— A cena do boi indo pro sacrifício é feia, o moço aí já viu? Ele adivinha que vai morrer, tanto que dos cantos dos seus olhos escorre lágrima. Pode ver. E numa rápida manobra, o carrasco, poft!, dá cabo à vida dele. Tem gente que disfarça, que olha de banda; que não quer olhar. Eu olhei e chorei, como muitos amigos meus, meninos do meu tempo; de um tempo que já vai longe, e como vai!
— Jamais vou esquecer o boi entrando no matadouro, escorregando no sangue de outros bois e caindo pesado, num baque seco, surdo, sem um mugido sequer. O difícil, depois, é achar entre os corpos esquartejados a carne do boi de carro, de estimação, de brinquedo; do boi querido, do boi amigo, do boi quase irmão, do boi que virou calemba, bumbá, mamão; do boi que virou apenas uma lembrança, uma dolorosa e triste lembrança no mais fundo de nós.
— Mas é essa a sina do boi: depois de passar a vida toda puxando carro ou arando de sol a sol, morre pelas mãos assassinas do homem. Com Jesus também não foi diferente: veio para nos salvar e nós o matamos. Sem pena, sem piedade.
— Foi assim, é assim e será sempre assim. Não tem jeito. O homem é mau, o
boi é bom.
Carro de boi
Boi de carro
Carro que geme
Boi que cala
Seja no cipé,
Seja na bala
E boi, é gente
É gente, é boi
Carro, boi, gente
Na vida do sertão
- Meu coração!
Gente e boi
Boi, gente
E tudo um pedaço,
Um pedaço que sente,
Que sente que vida
É suor, é semente
Seja boi-de-reis
Seja boi-de-carro
Seja boi-calemba
Seja boi-de-barro
Seja boi-bumbá
Seja boi-mamão
Seja, meu Deus!
Bois do coração
É boi de cá
É boi de lá
Tudo é boi
É boi pra se amar
No sol e na poeira
Na subida e na ladeira
Segue o homem
Segue o boi
O carro puxando
Sobre pedra
Sobre barro
Ora aqui
Ora acolá
Sem nada reclamar
O carro, o boi, o homem
O homem, o boi, o carro
O carro geme a dor do homem
Que geme a dor do boi
Que puxa o carro do homem
Sem preguiça
— Justiça!
Sem ódio
Sem rancor
Segue assim o homem
Andando, correndo
Comendo poeira
No silêncio do trabalho
Ó, Deus!
Segue assim o homem o seu destino
A sua sina...
No cangote doido da vida Severina
(chiado de carro de boi fecha a narração)