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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

TIETÊ, UM RIO COM LÍNGUA DE FORA

Água do meu Tietê,Onde me queres levar?
- Rio que entras pela terra
E que me afastas do mar...
É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite de tão vasta
O peito do rio, que é como si a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões
As altas torres do meu coração exausto. De repente
O ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,
É um susto. E num momento o rio
Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas,
Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam
Agora, arranha-céus valentes donde saltam
Os bichos blau e os punidores gatos verdes,
Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,
Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma
Humana corrupta da vida que muge e se aplaude.
E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra.
Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo,
Está negro. As águas oliosas e pesadas se aplacam
Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho de morte.
É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado
É um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana.
Meu rio, meu Tietê, onde me levas?
Sarcástico rio que contradizes o curso das águas
E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,
Onde me queres levar?...
Por que me proíbes assim praias e mar, por que
Me impedes a fama das tempestades do Atlântico
E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar?
Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra,
Me induzindo com a tua insistência turrona paulista
Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!...

(A Meditação Sobre o Tietê, poema de Mário de Andrade, composto entre 30 de novembro de 1944 e 12 de fevereiro de 1945)

O atual ocupante da cadeira presidencial envergonha todos os dias o Brasil e o mundo. Quando abre a boca, o mal cheiro toma conta do ar.
Ele fala, fala e diz só besteira.
Visando seu inimigo governador de São Paulo, disse mais uma besteira atingindo, mais uma vez, o povo.
A sua última fala, ontem 2, foi sobre o importantíssimo rio Tietê, de muitas histórias.
Disse o inqualificável portador da faixa presidencial que viu em São Paulo a transposição do Tietê, numa referência zombeteira à transposição das águas do São Francisco.
Essa é uma fala lamentável sob todos os aspectos, principalmente quando parte de um presidente eleito pelo voto universal.
O rio São Francisco nasce na Serra da Canastra, em Minas. Tem 2.830km e é uma das inúmeras riquezas do nosso País.
O rio Tietê, Rio Grande na língua Tupi, tem 1.136km e passa por 62 municípios. Seu berço é Salesópolis, município distante 117km da Capital paulista. Em Salesópolis, suas águas continuam claríssimas, mas à medida que vai correndo, vai recebendo todo tipo de lixo. Quando chega em Guarulhos, recebe mais de 700 toneladas de tudo quanto não presta. E na Capital, o volume de porcarias ultrapassa 1.100 toneladas. Isso tudo, todos os dias.
Sim, claro, o Tietê está com a língua de fora.
Há poucos dias publiquei um especial sobre São Paulo no newsletter Jornalistas&Cia. Nesse especial, inseri pequenos depoimentos de personagens ligados, de um modo ou de outro, à Capital paulista. Um desses personagens, Bill Hinchberger, escreveu:

I Love that Dirty Water
Em 1991, como correspondente de The Financial Times, fui convidado para fazer parte de um grupo minúsculo de jornalistas, quase todos brasileiros, que se encontraria com o governador Luiz Antonio Fleury Filho. O governador anunciou um empréstimo então recorde do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para a despoluição do Rio Tietê. Fiz uma matéria relativamente extensa para aquele grande jornal inglês. Tanto dinheiro para um projeto ambiental era inédito.
Depois, Fleury prometeu beber água do rio no ano 2005. Nada disso. Em 2007, em parceria com a TV PUC São Paulo, recorri quase todo o rio, desde a fonte (onde, sim, eu bebi um copo de água) até lá longe, no interior, onde o rio finalmente voltava a desfrutar a vida.
Acompanhei uma peça de teatro flutuante dentro da cidade de São Paulo, uma iniciativa que simbolizava a importância cultural do rio para a metrópole. Ao pousar em Guarulhos no final do ano, vindo de Paris, para minha primeira visita desde o começo da pandemia, vi a triste realidade: milhões de dólares e duas décadas depois, o rio continuava morto.
O título acima vem da música de mesmo nome pelo conjunto The Standells, gravada em 1966: THE STANDELLS - DIRTY WATER
Os roqueiros cantavam o Rio Charles, de Boston. Naquela época, quem caía no rio da cidade de Boston era encaminhado para o hospital. Hoje você pode nadar no Rio Charles. Até quando esperar para a volta do Tietê?
 
O São Francisco é personagem de muitas histórias e músicas. O rio Tietê, também.
 

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