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sexta-feira, 30 de agosto de 2024

LICENCIOSIDADE NA CULTURA POPULAR (124)

Em agosto de 1983 a Escola de Comunicação e Artes da USP promoveu um seminário intitulado Jornadas Impertinentes. Desse seminário participaram intelectuais de destaque na vida acadêmica de São Paulo. Os professores Jerusa Pires Ferreira e Luís Milanesi estiveram à frente de tudo. O tema gerou polêmica e acabou no livro Jornadas Impertinentes: O Obsceno.
Na apresentação do livro a professora Jerusa diz que por muito tempo passou a acompanhar o que se produzia sobre o assunto na área da Cultura Popular, incluindo folhetos de cordel. Pra ela foi tudo surpresa, lembra: “Pensando na Cultura Popular tradicional nordestina e na literatura de folhetos populares, hoje conhecida como de Cordel passei a observar que os pesquisadores, no caso de ‘indecências’ ou ‘indecentes’ costumavam assumir duas posturas. Ou um silêncio comprometedor e um véu idealizante ou a revelação sensacionalista do tipo: Nordeste ataca de Pornô Cordel”.

Leu muitos folhetos e inteirou-se da vida e da obra do poeta repentista Zé Limeira (1896-1954).

Zé Limeira é uma lenda da cantoria nordestina desenvolvida ao som de viola. Sobre ele o jornalista e também poeta Orlando Tejo (1935-2018) escreveu O Poeta do Absurdo. Esse livro virou clássico do gênero por razões óbvias: Limeira era um destabocado cantador e cantava misérias da vida e do sexo. Exemplo:


Frei Henrique de Coimbra

Sacerdote sem preguiça

Rezou a primeira missa

Perto de uma cacimba

Um índio passou-lhe a pimba

Ele não quis aceitar

E hoje vive a chorar

Embaixo de um pé de jurema

O bom pescador não teme

As profundezas do mar


Pimba, pra quem não sabe, no Nordeste é pênis.

Zé Limeira era absurdamente troncho no verso de metrificação certa e rima torta. Ele:


Pedro Álvares Cabral

inventor do telefone

começou tocar trombone

na Volta de Zé Leal

Mas como tocava mal

arranjou dois instrumento

daí chegou um sargento

querendo enrabar os três

Quem tem razão é o freguês

diz o Novo Testamento


O Zé Leal aqui citado é referência ao famoso jornalista paraibano que assinava coluna no extinto jornal O Norte, PB.

Zé Limeira tinha admiradores em todo canto.

Em São Paulo, um de seus grandes admiradores foi o cientista Paulo Vanzolini (1924-2013), PhD em Harvard e compositor musical, nas horas vagas. É dele o belo samba Ronda, gravado pela cantora Inezita Barroso, em 1953.

Vanzolini também gostava de putaria. É dele:


Eu sou Paulo Vanzolini, 

animal de muita fama. 

Eu tanto corro no seco. 

Como na vargem da lama. 

Mas quando o marido chega, 

me escondo embaixo da cama.


No correr do tempo foi inventado um mote pra lembrar o destabocado cantador:

 

Eu querendo também faço

Igualzinho a Zé Limeira


Muitos cantadores já cantaram e ainda cantarão versos com base nesse mote. Ivanildo Vila Nova e Severino Feitosa, por exemplo:


Vila Nova:

Rei Davi foi deputado

Na Assembléia do Acre

Kruschev fez um massacre

Nas traíras de Condado

Jesus Cristo era cunhado

De Romano de Teixeira

Escreveu A bagaceira

Mas se esqueceu do bagaço

Eu querendo também faço

Igualzinho a Zé Limeira


Feitosa:

Confusão foi na Bahia

Pai-de-santo e curandeiro

Anchieta era pedreiro

No farol de Alexandria

Hitler nasceu na Turquia

Vendia manga na feira

A Revolução Praieira

Degolou Torquato Tasso

Eu querendo também faço

Igualzinho a Zé Limeira…


O estudante Pedro Araujo de Oliveira escreveu um estudo científico, para a Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulado O Poeta Zé Limeira No Imaginário do Cancioneiro Brasileiro – Relações Entre Cultura Letrada e Oral (2022). Lá pras tantas, ele diz: “Zé Limeira, conhecido como o Poeta do Absurdo, a cujas incertas autorias foram atribuídos versos de fantástica imaginação e delírio, sendo por vezes comparados à literatura surrealista”.

A expressão “poeta do absurdo” faz parte do título de um livro sobre Limeira, publicado em 1971 pela gráfica do jornal O Norte, de João Pessoa, PB.

Nas primeiras páginas desse livro escrito por Orlando Tejo, o ex-governador da Paraíba José Américo de Almeida, define Limeira como:


…Alto, forte, sorridente, impressionava pelo físico e maneiras destabocadas.

Andarilho de sete fôlegos, trazia o matulão a tiracolo e não largava a bengala de aroeira, feita um bordão.

Meio carnavalesco, usava roupa de mescla com um lenço encarnado no pescoço. Seus dedos eram grossos de anéis.

Cantando, com uma bonita voz, erguia, desdenhoso o rosto guarnecido de grandes óculos escuros…


Sobre  Zé Américo, o cantador Zé Limeira teceu loas. Exemplo:


Eu me chamo Zé Limeira,

Cabra macho do Sertão,

Serrote que serra cedra

No tupete do baião…

Se Zé Américo quisé,

Os home vira muié,

Jurema vira aigodão…


Foto e reproduções de Flor Maria e Anna da Hora


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