A Folha de S.Paulo é o resultado da fusão dos jornais Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite.
Em abril de 1958 o repórter alagoano Audálio Ferreira Dantas foi escalado para fazer reportagem na favela do Canindé, localizada à margem esquerda do rio Tietê, na capital paulista. Canindé é um tipo de ave que habita região de brejo.
Seria uma reportagem como tantas. O detalhe é que o discreto e antenado repórter teve a atenção voltada para uma mulher negra de 44 anos. Ela, segundo ele, ameaçava aos gritos inserir nomes de seus desafetos no livro que estava escrevendo. Curioso, o repórter aproximou- -se da mulher e logo depois teve acesso aos escritos dela. “Eram muitos cadernos cheios de histórias interessantes”, disse-me Audálio um dia. Mas para ganhar forma de livro era preciso uma boa revisão e edição das histórias. E isso ele fez, não do dia pra noite. Mas fez. Antes, porém, publicou uma reportagem de página inteira na Folha da Noite. De cara, dizia a chamada: “O drama da favela escrito por uma favelada”.
A reportagem, ilustrada por fotos de Gil Passarelli (1917-1999), foi publicada no dia 9 de maio de 1958.
A referida favelada ganhou fama imediatamente no Brasil e no exterior, aparecendo noutras publicações, entre as quais O Cruzeiro. Mergulhado na leitura dos cadernos de Carolina Maria de Jesus, Audálio deles extraiu o livro Quarto de Despejo, que a livraria Francisco Alves publicaria em 1960. “Fácil, fácil, o livro alcançou a fabulosa tiragem de 100 mil exemplares”, contou-me Audálio.
O livro recebeu dezena e meia de traduções nos Estados Unidos, Alemanha, Japão, França e Holanda.
“Eu não entendo por que estão acusando o Audálio do que não fez”, comentou o cartunista Fausto Bergocce, depois de ler pra mim o texto publicado na Folha. “Até onde eu sei, Audálio foi um anjo que caiu do céu na vida de Carolina”, acrescentou.
Fausto está totalmente correto.
Sem Audálio, Carolina Maria de Jesus teria passado em brancas nuvens por estas plagas. É o que também pensa e assina o cordelista cearense Klévisson Vianna. Acrescentando: “Era natural do Audálio ajudar a muita gente. Eu mesmo fui muito ajudado por ele, que falou muito bem de mim ao Jô Soares, de cujo programa participei”.
Audálio Dantas tem sido acusado de ser o autor de Quarto de Despejo. “Essa é uma inverdade que salta aos olhos”, disse-me uma vez. A seu favor, lembrou: “Até o poeta pernambucano Manuel Bandeira (1886- 1968) comentou o assunto”.
Na matéria da Folha, a impressão que fica é que há alguém interessado em manchar a imagem do repórter que descobriu Carolina. O que ele fez, e fez como cidadão, foi ajudar como pôde aquela mulher portadora de grande talento literário. Talento espontâneo.
“O que há nessa história é um grande jogo de interesses mercadológicos”, entende
o jornalista Tiné.
Ao contrário do que algumas pessoas dizem, Audálio Dantas sempre levou uma vida
modesta. Gastava o que ganhava como qualquer cidadão casado e com filhos. E como
cidadão e trabalhador ganhava e perdia emprego.
Depois que perdeu o emprego na Eletropaulo, antiga Cesp, ficou sem eira nem
beira. E um dia me telefonou pedindo para o avisar se soubesse de alguma
colocação. Perguntei-lhe se queria trabalhar comigo, ser meu chefe. Embora
zonzo, topou. E foi assim que trabalhamos juntos no Departamento de Imprensa do
Metrô de São Paulo por uns quatro anos.
No ano seguinte à publicação de Quarto de Despejo, a favela do Canindé deixou de
existir. Detalhe: depois de ler a reportagem de Audálio, o radialista paulistano
Raul Duarte (1912-2002) compôs o samba
No Meu Canindé. Esse samba foi gravado (Odeon) pela cantora Alda Perdigão no dia 24 de
setembro de 1958 e lançado à praça três meses depois.
Ainda em 1961, Audálio Dantas abriu caminho para Carolina Maria de Jesus gravar
um LP pela extinta RCA Victor. As letras são todas dela, por ela mesma
interpretadas. Tratam do cotidiano do lugar onde morava. São sambas, marchas,
batuques e até um baião. Título: Quarto de Despejo. Destaque para Vedete da
Favela, um autorretrato… A contracapa desse LP é assinada por Audálio.
Audálio Ferreira Dantas foi um dos mais importantes jornalistas e escritores do nosso País.
Em 1956 Audálio foi pautado pra cumprir o lançamento do livro Grande Sertão: Veredas, do mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967). João recusou-se a dar entrevista, mas mesmo assim o repórter fez uma belíssima cobertura do lançamento.
Depois de muitas entrevistas e reportagens, Audálio seguiu carreira na revista Realidade.
São muitos os livros de Audálio. O último foi as As Duas Guerras de Vlado Herzog. Curiosidade: pra fechar o livro, o autor precisava entrevistar o cantor e compositor Geraldo Vandré, mas não conseguia localizá-lo. Eu disse: vai algum dia lá em casa que você conseguirá. E assim foi feito.
Atenção: está mais do que na hora de Audálio ter a sua história contada em livro. Enquanto isso não é feito, dedico-lhe o poema abaixo:
O Brasí é um barquim
Levano, trazeno gente
Daqui pralí, dali pracá
Nesse eterno vai-vem
Muita gente cai no má
Muita gente vai pro céu
Sem saber que trem tem lá
Desse jeito o Brasí vai
Se balançano no má
Pareceno u’a donzela
Convidano pra dançá
Esse barco já levô
Muita gente além do má
Já levô Audáio Dantá
Valdi Tele e Jão Bá
Barquero desse barco
Castro Alve foi pro má
Levano o bão Bandeira
Pra um dedo prosiá
Charge de Fausto Bergocce por ocasião da morte de Audálio (maio de 2018) |
Nesse barco foi pro má
Quereno sabe untudo
Querendo sábi ficá
Há muito ele nasceu
Num belo berço do má
Andô, correu pirigo
Mas sempre sôbe lutá
Lá vai ele
Leve e livre no má
Garboso, sinhô de si
Com o céu a li guardá
Viva o Brasí barquinho
Na sua missão no má
Levano, trazeno gente
Daqui pralí, dali pracá
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