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terça-feira, 12 de dezembro de 2023

ERASMO É O CARA!

Livros clássicos assim chamados são os livros escritos há muito tempo cuja leitura permanece, de algum modo, atual. É o caso, por exemplo, de Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam (1466-1536).
Erasmo teve a brilhante ideia de personalizar e dar voz à Loucura.
Essa personagem, que continuará viva sempre a folgar e a incomodar muita gente ao mesmo tempo, arvora-se filha do deus romano Plutão equivalente ao deus grego Hades.
No livro de Erasmo a Loucura pinta e borda, tira sarro de todo mundo e até das instituições. 
O quase padre Erasmo mete o pau na Igreja, através da Loucura.
A Loucura não poupa praticamente ninguém. Não dá bola aos sábios, que considera idiotas; diz que os sucessores dos apóstolos de Cristo são fanáticos, demagogos, charlatões e quase sempre avaros. 
No correr das páginas de Elogio a Loucura o autor, pela boca da sua personagem, diz que quem deveria seguir os mandamentos divinos não os seguem.
Ma verdade, na verdade, a Loucura está em todos nós num grau maior ou num grau menor. O fato é que alguém desprovido de Loucura é desprovido de tudo, seja em que grau for.
No livro famoso de Erasmo há muitas citações a personagens históricos e lendários como Homero, Virgílio, Cícero, Platão, Sócrates, Aristóteles, Aristófanes. 
Na falta de a Loucura elogiar alguém, ela autoelogia-se:

De fato, que mais poderia convir à Loucura do que ser o arauto do próprio mérito e fazer ecoar por toda parte os seus próprios louvores? Quem poderá pintar-me com mais fidelidade do que eu mesma? Haverá, talvez, quem reconheça melhor em mim o que eu mesma não reconheço? De resto, esta minha conduta me parece muito mais modesta do que a que costuma ter a maior parte dos grandes e dos sábios do mundo. É que estes, calcando o pudor aos pés, subornam qualquer panegirista adulador, ou um poetastro tagarela, que, à custa do ouro, recita os seus elogios, que não passam, afinal, de uma rede de mentiras. E, enquanto o modestíssimo homem fica a escutá-lo, o adulador ostenta penas de pavão, levanta a crista, modula uma voz de timbre descarado comparando aos deuses o homenzinho de nada, apresentando-o como modelo absoluto de todas as virtudes, muito embora saiba estar ele muito longe disso, enfeitando com penas não suas a desprezível gralha, esforçando-se por alvejar as peles da Etiópia, e, finalmente, fazendo de uma mosca um elefante. Assim, pois, sigo aquele conhecido provérbio que diz: Não tens quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo.
Pois bem, a Loucura é uma loucura. Está em todo canto, em todas as cabeças masculinas ou femininas.
Na leitura de Erasmo a Loucura aparece de modo mais natural, portanto mais original, na cabeça das crianças e dos idosos.

Por tudo isso, observai, senhores, que, quanto mais o homem se afasta de mim, tanto menos goza dos bens da vida, avançando de tal maneira nesse sentido que logo chega à fastidiosa e incômoda velhice, tão insuportável para si como para os outros. E, já que falámos de velhice, não fiqueis aborrecidos se por um momento chamo para ela a vossa atenção. Oh! como os homens seriam lastimáveis sem mim, no fim dos seus dias! Mas, tenho pena deles e estendo-lhes a mão. Não raro, as divindades poéticas socorrem piedosamente, com o divino segredo da metamorfose, os que estão prestes a morrer: Fetonte transforma-se em cisne, Alcion em pássaro, etc. Também eu, até certo ponto, imito essas benéficas divindades. Quando a trôpega velhice coloca os homens à beira da sepultura, então, na medida do que sei e do que posso, eu os faço de novo meninos. De onde o provérbio: Os velhos são duas vezes crianças.
De tudo tem no livro Elogio da Loucura. 
No referido livro o autor, sempre pela boca da Loucura, diz do nascimento e da morte; da vaidade narcisista, da gratidão, do amor, verdade, mentira, da volúpia... 

Que seria esta vida, se é que de vida merece o nome, sem os prazeres da volúpia? Oh! Oh! Vós me aplaudis? Já vejo que não há aqui nenhum insensato que não possua esse sentimento. Sois todos nuito sábios, uma vez que, a meu ver, loucura é o mesmo que sabedoria. Podeis, pois, estar certos de que também os estóicos não desprezam a volúpia, embora astutamente se finjam alheios a ela e a ultrajem com mil injúrias diante do povo, a fim de que, amendontrando os outros, possam gozá-la mais freqüentemente. Mas, admitindo que esses hipócritas declamem de boa fé, dizei-me, por Júpiter, sim, dizei-me se há, acaso, um só dia na vida que não seja triste, desagradável, fastidioso, enfadonho, aborrecido, quando não é animado pela volúpia, isto é pelo condimento da loucura. Tomo Sóflocles por testemunho irrefragável, Sóflocles nunca bastante louvado. Oh! nunca se me fez tanta justiça! Diz ele, para minha honra e minha glória: “Como é bom viver! mas, sem sabedoria, porque esta é o veneno da vida”. Procuremos explicar essa proposição.

Volúpia tem a ver com sensualidade, prazer, sexo; infidelidade... Erasmo:

O que dissemos da amizade também pensamos e com mais razão dizemos do matrimônio. Trata-se (como deveis estar fartos de saber) de um laço que só pode ser dissolvido pela morte. Deuses eternos! Quantos divórcios não se verificariam, ou coisas ainda piores do que o divórcio, se a união do homem com a mulher não se apoiasse, não fosse alimentada pela adulacão, pelas carícias, pela complacência, pela volúpia, pela simulação, em suma, por todas as minhas sequazes e auxiliares? Ah! como seriam poucos os matrimônios, se o noivo prudentemente investigasse a vida e os segredos de sua futura cara metade, que lhe parece o retrato da discrição, da pudicícia e da simplicidade! Ainda menos numerosos seriam os matrimônios duráveis, se os maridos, por interesse, por complacência ou por burrice, não ignorassem a vida secreta de suas esposas. Costuma-se achar isso uma loucura, e com razão; mas é justamente essa loucura que torna o esposo querido da mulher, e a mulher do esposo, mantendo a paz doméstica e a unidade da família. Corneia-se um marido? Toda a gente ri e o chama de corno, enquanto o bom homem, todo atencioso, fica a consolar a cara-metade, e a enxugar com seus ternos beijos as lágrimas fingidas da mulher adúltera. Pois não é melhor ser enganado dessa forma do que roer-se de bílis, fazer barulho, pôr tudo de pernas para o ar, ficar furioso, abandonando-se a um ciúme funesto e inútil?

Por fim, no excepcional livro de Erasmo, lê-se que a Loucura não é chegada à memória. Na verdade, a Loucura detesta a memória: 

Esperais um epílogo do que vos disse até agora? Estou lendo isso em vossas fisionomias. Mas, sois verdadeiramente tolos se imaginais que eu tenha podido reter de memória toda essa mistura de palavras que vos impingi. Em lugar de um epílogo quero oferecer-vos duas sentenças. A primeira, antiquíssima, é esta: Eu jamais desejaria beber com um homem que se lembrasse de tudo. E a segunda, nova, é a seguinte: Odeio o ouvinte de memória fiel demais. E, por isso, sedes sãos, aplaudi, vivei, bebei, oh celebérrimos iniciados nos mistérios da Loucura.

O livro Elogio a Loucura foi originalmente publicado em 1511, dois anos depois de ser escrito. Provou e ainda provoca polêmica. Sempre.

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