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domingo, 8 de outubro de 2023

LICENCIOSIDADE NA CULTURA POPULAR (46)

Que mal haverá em contemplar um homem a possuir uma mulher? Serão os mesmos animais mais livres do que nós? Não é mister ocultar órgãos que engendraram tantas criaturas belas. Seria antes mister ocultar nossas mãos, que nos dissipam o dinheiro, fazem juramentos falsos, emprestam a juros usurários, torturam a alma, ferem e matam.
PIETRO ARETINO

O interesse pelas coisas do sexo não é de hoje, nem de ontem.
O interesse pelas coisas do sexo o homem e a mulher carregam consigo desde tempos imemoriais.
O falo sempre despertou a atenção de gregos e troianos e de todos em todo o mundo. Essa parte do homem sempre provocou admiração e prazer. Virou símbolo da fertilidade e como tal adorado e festejado em rituais pagãos na velha Grécia, na velha Roma...
Ao contrário do homem, a mulher sempre andou à sombra do próprio destino. Raramente pôde ou pode expressar seus desejos mais íntimos, como o prazer concebido pelo sexo.
O machismo não é brincadeira, não.
O sexo sempre foi objeto de especulação e também de estudo.
O polêmico Freud dizia que “O desejo sexual é uma força vital que nos impulsiona a buscar conexão e intimidade com os outros”.
O resumo da ópera freudiana é simples: tudo na vida gira em torno de sexo.
Em 1962 o paulista de Santos José Ramos Tinhorão tinha 34 anos. Com essa idade teve suas atenções voltadas ao comportamento do povo. Quis saber a origem do que se cantava e dançava nas ruas e salões, por exemplo. Foi fundo nas pesquisas. Já publicava caprichados textos em jornais e revistas.
A Tinhorão não passava em brancas nuvens o que fazia ou deixava de fazer a nobreza e a plebe de séculos passados.
Num artigo intitulado Galanteria, publicado em setembro de 1962 na extinta revista Senhor, Tinhorão discorre com desembaraço sobre licenciosidade e sexo no século 18. Atém-se à Europa, munido de
dados históricos colhidos em livros que devorou com o prazer de quem ama o que faz. Começa assim:
"O século XVIII, na França, foi um século de galanteria iluminado pelas luzes da razão filosófica".
Ao texto de Tinhorão não nos passa despercebida a forma rápida e direta que o consagraria. Era cáustico e delicado ao mesmo tempo. Adorava garimpar palavras nos dicionários, sem perder de vista a fala viva do povo. Já aqui ele tasca "galanteria" como título que tira do primeiro parágrafo da matéria que escreve. Diz que os galanteios dos varões muito facilmente conquistavam as mulheres.
Galanteios ontem, são lábias hoje.
No 2° capítulo da Primeira parte do clássico romance Madame Bovary, o autor Flaubert usa o narrador da história pra dizer lá pras tantas o seguinte:

... E pôs-se a rebuscar em cima da cama, atrás das portas, debaixo das cadeiras, tinha caído no chão, entre os sacos e a parede. A Menina Emma descobriu-o, curvou-se por cima dos sacos de trigo. Charles, por galanteria, correu e, estendendo também o braço no mesmo movimento, sentiu o peito roçar nas costas da rapariga, curvada debaixo dele. Ela endireitou-se muito corada e olhou-o por cima do ombro, entregando-lhe o chicote.
O referido livro começou a ser escrito em 1851 e cinco anos depois foi publicado em capítulos no periódico Revue de Paris, a partir de 1º de outubro.
No texto Galanteria, Tinhorão prossegue:
"Como os grandes pensadores haviam chegado à conclusão de que à filosofia cabia a tarefa de indicar o caminho da felicidade para o homem, os amantes depreenderam que ao amor cabia indicar, logicamente, o caminho do prazer. E foi assim que, numa síntese perfeita, metade do pensamento e da literatura francesas de 1700 à Revolução surgiu dentre lençóis, não sendo por acaso que o médico e filósofo La Mettrie (1709 - 1751) publicaria em 1751 o seu conhecido livro L'art de Jouir (A arte de gozar)".
Pois bem, no texto para a extinta Senhor Tinhorão continua com o propósito de fazer um retrato da sociedade do século 18 na Europa. Cita filósofos, poetas e pintores. A Paris daquele século é destaque. De um modo ou de outro ele insere em ambientes de putaria personagens como Sade, Casanova, Luís XV. Cita autores como Rétif de la Bretonne e a memorialista Mme. d'Epinay, que a certa altura de suas narrativas destaca a fala de uma mulher:
"...Veja, marquês: o meu pudor é como o meu vestido, só o prendo em mim por alfinetes que, ao menor esforço... E, unindo o gesto à palavra - é Mme. d'Epinay quem conclui - abre suavemente as sedas que lhe encobrem o seio, numa gentil demonstração do seu argumento".
O nome completo de Mme. d’Epinay era Louise Florence Pétronille Tardieu d'Esclavelles d'Épinay (1726-1783), nasceu em Valenciennes e como escritora tornou-se famosa no seu tempo. Entre seus amigos se achavam Diderot, Rousseau e Voltaire.

Foto e ilustrações por Flor Maria e Anna da Hora.

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