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sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

NEGRO NO PASSADO, NEGRO NO PRESENTE

Há momentos em que a morte chega para salvar.
Negrinha não tinha nome de batismo, nem de cartório. Nem pai, nem mãe. Ficou órfã e aos 7 anos foi adotada por uma senhora viúva e rica, sem filhos. Essa senhora, Inácia, era o cão em pessoa.
Católica, Inácia costumava receber na sua ampla casa pessoas de destaque na alta sociedade. Inclusive o vigário, de cuja a Igreja ela fazia gordas doações.
Para o vigário, essa senhora era uma santa.
A pequena Negrinha passava horas e horas que nem um bichinho abandonado, sem dizer palavra nos cantos de parede. O seu divertimento era o cuco da parede que saía de hora em hora pra cantar a hora. Sempre de cabeça baixa, mal vestida, mal tudo, Negrinha andava que nem uma sombra no casarão de quem a adotou.
Mas Negrinha não nasceu para viver.
Negrinha servia mais pra receber croques de Dona Inácia, que adorava fazer isso. Era viciada nisso.
No dia em que a Inácia não dava croques na pobre Negrinha, sempre caladinha e acuada, ficava irascível, nervosa, soltando impropérios.
Negrinha não servia pra nada, só pra receber croques. E xingamentos.
Ah! E tem a cena do ovo. Chocante! Não, não vou contar.
Um dia chegam à casa duas belas sobrinhas da Inácia.
Os serviçais descarregaram baús de brinquedos das duas meninas. Brancas, claro. Estavam de férias.
Entre os brinquedos, brinquedos de todo o tipo, havia uma boneca que só faltava falar e cantar.
Negrinha ficou encantada com o que via. Enfeitiçada.
Foi ali, num momento mágico, que pela primeira vez o rosto de Negrinha iluminou-se com um sorriso.
À distância, Inácia a tudo observava. Devagar, aproximou-se e autorizou que Negrinha brincasse com suas sobrinhas. E assim foi feito.
Mas o dia da partida das meninas chegou e a boneca foi junto com elas.
Se já era triste por natureza, triste ainda mais ficou Negrinha com a partida da "sua" boneca.
E nem uma semana se passou, quando a morte chegou e levou Negrinha cheia de tristeza.
Essa história que aqui reconto é do original paulista Monteiro Lobato.
O livro em que Monteiro conta essa história foi publicada em 1920. A personagem dá título ao livro, que é de contos.
Negrinha me fez lembrar a história de duas primas mortas por um único tiro de fuzil, há exatamente uma semana. Foi no Rio de Janeiro, numa favela. E até agora o autor do tiro que acertou as duas meninas, uma de 4 e outra de 7 anos, não foi identificado. Mas indícios fazem crer ser o autor um policial.
Por que balas perdidas acertam tanto pessoas negras, hein?
Ainda há muitos pontos comuns entre a sociedade escravocrata e a sociedade de hoje.
Alguém aí pode explicar por que ainda se mata tanto pardos e negros, na nossa sociedade?

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