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domingo, 21 de janeiro de 2024

O BOI NOSSO DE TODO DIA (3, FINAL)


 — A cena do boi indo pro sacrifício é feia, o moço aí já viu? Ele adivinha que vai morrer, tanto que dos cantos dos seus olhos escorre lágrima. Pode ver. E numa rápida manobra, o carrasco, poft!, dá cabo à vida dele. Tem gente que disfarça, que olha de banda; que não quer olhar. Eu olhei e chorei, como muitos amigos meus, meninos do meu tempo; de um tempo que já vai longe, e como vai!

— Jamais vou esquecer o boi entrando no matadouro, escorregando no sangue de outros bois e caindo pesado, num baque seco, surdo, sem um mugido sequer. O difícil, depois, é achar entre os corpos esquartejados a carne do boi de carro, de estimação, de brinquedo; do boi querido, do boi amigo, do boi quase irmão, do boi que virou calemba, bumbá, mamão; do boi que virou apenas uma lembrança, uma dolorosa e triste lembrança no mais fundo de nós. 

— Mas é essa a sina do boi: depois de passar a vida toda puxando carro ou arando de sol a sol, morre pelas mãos assassinas do homem. Com Jesus também não foi diferente: veio para nos salvar e nós o matamos. Sem pena, sem piedade. 

— Foi assim, é assim e será sempre assim. Não tem jeito. O homem é mau, o 
boi é bom. 

Carro de boi 
Boi de carro 
Carro que geme 
Boi que cala 
Seja no cipé, 
Seja na bala 

E boi, é gente 
É gente, é boi 
Carro, boi, gente 
Na vida do sertão 
- Meu coração! 
Gente e boi 
Boi, gente 
E tudo um pedaço, 
Um pedaço que sente, 
Que sente que vida 
É suor, é semente 

Seja boi-de-reis 
Seja boi-de-carro 
Seja boi-calemba 
Seja boi-de-barro 

Seja boi-bumbá 
Seja boi-mamão 
Seja, meu Deus! 
Bois do coração 

É boi de cá 
É boi de lá 
Tudo é boi 
É boi pra se amar 

No sol e na poeira 
Na subida e na ladeira 
Segue o homem 
Segue o boi 
O carro puxando 
Sobre pedra 
Sobre barro 
Ora aqui 
Ora acolá 
Sem nada reclamar 

O carro, o boi, o homem 
O homem, o boi, o carro 
O carro geme a dor do homem 
Que geme a dor do boi 
Que puxa o carro do homem 
Sem preguiça 
— Justiça! 
Sem ódio 
Sem rancor 
Segue assim o homem 
Andando, correndo 
Comendo poeira 
No silêncio do trabalho 
Ó, Deus! 
Segue assim o homem o seu destino 
A sua sina... 
No cangote doido da vida Severina 

(chiado de carro de boi fecha a narração)

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