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sábado, 30 de setembro de 2023

LICENCIOSIDADE NA CULTURA POPULAR (45)

Tinhorão na redação
do Diário Carioca, em 1959
Além de criar Adão e Eva, Deus queria mais e mais gente entre outros animais povoando a Terra. E ordenou: cresçam e se multipliquem.
E aí a coisa piorou.
Hoje são mais de oito bilhões de homens e mulheres, sofrendo, matando e morrendo de tudo quanto é jeito.
A Índia, velho país asiático, encabeça a lista dos países mais populosos com 1,428 bilhão de habitantes. Fora isso, a Índia é o país que mais deuses e deusas inventa e cultua. Os números batem na casa dos trezentos milhões, sem falar das crenças muitas crenças. O hinduísmo é seguido pela maior parte da população: 80,5%.
Curiosidade 1: o mundo existe há 1,5 bilhão de anos segundo os cabeções da matéria.
Curiosidade 2: o Homo Sapiens surgiu há mais ou menos 3580 mil anos, também segundo os cabeções da matéria.
Bom, Tinhorão foi um bamba que nos legou boas histórias. Agora leia a íntegra do texto que ele publicou na revista Chuvisco, edição de setembro de 1963, n° 58:

GÊNESIS

A história da Criação ainda não está bem explicada. Talvez devido à pressa (o mundo foi feito em seis dias, apenas) muita coisa custa hoje a ser compreendida, mesmo levando em conta que é muita pretensão do Homem querer julgar a obra de Deus como o Sr. Agripino Grieco julgava a do escritor Ataulfo de Paiva. No entanto, de tanto ouvirmos dizer que os homens foram criados por Deus, por exemplo, uma coisa desde logo não se explica: por que, se o objetivo era criar os homens, o Senhor foi criar também uma mulher?
Mesmo sem entrar propriamente no mérito dos arcanos supremos, o fato é que, se o Criador pretendia apenas proporcionar uma companhia ao Adão feito de barro, Ele poderia perfeitamente já que estava com a mão na massa modelar um segundo homem. Do ponto de vista da própria história humana, estaria desde logo resolvido o mais antigo problema do homem, isto é, a mulher.
O que aconteceu, no entanto, segundo o versículo 27 do primeiro Livro de Moisés, chamado Gênesis, é que Deus resolveu criar o homem à sua imagem ou, segundo o texto sagrado, “à imagem de Deus o creou; macho e fêmea os creou”.
Eis aí. Como não ficar em dúvida diante de uma revelação desses, partida do próprio Moisés, e a julgar pela qual o Criador seria hermafrodita?
O fato é que, segundo o Velho Testamento, no sexto dia da Criação o Senhor tomou uma costela de Adão enquanto ele dormia (o que mostra, de uma vez por todas, ter sido a mulher criada à revelia do homem) segundo conta a Escritura — “ex ea formavit mulierem, quam deait sociam Adamo”.
“Formou com ela a mulher, a qual deu por sócia a Adão”. Foi, não há dúvida, uma estranha sociedade essa, pois dado que toda a sociedade civil implica em capital e trabalho, os descendentes da linha masculina de Adão entraram bem, uma vez que lhes coube exatamente a parte do trabalho, posto que a beleza na mulher é considerada capital.
Até hoje, aliás, ninguém explicou bem o porque da própria criação do homem. Para os materialistas que formam na bancada da Oposição do espírito entraria aí o propósito do Senhor de solucionar o impasse em que se teria encontrado no sexto dia da Criação. É que, depois de ter feito a luz, o firmamento, as águas, a terra, as árvores, a lua, as estrelas, as aves e os peixes, o Criador verificou que não havia ninguém para acreditar em Deus. Essa teria sido, pois, a verdadeira razão do Senhor ter feito o primeiro homem “ad similitudinem suam”, isto é, tão à sua semelhança, que em pouco tempo os seus descendentes sairiam criando deuses com a mesma facilidade com que Ele havia criado os homens.
Voltemos, porém, no capítulo do Gênesis, onde outras dúvidas assaltam o espírito leigo de quem lê atentamente aquelas linhas ditadas a Moisés, pelo próprio Espírito Santo. Criado o homem e a mulher colocou-os Deus no paraíso, uma região tão bem irrigada e tão fértil, que, se não tivesse desaparecido com o dilúvio ocorrido no ano do mundo de 1565, estaria hoje seguramente nas mãos de três ou quatro fazendeiros, eleitores do PSD. Isto muito embora Moisés tenha declarado que o Jardim do Éden ficava “na banda do Oriente”, o que situaria, hoje, além da Cortina de Ferro.
O certo, entretanto, é que no centro desse “horto amoenissimo” o Senhor havia colocado, entre árvores de aspecto jocundo, uma mal-intencionada macieira, cujo fruto simbolizava a ciência. Isto é, quem comesse de tal fruto veria desencadear-se, imediatamente, o torturante processo dialético dos contrários, no caso, o do bem e do mal.
E eis quando, novamente, as coisas não parecem claras no velho livro de Moisés. Pois se é verdade que Deus, conforme o versículo 26 do Gênesis, abençoou Adão e Eva dizendo-lhes “multiplicai-vos; e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra”, não se pode entender bem porque exatamente dessa árvore da ciência fossem os homens proibidos de provar o fruto. E isso se explica: se a história da humanidade parece comprovar que o homem jamais teria conseguido dominar a terra e os animais sem a ajuda da ciência, como queria o Senhor que isso se desse o contrário? Além do que, outra pergunta: se o castigo pela mordida no fruto da árvore da ciência foi a mortalidade, como estaria o mundo a esta hora se Adão e Eva, imortais antes do pecado, tivessem seguido o exemplo de multiplicarem-se indefinidamente, e assim os seus descendentes, etc, etc. Eis aí um cálculo para ser resolvido segundo a Lei de Malthus.
O certo é que, por culpa da serpente ou não, Eva provou do fruto da ciência, o qual, aliás — verdade seja dita — jamais chegaria a digerir. Com grande leviandade, no entanto, ofereceu-o também a Adão, que logo à primeira mordida pôde perceber que o tal fruto da ciência não era nada mole.
Para o casal, a primeira consequência desse pecado do entendimento foi perceberem ambos, marido e mulher, que estavam completamente nus. Isso parece pequeno detalhe, mas foi graças a esse acontecimento que surgiu no mundo o primeiro alfaiate, e a Casa Dior pode orgulhar-se, depois, de possuir tantas filiais.
No primeiro momento, dizem as Escrituras que Eva correu para trás de uma figueira e Adão sumiu-se numa moita, para só reaparecerem um diante do outro acachapados sob esta primeira conclusão realmente dramática da condição humana: formavam um casal condenado a ter filhos e estavam completamente em tangas.
Ora, diz o Gênesis que, nesse momento, o Senhor Deus, “que passeava no jardim pela viração do dia”, chamou Adão: “Onde estás?”. Não vamos discutir o fato estranhável do Criador, sendo onisciente, perguntar como qualquer pessoa, "onde estás?", apenas por não ter Adão à vista. É outra a dúvida que surge neste passo da história da criação, e que nenhum exegeta, conseguiu até hoje decifrar. Segundo o diálogo travado no Jardim do Éden, vendo o Senhor a Adão, que finalmente saía meio encabulado  detrás da moita, confessando que se escondera porque estava nu, perguntou-lhe: “Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore que te ordenei que não comesses?”. Para Adão esse preciso momento foi chato à bessa, mas sua resposta não deixou de encerrar uma certa malícia, uma vez que com ela responsabilizava o próprio Criador por seu pecado: “A mulher que me deste por companheira, ela foi que me deu da árvore, e comi”.
Adão havia marcado um a zero. Virou-se então o Senhor para Eva, e inquirindo-a, por sua vez, deu oportunidade ao primeiro jôgo de empurra da história da humanidade: “A serpente me enganou, e eu comi”, foi a resposta de Eva.
E eis quando surge a grande dúvida. Segundo o Gênesis, chegado a esse ponto do diálogo, o Senhor Deus virou-se para a serpente e proferiu esta fulminante condenação: “Porquanto fizeste isto, maldita serás mais que toda a besta, e mais que todos os animais do campo: sobre o teu ventre andarás e pó comerás todos os dias da tua vida”.
Ora, como o Espírito Santo esqueceu de contar a Moisés maiores detalhes, foi assim que, até hoje, ninguém conseguiu descobrir como é que as serpentes andavam até o episódio da maçã.