Além de romances e contos, Júlia também encheu páginas e páginas de jornais de sua época com crônicas e poemas. Na verdade ela começou a escrever escondida do pai. Em março de 1905, João do Rio a entrevista para o suplemento O Momento Literário, em carta dominical do diário Gazeta de Notícias, do Rio. Júlia ao jornalista:
Pois eu em moça fazia versos. Ah! Não imagina com que encanto. Era como um prazer proibido! Sentia ao mesmo tempo a delícia de os compor e o medo de que acabassem por descobri-los. Fechava-me no quarto, bem fechada, abria a secretária, estendia pela alvura do papel uma porção de rimas...
De repente, um susto. Alguém batia à porta. E eu, com a voz embargada, dando volta à chave da secretária: já vai! já vai!
A mim sempre me parecia que se viessem a saber desses versos em casa, viria o mundo abaixo. Um dia, porém, eu estava muito entretida na composição de uma história, uma história em verso, com descrições e diálogos, quando senti por trás de mim uma voz alegre: — Peguei-te, menina! Estremeci, pus as duas mãos em cima do papel, num arranco de defesa, mas não me foi possível. Minha irmã, adejando triunfalmente a folha e rindo a perder, bradava: — Então a menina faz versos? Vou mostrá-los ao papá!
— Não mostres! — É que mostro!
— Vai fazê-lo zangar comigo. Não sejas má!
Ela ria, parecendo refletir. Depois deitou a correr pelo corredor. Segui-a comovidíssima. Na sala, o papá lia gravemente o Jornal do Comércio.
— Papá, a Júlia faz versos! — Não senhor, não lhe acredites nas falsidades! — Pois se eu os tenho aqui. Olha, toma, lê tu mesmo...
Meu pai, muito sério, descansou o Jornal. Ah! Deus do céu, que emoção a minha! Tinha uma grande vontade de chorar, de pedir perdão, de dizer que nunca mais faria essas coisas feias, e ao mesmo tempo um vago desejo que o pai sorrisse e achasse bom. Ele, entretanto, severamente lia. Na sua face calma não havia traço de cólera ou de aprovação. Leu, tornou a ler.
A folha branca crescia nas suas mãos, tomava proporções gigantescas, as proporções de um grande muro onde na minha vida acabara a alegria... Então, que achas? O pai entregou os versos, pegou de novo o Jornal, sem uma palavra, e a casa voltou à quietude normal. Fiquei esmagada. Que fazer para apagar aquele grande crime? No dia seguinte fomos ver a Gemma Cuniberti, lembra-se? Uma criança genial. Quando saímos do espetáculo, meu pai deu-me o seu braço. — Que achas da Gemma? — Um grande talento. — Imagina! O Castro pediu-me um artigo a respeito. Ando tão ocupado agora! Mas o homem insistiu, filha, insistiu tanto que não houve remédio. Disse-lhe: não faço eu, mas faz a Júlia...
Minha Nossa Senhora! Pus-me a tremer, a tremer muito. O pai, esse, estava impassível como se estivesse a dizer coisas naturais:
— Estamos combinados, pois não? O prometido é devido. Fazes amanhã o artigo.
Sei lá o que respondi! O certo é que não dormi toda a noite, nervosa, imaginando frases, o começo do artigo. Pela madrugada julgava impossível escrevê-lo, tudo parecia banal ou extravagante. Mas depois do almoço, antes de sair, o pai lembrou-me como se lembra a um escritor: — Vê lá, Júlia, o artigo é para hoje. Tenho que o levar à noite. Havia um jornal que exigia o meu trabalho. Era como se o mundo se transformasse. Sentei-me. E escrevi assim o meu primeiro artigo... Só mais tarde, muito mais tarde, é que vim a saber a doce invenção de meu pai.
O Castro nunca exigira um artigo a respeito da Gemma…
O Senado Federal publicou em 2020 um livro reunindo crônicas esparsas de Júlia Lopes de Almeida. Título: Ânsia Eterna.
Nesse livro, originalmente publicado em 1903, se acha o conto O Caso de Rute. É sobre uma jovem órfã de pai. A mãe se casa de novo e o novo marido abusa sexualmente da pequena Rute. Tinha ela 15 anos quando isso ocorreu. Os transtornos provocados pelo fato jamais foram superados pela personagem.
Foto e reproduções de Flor Maria e Anna da Hora