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sábado, 22 de fevereiro de 2025

LICENCIOSIDADE NA CULTURA POPULAR (169)

Dante Alighieri teve uma Beatriz como musa inspiradora. Não foi correspondido.

Francesco Petrarca teve uma Laura como musa inspiradora. Não foi correspondido.

O fato, porém, de esses italianos não terem sido correspondidos pelas respectivas musas não significa que guardassem qualquer tipo de ressentimento. Ao contrário. Tanto Dante quanto Petrarca escreveram belos textos inspirados nas duas musas. Quer dizer: ambos platônicos.

A expressão “amor platônico” data de tempos um tanto distantes, quando filósofos reuniam-se para beber e discutir a vida na velha Grécia. Platão na parada, Sócrates na parada e tantos outros abrindo portas para entendermos as complicações provindas da nossa alma.

Quem leu o Banquete sabe disso. Essa história nos leva a entender os passos que quase sempre damos pra trás. 

Quando há correspondência do amor entre amantes a vida certamente fica muito melhor. Para ambos.

Sorte essa teve o paraibano José Nêumanne Pinto. Apaixonado pela musa querida Isabel tem sido completamente correspondido no amor a ela dedicado. 

Dito isto, digo mais: Eros, Dalila e Sansão misturam-se num banquete com caju, inhame, cuscuz e ovos, queijo de manteiga e carne de sol, castanhas de caju primorosamente preparados e servidos pelo poeta, que também adora comer tudo isso.

Pra ficar melhor ainda esse banquete de amor e alegria, uma violinha ao fundo enfeita tudo.

Nós, pobres mortais, temos mais é que tecer louvores pela existência de dona Isabel por ter inspirado tão belo poema. E chega de prosa, vamos aos versos:


Manual de pintura, cartografia e anatomia

Ou melhor: corpo, alma, dengos e coração da mulher amada


Aqui entre nós Maria Isabel,

a rainha, a mãe, a tia,

a neta, a filha, a poesia;

Pimentel de Castro,

herdeira de engenho,

norte de bússola,

linha do Equador.

Recolhida ao solar de taipa

dos Pinto do Rio do Peixe,

que não tem água nem peixe,

balança na rede de Mãe-Inda,

egressa de outras trempes,

outros cantos, outros tempos

e mais cem anos de solidão.

À sombra das mangueiras,

em moagens de rapadura,

alfenim e cana de cabeça,

na Baixa Verde do clã Ferreira;

e à mesa farta de fruta e pão

de Maria Moreira, na feira sem beira

lá do sem fim do sertão.


Ao norte, esta minha amada

tem dois cérebros de pensar:

um é o templo da deusa Clio,

com seu passado em ordem.

O outro, o altar do bobo Eros,

sob desordens do amor a fazer,

oculto na cortina de cabelos,

que envolve seu crânio

em novelos de fios de ouro,

finos, macios e lisos,

a vigiarem esmeraldas

- dois sóis de ondas do mar,

dois canhões de raios laser,

um casal de araras mudas,

um par de periquitos de estimação.

Os olhos canavieiros de Isabel

ninguém consegue esquecer.

A testa da mestra amada

é feito caixa de Pandora,

proibida de ser aberta,

pois abriga legiões de César,

dispara guilhotinas de Marat,

espouca em cometas e fogos,

revela os segredos de Fátima

e espera dom Sebastião chegar.

As sobrancelhas de Isabel,

que a coroam rainha de Sabá,

protegem a harpa de Davi,

caçoam do saber de Salomão

e contêm a arca da aliança,

da nova e da velha aliança,

da Bíblia, da Cabala, do Alcorão.

No desenho dos lábios que beijo

o Criador traçou as rotas

de caravanas cruzando desertos

a buscarem oásis perdidos

sonhados em delírios nômades

dos contos de Sheherazade,

esquecidos ao acordar.

E boca mais linda não há!

(A voz grave que a esta chega

direto das cordas vocais

- com sensual toque masculino -

dá aulas do que passou

e fantasia o que virá.

Sua palavra traduz o que sente

e entrega o que promete.

Suas sentenças reproduzem

o que aprendeu e o que viverá).

E a perfeição vive em plena

e complexa harmonia

entre os lábios que a compõem

e o queixo em que se precipita

- à frente, o pescoço esguio

e atrás, a nuca solerte e alerta.

Mas tudo seria incompleto

sem seu nariz imperfeito,

que não aponta pra cima

para a ninguém humilhar.

E sem o labirinto das orelhas,

com curvas de risco

e contornos imprevistos,

que nunca levam ao Minotauro.


Sob a cabeça da amada,

ombros sustentam o peso do mundo

com a malícia de Dalila

no corte das madeixas de Sansão.

Seu colo é o vale de lágrimas,

o Muro das Lamentações

de uma Jerusalém particular.

É, também, o adro da devoção

onde o Crucificado agoniza

antes de o lavar o pranto da mãe.

Dos ombros partem braços,

endereços de nosso abraço,

que abarca a história inteira

quando ela vem se repetir:

meus bancos no seminário,

as aulas de português

de Argentina e Francisca Neuma

no Estadual da Prata,

seus passeios de bicicleta

com Cacá, no Junco do Seridó,

onde eu costumava tomar café

no posto de João Galo,

com inhame, cuscuz e ovos,

queijo de manteiga e carne de sol,

castanhas de caju à beira do asfalto

nas curvas da Serra da Viração,

onde almas penadas dançam o baião.

Deles pendem duas mãos pequenas,

com palmas fofas e cheirosas

sob dorsos firmes e bem feitos,

onde pousam aves e beijos

e descem foguetes e aviões.

Mãos que indicam caminhos

e entregam dádivas,

dedos que encurtam distâncias

e recolhem afagos

com suas unhas de cor viva

e nós fortes de massame.

Mãos de menina simples

com meneios de mulher

e feitiços de anjo-bruxa.

Suas clavículas foram feitas

somente para impedir

aos ousados o acesso abusado

a seios sensíveis ao toque

e aptos ao exercício de sugar

e lamber e beijar e chupar

para apenas um par de mãos

e uma língua só que desvende

mistérios de um gozo secreto

que ela pensava ter perdido.

Não é pra qualquer um,

É pra pouco, é só pra um.

(Dentro do peito pulsa o coração,

músculo de bondade e malícia,

capaz de muito mais amar

e se deixar amar em profusão).

(Lá dentro do tal órgão vital,

sopra sua alma capaz

de se entregar e se integrar,

mas só a quem decida amar).


No meio do ventre de Isabel,

o umbigo é o centro do universo.

Foi lá que Marco Polo achou

a trilha do Adriático ao Oriente.

E nele o genovês descansou

antes de singrar ondas no Caribe.

É o miolo do cogumelo atômico,

que caiu em Hiroshima, meu amor.

O reverso do dorso desta mulher

são suas costas de planícies

e nelas a vista se perde

sem tropeçar em contrastes

nem escorregar em lombadas.

Costas sem areia ou pedras

às quais o mar só chega

se ela chegar ao mar.


De um lado, a cintura de Isabel

introduz a gruta de mucosas

sob um bosque de pelos

e é ali que Eros foi morar

com sua destilaria de mucos,

que só ao iniciado cabe provar,

e sua confusão de odores

que uma inteira encarnação

não basta para identificar.

A origem de minha vida

passa por pétalas de rosas

que não me canso de admirar.

Do lado de trás, o Aleph,

orifício de onde tudo se vê,

mesmo o que não existe,

mesmo até o que não se vê,

artifício de uma beleza peculiar

que a nada mais é dado ter.

É o vale mais profundo

entre dois morros simétricos

que o ocultam e lhe dão valor.

Nada é demais ou de menos

nas nádegas de minha mulher:

na parábola de suas ancas,

em que convivem em paz

formas de côncavo e convexo,

tudo está em perfeita ordem,

embora elas provoquem o caos,

a desídia e o conflito nuclear.


Na vida toda nunca pude ver

membros inferiores tão belos

como os que ela tem, acredite.

Em palco, tela, sala ou cama,

mesa, desfile ou via pública,

onde mais pudesse haver,

nada me pareceu ter existido

com que se pudesse comparar:

nem as coxas de Norma Bengell

no filme exibido no Capitólio.

nem as pernas de Cyd Charisse

dançando com Fred Astaire.

Entre coxas e pernas

joelhos discretos, de matar

de inveja os de Nara Leão.

Quando vi pela primeira vez,

julguei que fossem miragem,

que nem pudessem existir.

E a ninguém careço convencer.

Pois é assim que vejo.

E assim é que são:

do magnífico traseiro,

de que descem,

aos pezinhos delicados,

com que só pisam o chão

depois de esmagar minha dor

e perdoar minha perdição.

Seus pés são asas de andorinhas,

sem as quais o inverno não parte,

sem as quais nunca chega o verão.


Ao sul Maria Isabel se dirige

para partilhar o maná caído do céu

e o pão que o diabo amassou,

a par de que vida é pra viver

e não há tempo que se possa perder.


Poema extraído do livro Antes de Atravessar

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