Raio infinito de esplendente luz.
Canta, poeta, teu cantar singelo, meigo, sereno com um riso d'anjos; Canta a natura, a primavera, as flores, Canta a mulher a semelhar arcanjos. Que Deus envia à desolada terra, Bálsamo santo, que em seu seio encerra.
Canta, poeta, a liberdade, - canta. Que fora o mundo sem fanal tão grato... Anjo baixado da celeste altura, Que espanca as trevas deste mundo ingrato. Oh! sim, poeta, liberdade, e glória Toma por timbre, e viverás na história. ----------------
Eu não te ordeno, te peço, Não é querer, é desejo; São estes meus votos - sim. Nem outra cousa eu almejo. E que mais posso eu querer? Ver-te Camões, Dante ou Milton, Ver-te poeta - e morrer.
ADEUS
A jornalista Cristiana Lôbo despediu-se hoje do planeta. Tinha 63 anos quando um câncer a levou.
Cristiana falava de política com naturalidade e por vezes participou de debates do extinto programa Onze e Meia, do Jô Soares. Fica o registro.