Personagem Cebolinha, por Maurício de Sousa |
Eu respondi à jovem, filha de Maurício, que Os Lusíadas é uma obra encantadora e como tal sempre despertou em mim a vontade de recontar a história das navegações escritas pelo grande poeta português Luís Vaz de Camões. “Seu Assis, eu li Os Lusíadas graças ao Sr. e gostei. Muito. Agora quero saber se a sua adaptação da obra de Camões vai a teatro e virará livro”.
Entusiasmei-me, confesso, com a abordagem da jornalista. E de repente, vi-me falando pelos cotovelos. Disse-lhe que meu sonho, um dos meus sonhos é ver A Fabulosa Viagem de Vasco da Gama no Mar para canto e cordel. Pensei numa ópera popular. Mas não está fácil realizar essa minha vontade. “O Sr. já falou com o governo português, com os representantes do governo português no Brasil?”.
Tina realmente é uma menina muito interessante, atenta a tudo.
Quando pensei, de novo, que havia satisfeito a sua curiosidade, ela soltou mais perguntas: “E o rádio? E a televisão? Eu soube que o Sr. já publicou até folhetos de cordel. Na verdade já li alguns, gostei muito daquele A Vida como Tragédia e um Cego por Testemunha. Também gostei muito do folheto Jornalismo e Liberdade nos Tempos de Pandemia. O Sr. não pretende voltar ao rádio ou à televisão?".
Havia tempo que eu não falava com alguém tão jovem e tão curiosa a respeito do dia a dia que vivemos. Bom, respondi que sim. Que pretendo voltar às ondas do rádio e à TV. Mas para isso, faço necessário que alguém me veja e entenda meus propósitos: “Tornei-me invisível, Tina”.
A jovem filha de Maurício parece não ter gostado muito da palavra “invisível” e rebateu: “Desculpe, mas acho que o Sr. não está invisível coisa nenhuma, o Sr. tem produzido muita coisa, muita coisa mesmo! Na verdade, acho que o fato do Sr. ter ficado cego ficou foi melhor. Adoro seus poemas e todos os seus textos. Sou sua fã”.
Para provar o que dizia, Tina começou a declamar um poema que fiz pouco tempo depois que perdi a visão:
É magra e graciosa
Elegante e mágica
Não tem pena nem pecado
É dócil, é prática
É bela, belíssima
De beleza clássica
Ela é solidária
E não sabe dizer não
Ela abre meus caminhos
Com firmeza e decisão
E vai prá onde eu vou
Sem largar a minha mão
Eu adoro essa magrela
Pela sua discrição
Por gostar do que eu gosto
E me dar sua atenção
Eu a ela dou a vida
E ela a mim sua visão
Quieta, mas atenta
Sai comigo a passear
Com um passo mais à frente
Em silêncio, sem falar
Mas tudo que lhe peço
Ela dá sem reclamar
Mas que magrela é essa
Que me tira da rotina
E me leva a ver a vida
Pela ótica feminina
Seja dia, seja noite
Oh, meu Deus! É Serafina.
Espantei-me e, claro, não deixei de perguntar onde ela tinha descoberto esse texto.
Com ar de mistério, Tina riu e disse: “Eu não revelo as minhas fontes”.
Achei graça e ri também. E ela: “Aliás, aproveitando a oportunidade, gostaria que me dissesse como perdeu a visão. A propósito, esse poema é uma homenagem a bengala, não é?”.
Bom, perdi a visão em 2013 depois de várias cirurgias no Hospital das Clínicas. Essa perda foi provocada por descolamento de retina. Muita gente passa por isso. É de repente e não tem uma causa específica. Perder, perdi. Fazer o quê? O caso é adaptar-me à nova vida que vivo. Claro que ainda sofro problemas decorrentes do descolamento, como depressão. Mas a gente vai levando, com apoio de amigos e amigas. Amigos novos, pois os outros deixaram-me a ver navios e lamentando o que tinha que lamentar. Não é brinquedo não. Tenho feito muitos poemas abordando o tema da cegueira. Um desses, este:
Devastadora e sonsa
E filha da implosão
Ela pega, ferra e mata
Em nome da solidão
Não gosta de alegria
Ela gosta da perdição
Não tem cara, corpo ou alma
É invisível e letal
Nunca fez bem a ninguém
Pois é um mal universal
E não vou falar mais dela
Porque não presta e ponto final!
Enfim a cegueira não é o fim, não é mesmo?
Em determinado momento, agora sim satisfeita, Tina despediu-se com um aperto de mão, lembrando: “O dia 10 de junho é o dia da Língua Portuguesa. Nesse dia também é lembrada a morte de Camões. Vai escrever algo?”.Talvez, respondi.