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segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

SÃO PAULO EM PROSA, VERSO E MÚSICA (8)

 Olhares sobre São Paulo
Assis Ângelo pediu a alguns de seus “considerados” que enviassem depoimentos sobre São Paulo. 

Eles estão reproduzidos a seguir:

São Paulo em notas e versos

A presença e a contribuição de Assis Ângelo na cultura nacional estão consagradas na sua vasta obra de pesquisador e de artista. O seu esforço em reunir cerca de três mil músicas e composições de alguma forma relacionadas com a cidade de São Paulo constitui um reconhecimento à altura da metrópole fundada pelos jesuítas Manoel da Nóbrega e José de Anchieta e que se tornou símbolo e síntese da grandeza do Brasil. A alma nordestina e a brasilidade de Assis Ângelo ganharam asas e inspiração em São Paulo, e o apreço pela cidade mobilizou o pesquisador na busca das demonstrações de carinho e amor de tantos quantos músicos e compositores tomados pela mesma paixão. Assis Ângelo deve a São Paulo o acolhimento generoso que recebeu, e São Paulo deverá para sempre ao ilustre paraibano de João Pessoa o acervo musical de merecidas homenagens.

Aldo Rebelo − Jornalista e escritor

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Encantos de São Paulo

Uma cidade tão grande e diversa e produtiva quanto São Paulo haveria de ser inspiração para farta produção de música diversa e, muitas vezes, grande. A Pauliceia e muitos de seus bairros e logradouros − a Praça da Sé, a Avenida Paulista, o aeroporto de Congonhas, o estádio do Pacaembu, a Mooca, a Pompeia − têm inspirado tantas obras musicais quanto as atrações cariocas, excelentes cartões de visita para passeio e lazer, ao passo − passo bem paulistanamente ligeiro − que os encantos de Sampa refletem esforço, trabalho, luta pela vida, até o prazer é conquistado. Este que vos escreve precisou aprender a entender a cidade onde nasceu para vir a gostar dela. Vivi dos 12 aos 22 anos no interior paulista, sempre reclamando da poluição, agitação e neurose da “capitár”. Mas, uma vez de volta, em dois anos me assumi de vez como paulistano. E, como compositor, já escrevi algumas dezenas de canções, quase sempre bem-humoradas, sobre a terra onde a garoa é mais garoa.

Aqui vai uma de bom humor lírico: 

Ayrton Mugnaini Jr. – compositor

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I Love that Dirty Water

Em 1991, como correspondente de The Financial Times, fui convidado para fazer parte de um grupo minúsculo de jornalistas, quase todos brasileiros, que se encontraria com o governador Luiz Antonio Fleury Filho. O governador anunciou um empréstimo então recorde do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para a despoluição do Rio Tietê. Fiz uma matéria relativamente extensa para aquele grande jornal inglês. Tanto dinheiro para um projeto ambiental era inédito. Depois, Fleury prometeu beber água do rio no ano 2005. Nada disso. Em 2007, em parceria com a TV PUC São Paulo, recorri quase todo o rio, desde a fonte (onde, sim, eu bebi um copo de água) até lá longe, no interior, onde o rio finalmente voltava a desfrutar a vida. Acompanhei uma peça de teatro flutuante dento da cidade de São Paulo, uma iniciativa que simbolizava a importância cultural do rio para a metrópole. Ao pousar em Guarulhos no final do ano, vindo de Paris, para minha primeira visita desde o começo da pandemia, vi a triste realidade: milhões de dólares e duas décadas depois, o rio continuava morto. 

O título acima vem da música de mesmo nome pelo conjunto The Standells, gravada em 1966:

 

Os roqueiros cantavam o Rio Charles, de Boston. Naquela época, quem caía no rio da cidade de Boston era encaminhado para o hospital. Hoje você pode nadar no Rio Charles. Até quando esperar para a volta do Tietê? 

Bill Hinchberger – jornalista norte-americano

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Um pulo em São Paulo

O sonho de quase todo garoto do interior do Brasil é ir para cidade grande. Para um garoto do sertão baiano, o destino, no sonho desse garoto, é São Paulo. Comigo não foi diferente. No Paiaiá, povoado do município de Nova Soure (BA), vivi até os meus 21 anos de idade. Mas desde a infância São Paulo já passeava na minha imaginação. Um dia dou um pulo em São Paulo, pensava, ao ver muita gente chegar de férias e com um novo visual. No dia 10 de janeiro de 1999 desembarquei no Terminal Rodoviário do Tietê. Do espanto inicial, por contemplar o vaivém dos carros, o pra lá e pra cá de um monte de gente apressada que parece não encontrar seu destino, há uma relação de amor e muito afeto. São Paulo é minha segunda casa. Depois do meu Paiaiá, é a cidade que mais amo. A cidade onde aprendi o pouco que sei; cidade que continua a me ensinar. Obrigado, São Paulo!

Carlos Sílvio Ramos – radialista (Paiaiá na Conectados)

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Vim-me embora pra São Paulo

 Vim-me embora pra São Paulo. Aqui não sou amigo do rei. Aqui não tenho a mulher que eu quero nem a cama que escolherei. Vim-me embora pra São Paulo. Lá, no sertão baiano de Nova Soure, eu não era infeliz. Aqui a inexistência é uma desventura de tal modo pertinente que Getulio Vargas, do Sul, rei e falso dirigente, vem a ser contraindicado até para a sogra que já tive. E como não farei academia, não andarei de motobói, não montarei em viatura braba da Rota, não subirei em arranha-céus, não tomarei banhos de enchente? E, quando não estiver cansado, levanto na beira do rio Tietê, mando chamar os bueiros de esgoto pra me desmentirem as histórias que, no tempo de eu adulto, a Turma da Mônica jamais iria me contar. Vim-me embora pra São Paulo. Em São Paulo, não tem tudo. É outra esculhambação. Não tem um processo seguro de impedir o assalto e qualquer violação. Não tem mais bondinho elétrico, não tem mais madrugadas à vontade. Não tem mais acompanhantes vestidas para a gente azarar. E quando eu estiver alegre, mas alegre de ter um infarto na poluição, quando na garoa da manhã me der vontade de viver, aqui não sou amigo do rei, não terei a mulher que eu quero nem a cama que escolherei. Assim mesmo e apesar de tudo, vimme embora pra São Paulo.

Darlan Zurc − historiador

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Por que estou em São Paulo

 Só podia ser uma cidade com nome de um santo – São Paulo – a que me acolheu, depois de longos anos de batalha nesta minha vida. São Paulo, você vem me dando tanta alegria e profissionalismo que não me vejo saindo daqui pra morar em outro lugar! Aqui, eu consolidei minha carreira de músico, cantor e compositor; conheci pessoas; conquistei espaços para criar e implantar muitos projetos educacionais e culturais! Aqui, eu criei meus filhos, minha família e fiz grandes amigos... e me criei como cidadão! Eu até fiz músicas pra São Paulo!... Uma, São Paulo, Esquina do Mundo, com o jornalista e escritor Assis Ângelo, e a outra, Cruzando a Pauliceia, com o músico Fubá! Além, claro, de tocar e cantar, em shows com Tom Zé, duas grandes músicas feitas para a cidade, que são: Augusta, Angélica e Consolação e São São Paulo. Agora, SÃO PAULO, continue me acolhendo e me ensinando a ser uma pessoa cada vez melhor! Obrigado, São Paulo!!!

Jarbas Mariz – músico, cantor e compositor

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Valsa Paulistana

 No ano de 2005 foi criado na cidade de Salzburg, na Áustria, o Instituto Karajan, na casa onde nasceu o maestro. Nesse Instituto estão armazenados todos os dados e documentos da vida e carreira do maior maestro da segunda metade do século XX em todo o mundo. O Instituto é um centro cultural que promove hoje os mais diversos eventos e atividades culturais. Quando ele foi inaugurado, em 2005, um grupo de instrumentistas da Filarmônica de Berlim − orquestra que ele regeu por mais de três décadas − foi convidado para participar da festa de inauguração, já que a orquestra inteira não caberia na casa. Esse grupo de instrumentos de sopro pediu-me que escrevesse uma peça bem brasileira para animar a festa de inauguração. Pois bem. Enviei a eles a mais brasileira das músicas, uma valsa. Uma Valsa Paulistana. Os alemães morreram de rir. Como uma valsa “bem brasileira” para a “terra da valsa”?
Mas, a nossa valsa não tem nada a ver com as valsas vienenses, dançantes, festivas. Nossa valsa, de estilo paulistano, é sentimental, lenta, chorosa... Bem. A Valsa Paulistana foi executada, com enorme sucesso, e gravada pelo Quinteto de Sopros da Filarmônica de Berlim, selo BIS 952. O CD chama-se Summer Music. Essa valsa para quinteto de sopros foi acrescentada a uma suíte de nome Belle Époque in Süd-Amerika, juntamente com um tango e um choro. A partitura completa dessa suíte encontra-se gratuitamente no site Musica Brasilis. 

Júlio Medaglia − maestro

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Memórias de São Paulo

Cheguei em São Paulo num frio domingo de março de 1978. Eu conhecia a capital paulista dos postais que mostravam uma cidade com muitos prédios, uma linda praça, a República, e a Avenida Paulista, com seus arranha-céus futuristas. Ao descer do ônibus, em Cumbica, bairro de Guarulhos, então com ruas de terra e grandes muros, típicos de uma região industrial, me decepcionei profundamente: “Como São Paulo é feia”, pensei. Somente meses depois passaria a conhecer, de fato, a cidade, como office-boy de uma agência de turismo sediada na Praça da República. Me apaixonei perdidamente, como era de se esperar. São Paulo, a mais cosmopolita das cidades brasileiras, me ofereceu uma profissão, de jornalista e professor, uma boa condição de vida, uma filha, a querida Júlia, e o gosto pela história, adquirida no tempo em que trabalhei cuidando da estante da área em uma livraria, e na condição de repórter de dois jornais, Estadão e Diário Popular, em que escarafunchei essa cidade de alto a baixo. Enfrentei, claro, muitas dificuldades, típicas de um forasteiro tentando se estabilizar − no caso, de um pernambucano do sertão, em plena metrópole −, mas sempre deu certo. Enfim, fico contente em saber que, depois de 42 anos, conquistei a tão sonhada “cidadania” paulistana e estou, a cada dia, mais apaixonado por esta grande cidade. Abraços a todos e todas conterrâneos. 

Moacir Assunção – jornalista 

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São Paulo de todos nós

 Realmente, São Paulo é do mundo todo. Nas pesquisas, São Paulo é a quarta maior cidade do mundo em população, mas em se tratando de espaço, cidadania, trabalho, liberdade, paz e amor, para mim ela é a maior do mundo. Porque, além do trabalho, ela tem de tudo que um ser humano precisa para viver ou sobreviver. Para isso basta que lhe seja um cidadão que respeita o direito de ir e vir, que vive e deixa os outros viverem. Sou mineiro de Alto Belo, distrito de Bocaiúva, no norte do estado. Fui para São Paulo em 1969, e por lá estou até hoje. Rodei o Brasil todo. Estive em Portugal, mas São Paulo nunca saiu do meu coração. Tudo que tem pelo mundo afora você acha em São Paulo. Pra viver em São Paulo basta saber navegar, não importa se é rico ou se é pobre. Fiz mais de 30 músicas em homenagem a essa gigante de cimento e continuarei até o fim dos meus tempos exaltando os paulistas e os paulistanos. A minha carreira artística eu devo muito a essa cidade fantástica e sua gente. A minha eterna homenagem a São Paulo. 

Téo Azevedo – músico, cantor e compositor

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Bilhete paulistano para Assis Ângelo 

No início da carreira, algumas dificuldades me levaram a fazer o que eu chamava de “reportagem cantada”. Primeiro foi em Irará, com as pessoas e casos de lá. Depois, em Salvador, com seus personagens históricos, monumentos que são muito vivos etc. Quando cheguei em São Paulo, eu, que componho sobre meu entorno, fiquei sem saber a que me referir nos primeiros dias. O que me salvou foi que na rua 7 de Abril entrei para ver um filme chamado São Paulo S/A, de Luís Sérgio Person. Mudou completamente o meu jeito de ver a cidade e seus problemas. Comecei a escrever as canções que fizeram meu primeiro disco, chamado Tom Zé – Grande Liquidação. Ou seja, continuei, como era e é meu costume, a fazer canção sobre o que está à minha volta. Essa “liquidação” tematiza a explosão da venda a crédito, que anteriormente era uma maldição para o comércio. Circulava até um dito: “Fiado, cinco letras que choram”. Mas o fiado passou a ser uma insistência. No dia 21 de abril de 1968, quando acordei e cheguei à porta de casa, estava fazendo muito frio. Frio mesmo, que hoje não faz mais.
Eu estava na Rua Conselheiro Brotero e me dirigi para a Alameda Barros. No meio do quarteirão havia uma banca de revistas e nela, uma grande manchete: Prostitutas invadem o centro da cidade. Em vez de tremer frio, comecei a tremer de emoção. E naquele instante me ocorreu toda a forma da canção São São Paulo, Meu Amor. Quando você encontrava uma pessoa ela quase imediatamente começava a falar mal e a enumerar os defeitos de São Paulo. Achando que assim se identificava, mostrando que estava “por dentro”. Reuni esses “defeitos” e discuti-os no refrão. Tá bom, Assis Ângelo, pode chamar tudo isso que falei de “paixão por São Paulo”. 

Tom Zé – músico, cantor e compositor

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Bairros de São Paulo em cordel

A Editora Nova Alexandria de São Paulo desafiou há uns dez anos o poeta, cordelista e cantador Cacá Lopes a escrever a história dos bairros da cidade em cordel, para publicar no site da empresa com o título Bairros de São Paulo em Cordel. 
Cacá aceitou o desafio e escreveu de oito a dez estrofes em sextilhas sobre uns 30 bairros, tendo publicado três em gráfica: as histórias de Guaianases, Itaquera e São Miguel Paulista. Os folhetos sobre a Freguesia do Ó e Francisco Morato estão no prelo. Também já publicou cordéis sobre as cidades de Cajamar e Louveira, no interior paulista, distribuídos nas escolas e bibliotecas da região.
Em outra obra poética, o cordel Palavras de Origem Tupi Guarani, que publicou em parceria com Josué Gonçalves, pela Editora Cordel, do mestre Kydelmir Dantas, Cacá Lopes cita em versos os seguintes locais e bairros de Sampa: Anhangabaú, Aricanduva, Cambuci, Arujá, Anhanguera, Ibirapuera, Iguatemi, Butantã, Jaçanã, Guarapiranga, Sumaré, Canindé, Morumbi, Mooca, Itapecerica, Tremembé, Ipiranga e Jabaquara, entre outros.

Cacá Lopes, músico e cordelista

Viajando na história 
Fui de aluno a professor, 
Sobre alguns bairros paulistas 
Que pesquisei com ardor, 
E agora neste Cordel 
Repasso para o leitor.



Brás

O migrante é povo forte
Busca o sonho, é capaz,
Foi assim que muita gente
Deixou tudo para trás,
E veio para São Paulo
Para trabalhar no Brás

Esse distrito que está
Bem na Região central,
À leste do centro histórico
De São Paulo capital,
Nas terras de José Brás
Que se tornou imortal.



Santo Amaro

No universo dos versos
Cada verso eu encaro,
Laço, teço, ouso, busco
Meço, rimo, nunca paro,
Chego, canto a Zona Sul
Começo por Santo Amaro

Aldeia de Jeribatiba
Tantas vezes visitada,
Por José de Anchieta
Firme na sua jornada,
Sobre a criação da vila
Após ser catequizada



São Miguel Paulista

Mais um bairro de São Paulo
Acrescento em minha lista,
Ao descrevê-lo em cordel
À memória se avista.
Minha homenagem em versos
Para São Miguel Paulista

Feche os olhos, imagine
Como tudo começou,
De’um aldeamento indígena
A vilinha se formou,
Narro poeticamente
Quem o lugar desbravou.


Cidade Tiradentes

A Cidade Tiradentes
No fundão da capital,
Um conjunto periférico
E monofuncional,
Tipo bairro dormitório
De proporção sem igual.

Na América Latina
É tido como o maior
Complexo habitacional
Com conjuntos ao redor,
Do bairro que a cada dia
Em “infra” fica melhor.


Capão Redondo

Capão é uma porção
De mato quase isolado,
No meio de um grande campo,
Já o bairro retratado,
Do tupi – mato redondo
Vem o seu significado.

O nome Capão Redondo
Foi dado por moradores,
Os primeiros habitantes
Fortes colonizadores,
Também praticavam caças
E eram bons pescadores.



Itaquera

Itaquera – Zona Leste
Seu povo quero saudar!
Trago um canto diferente
E quero lhe ofertar,
Um Cordel com sua história
À memória do Lugar

Itaquera é pedra dura
Vem do Tupi Guarani,
Dizem que Tomé de Souza
Um dia passou aqui,
Pela estrada de Santos
Próxima do Iguatemi.



Paraisópolis

Povo de Paraisópolis
Estou chegando pra rimar,
A história desse bairro
Na cultura popular,
Convido você leitor!
Para no tempo voltar.

O processo começou
Lá na década de cinquenta.
A colônia japonesa
Toma posse e logo tenta,
Transformar as suas chácaras
De grileiro não se isenta

domingo, 30 de janeiro de 2022

SÃO PAULO EM PROSA, VERSO E MÚSICA (7)

A vida escrita em cordel
Entrevista de Assis Ângelo com Peter Alouche

Assis Ângelo − Que eu saiba, você, além de engenheiro, se formou em Letras Francesas pela Université de Nancy (França). Foi naquela época que escreveu um poema dedicado ao general de Gaulle [NdaR: presidente da França de 1944 a 1946 e de 1958 a 1969] e que ele apreciou muito? Fale a respeito. 

Peter Alouche − O poema que escrevi dedicado ao general de Gaulle foi muito anterior ao meu curso em Nancy. Foi em 1960, eu era adolescente, recém-chegado ao Brasil, e admirava muito a coragem, a bravura e o patriotismo desse grande líder francês que eu conhecia e ouvia pelo rádio. Depois de um discurso inflamado que ele dirigiu à nação, durante a guerra da Argélia, decidi escrever esse poema e, com coragem, enviá-lo por carta a ele. O poema chama A vitória e a ambição nacional. A última estrofe, que vou traduzir, diz o seguinte: 

Mais qui es-tu, Soldat, qui m´a rendu la gloire, L´Honneur, la Force, la Victoire Et l´Unité, quén vain, recherchait ma Nation? “FRANCE, je suis ton Ambition” (“Mas quem és tu, Soldado, que me devolveu a Glória, A Honra, a Força, a Vitória E a Unidade que procurava minha Nação? “FRANÇA, eu sou tua Ambição”)

Fiquei surpreso e orgulhoso de receber em resposta uma carta da Presidência da República da França, em 24 de fevereiro de 1960 (coisa absolutamente inédita, como fiquei sabendo), com os seguintes dizeres:

“Senhor, Sua carta e seu poema, inspirados pelo amor que tens pela França, tocaram o Général de Gaulle. Ele me encarregou de lhe dizer e de agradecer pelo testemunho que você lhe trouxe. Queira receber, Senhor, a expressão de meus distintos sentimentos.” 

Assis − Você nasceu no Egito, mas sua principal língua é o francês. Por quê? 

Peter − É simples de explicar. Naquela época, no Egito, as classes média e alta, em especial os cristãos do Egito (sou católico do rito bizantino), como todos os descendentes de europeus, estudavam em escolas francesas (muitas religiosas). Eu estudava nos jesuítas. Todas as matérias eram dadas seguindo o curso francês e, em paralelo, o curso árabe. Mas na escola só se podia conversar na língua de Molière. O interessante é estudar os fatos históricos (como a campanha de Napoleão no Egito) sob dois prismas antagônicos. 

Assis − Você trocou a sua terra pelo Brasil. Quando e por quê? 

Peter − Esta é uma longa história. Vou tentar resumir. Na época, houve no Egito a Revolução de Nasser, que derrubou o rei Farouk e estabeleceu uma república islâmica. Embora 10%¨da população egípcia fossem cristãos (coptas), a situação para os não muçulmanos (cristãos e muito mais os judeus) tornou-se muito difícil. Meu tio, irmão de meu pai (que tinha falecido), era arcebispo da Igreja Católica Bizantina em São Paulo. Foi ele quem construiu a Igreja Nossa Senhora do Paraíso. Preocupado com o noticiário que chegava do Egito, nos mandou vir para o Brasil, deixando tudo para trás, bens e dinheiro. Não se podia sair do País naquela época com dinheiro. Viemos ao Brasil, minha mãe com sete filhos, em parte menores. Fomos recebidos como deuses por meu tio. Infelizmente, dois anos depois ele morreu e aí fomos abandonados à própria sorte. Foi muito, muito difícil no início, mas, graças ao bom Deus, vencemos.

Assis − A poesia e a cultura popular andam junto com você, sempre. Por quê?

Peter − Embora tivesse me formado engenheiro e até lecionado Engenharia por 25 anos, nas Faculdades Mackenzie e Faap, a cultura literária e a poesia sempre foram minhas companheiras. Gostava de ler, principalmente em francês (li Jorge Amado em francês), porque acho que o francês é uma língua mais dada à cultura. Molière, Victor Hugo, Rimbaud e Baudelaire que o digam. Dou mais valor ao meu diploma de Letras de Nancy do que à minha pós-graduação em Engenharia na Politécnica. Esta me dava os recursos para trabalhar. A outra me dava os recursos da alma.

Assis − Você fala muitas línguas e tem textos publicados no Brasil e no exterior, mas não publicou um livro até hoje. Por quê? 

Peter − Escrever um livro sempre esteve nos meus projetos de vida. Sou até cobrado pela família e amigos para escrever a história da família, que é uma verdadeira epopeia. Mas dois obstáculos sempre se apresentaram: a dúvida se deveria meu livro ser um romance ou uma autobiografia; e a preguiça. Por incrível que pareça, tenho tendência à preguiça, exceto quando estou pressionado. Aí ninguém me segura. Aliás, eu queria lembrar que parte da história da minha vida foi escrita em cordel, por Klévisson Vianna, um dos maiores cordelistas do Brasil: A vida de Peter Alouche ou a miragem do destino. Uma obra-prima que eu não poderia igualar.

Assis − Você é dono de um amplo conhecimento cultural. Quais os livros e autores que mais o marcaram na vida? 

Peter − Foram muitos, muitos. Mas vou citar tão somente dois: Madame Bovary, de Gustave Flaubert, e A confusão dos sentimentos, de Stefan Zweig. 

Assis − E na música clássica, quais autores mais admira? 

Peter − Na música clássica, Chopin (Fantasie − Impromptu), Beethoven (A sétima − segundo movimento) e Haydn (Sarabande). Na música popular, as músicas francesas, claro. Nas canções brasileiras, Chico Buarque, sem dúvida. 

Assis − Pouca gente sabe, mas você publicou um folheto de cordel e tem também a música São Paulo de todos nós, cantada por Téo Azevedo. 

Peter − No cordel, foi uma ousadia que tive em participar do Primeiro Concurso de Cordel; aliás, organizado por você, Assis Ângelo, em 2002. Me inscrevi com o pseudônimo de Pedro Nordestino. O cordel chama Encontro no Metrô. Foi um dos dez classificados. Tenho também algumas outras poesias publicadas, como a Borboleta Amazônia, também musicada por Téo Azevedo, e Avenida Paulista (poema publicado no livro Natureza Cidade). 

Assis − Você é um símbolo para os metroviários do Brasil, especialmente de São Paulo. Você foi um

dos fundadores do nosso Metrô. O tem a dizer sobre isso? 

Peter − O Metrô é minha paixão profissional. Desde que entrei no Metrô, em 1972 (e foi por acaso do destino), minha vida se transformou. Adotei o Metrô e o Metrô me adotou. Uma verdadeira paixão mútua. Não é que minha vida no Metrô fosse um paraíso (tive algumas poucas mágoas, que ainda não consigo enterrar. Um dia conto), mas o Metrô foi para mim uma escola superior de Engenharia, onde pude aprender muito e desenvolver um belo trabalho (concepção, coordenação dos testes de aceitação etc.) e onde pude criar muitas amizades. Saí do Metrô ao me aposentar, mas continuo muito ligado (sem remuneração nenhuma) à Companhia que tanto me deu de alegrias e conquistas.

SÃO PAULO EM PROSA, VERSO E MÚSICA (6)

 “São Paulo é uma capital cultural”

Entrevista de Assis Ângelo com Jorge Mello

Assis Ângelo – Jorge Mello, você trocou o Piauí pelo Rio de Janeiro e depois por São Paulo. Por quê? Jorge Mello − Quando ainda pequeno, com nove anos, em Piripiri, no Piauí, minha cidade natal, eu já me decidi por ser músico, artista. Eu ajudava meu pai na bodega que ele tinha na Praça do Mercado. Ele saía pra pegar mantimentos em nosso sítio, para vender, e me deixava muitas vezes sozinho, cuidando do atendimento no balcão. Ele vendia de tudo, até sanfonas. E nessas saídas dele, eu pegava na sanfona e dedilhava as canções que tinha na cabeça. Um dia ele me pegou tocando. E daquele dia em diante ele me botou para trabalhar do lado de fora do estabelecimento, tocando sanfona para atrair a freguesia. Logo saí de casa e fui buscar meu sonho, em Teresina, depois Fortaleza. Até que percebi que ele estava aqui no chamado “Sul Maravilha”. Vim para o sul, obedecendo à lei da gravidade. E realizei meu sonho de ser um artista, um músico, um compositor. 

Assis − Você fez parte do grupo Pessoal do Ceará. Que grupo foi esse, e qual a sua importância? 

Jorge − Nos tempos da universidade em Fortaleza, eu, buscando os espaços para mostrar a minha música, encontrei outros interessados nisso reunidos na Faculdade de Arquitetura, Física e Direito (o curso que eu frequentava). Eram estudantes interessados em música, poesia e nos festivais locais. Logo estávamos nos bares, e foi no Bar do Anísio, o local principal onde essa tropa se reunia. Fui contratado pela TV Ceará para a direção musical de um programa local onde utilizava essa mão de obra e essa tropa cheia de talento, semanalmente, nos programas que dirigi: Porque hoje é sábado e Gente que a gente gosta. Com o tempo fomos reconhecidos como Pessoal do Ceará. Fui um dos primeiros a me mudar para o Rio de Janeiro, e em minha casa moraram Belchior, Fagner e Cirino. Depois chegaram Ednardo, Rodger e Tety. E aconteceu o reconhecimento dessa massa de compositores, com o sucesso do LP Pessoal do Ceará, gravado em São Paulo. Ednardo foi o primeiro a ter esse reconhecimento popular. Depois os outros foram tendo oportunidades, como aconteceu comigo.

Assis – Você, parceiro de Belchior em quase 30 músicas, e ele, um cearense que amava São Paulo, como você. Sei que você chegou a musicar o famoso poema de Mário de Andrade Garoa do meu São Paulo; conta essa história... Quais são as outras músicas que escreveu sobre a capital paulista? Fale de alguma que tenha sido feita pelo seu parceiro Belchior.

Jorge – Bem, são quatro perguntas numa só: A história da parceria com Belchior vem dos tempos da universidade, em Fortaleza. E, também pelo fato de termos morado juntos por anos. E ainda porque fomos sócios em duas empresas: Paraíso Discos, uma gravadora, e Constelações, uma editora musical. Essa aproximação me levou a ser o maior parceiro de Belchior em volume de obras escritas em parceria. Sobre o poema do Mário de Andrade, posso dizer que gosto de musicar poemas clássicos. Sou parceiro de outros como de Olavo Bilac, Hermes Fontes, José Albano, Raimundo Correia... A canção com Mário de Andrade Garoa do meu São Paulo está gravada no meu álbum de 1980, intitulado Dengo Dengue. Adoro!!! Sobre quais outras músicas escrevi sobre a capital paulista, posso dizer que adoro São Paulo Zero Grau, que está no meu álbum Besta Fera, de 1976. E outra linda canção, intitulada Avenida Paulista, gravada nos meus álbuns Mais que de Repente, de 1977, e Claramente, de 2001. Falar de alguma música escrita por meu parceiro Belchior para São Paulo é fácil adoro a canção Passeio, gravada por ele em 1974. 

Assis – O que mais encanta você em São Paulo? 

Jorge − Adoro as pessoas, também por ser um lugar onde se encontra de tudo que se deseja comer. Tem comidas nordestinas, mineiras, nortistas. Tudo de frutos do mar. Sou pego pelo estômago. E tem as oportunidades que se espera para a carreira que escolhi. Também aqui fiz grandes e inesquecíveis amigos, que hoje tenho como irmãos...! É uma capital cultural!!!

Assis – Conte um pouco sobre você, sua obra e sua história. 

Jorge − Pelas minhas atividades na arte e na música, posso dizer que sou um artista nordestino, compositor, produtor, cantor, poeta, repentista, escritor, arranjador, e fora isso também atuei na advocacia, porque sou advogado, especialista em Direitos Autorais. Fiz durante a vida toda milhares de shows e produzi pelo menos 250 álbuns de outros colegas cantores/compositores. Também escrevi trilhas de teatro, cinema e de publicidade. Agora cuido do Acervo Jorge Mello, lugar onde guardo em torno de 80.000 documentos que contam a história da música de minha geração. Tenho hoje mais de 200 obras gravadas, obras que escrevi com mais de 20 parceiros. Gravei três dezenas de álbuns (discos em vinil, CDs e fitas e vídeos). E sei que farei isso até o último dia de minha vida, porque não sei parar.

sábado, 29 de janeiro de 2022

SÃO PAULO EM PROSA, VERSO E MÚSICA (5)

Aquela redação…
(Extraído do livro São Paulo de meus amores, de Afonso Schmidt [1954]).

O aniversário da “Folha da Noite” faz-me lembrar muita coisa, pois tive o prazer de trabalhar com Olival Costa, Mariano Costa, Pedro Cunha e Antônio dos Santos Figueiredo. 

Isso foi no fim de 1922, se a memória não falha. 

A redação ainda estava instalada nos altos do Teatro Boa-Vista, à rua do mesmo nome, esquina da Ladeira Porto Geral. No rés-do-chão, havia uma casa de máquinas suíças. Dínamos e motores de diversos tipos estavam sempre expostos no salão aberto; quem passava na rua podia tocar-lhes com a mão. 

Entrávamos no jornal pela porta do teatro. Transpúnhamos um corredor enfeitado de quadros, cartazes e anúncios das peças em cena, ou prometidas para breve. Ao lado da bilheteria, gaiola de arame com guichê, embocávamos por uma escada escura, íamos desembocar no corredor de cima, ladeado de escritórios. Depois, caminhávamos para o lado da Rua Boa-Vista e virávamos à direita. Ali, o jornal mantinha duas salas: a da gerência, com a sua meia-porta envernizada, e a da redação, sempre escancarada e acolhedora. 

No fundo, à direita, diante de uma mesa grande, atulhada de papéis, sentava Olival Costa. Ele andava sempre de preto e já tinha cabelos grisalhos. Era de alegria comunicativa. Gabava- -se de cultivar os maus trocadilhos, porque os bons, geralmente, não tinham graça nenhuma. As outras mesas da redação eram menores, de desenho estranho, com suas pernas abertas, escarranchadas… 

Olival Costa admitia na redação todo bicho-careta que quisesse trabalhar. Poucos ficavam, muitos desistiam. Havia excesso de redatores. Por isso, sentavam dois ou mais em cada mesa. Ainda lembro de alguns deles: Taciano de Oliveira e Miranda Rosa, na parte esportiva. Correia Júnior, na Sociedade. Aristides Ávila redigia serenos comentários. Paulo Gonçalves que, escrevendo a parte artística, vivia cercado de poetas, pintores e comediantes. Lá iam com frequência Moacir Pisa, Silvio Floreal, Cleomenes Campos, Alberto Seabra, Belmonte, Cucê, Bernardino Pereira, Gino Bruno, Manzo, tantos outros. Foi lá que conheci Olegário Mariano, numa de suas viagens a São Paulo. E Benjamim Costallat. Gastão Barroso fazia a secção teatral. Eurico Branco Ribeiro, então estudante, especializara-se em reportagens sensacionais. E Filemon Assunção, Sabóia, João Silva, Carlos Monteiro Brisola, Luís Pisa Sobrinho. Mas ainda havia outros, muitos outros, de quem neste momento não consigo lembrar nomes.

Antônio dos Santos Figueiredo escrevia a abertura de futebol − uma nota que fez época − e os sueltos políticos, muito em moda na nossa imprensa. Pedro Cunha era o homem dos sete instrumentos: desunhava artigos, desempenhava funções de gerente e, na rua, dava pulos para alcançar uma publicidade que − naquele tempo − podia ser chamada de arisca. 

Eu estava num canto, perto da janela, por causa da claridade. Fazia alguma coisa: reportagens, artiguetes assinados etc. Mas o forte era a secção de queixas. Como o jornal ainda estivesse nos cueiros, com escassa circulação (escassa, porém, deveria duplicar de ano para ano), eu mesmo, para manter aquela coluna das lamentações, arredava cartas de leitores, protestando contra isto ou aquilo. Então, eu arregaçava a manga e entrava pela política, pela questão social, pela literatura… 

Lembro-me de que certo troglodita manifestou desagrado por essa secção do jornal:

— Vocês já repararam que só gente suspeita escreve para a coluna de queixas? Essa secção está-se tornando perniciosa! 

Mas, apesar de tudo, foi naquela “Folha da Noite”, de 1922 a 1924, cujo cabeçalho ainda se apresentava em caracteres manuscritos, que eu me fiz notado em outras redações da Capital. Certo dia, chegou-me aos ouvidos aquela proposta: trabalhar num matutino, ganhando 450$000 mensais. E, na manhã de 5 de julho de 1924, ao acordar-me, comuniquei aos meus botões: 

— Hoje, sim, vou mudar de vida! 

E mudei sim, mas antes não mudasse. Quando cheguei à Praça Antônio Prado, notei um diz-que-diz-que, um corre-corre. Logo depois, a cidade estava revolucionada. Pipocar de tiros no bairro da Luz, troar de canhões no bairro de Pinheiros. Boatos e mais boatos. Sustos e correrias. Um pandemônio. Hoje lembro, com saudade, aqueles primeiros anos da “Folha da Noite”. Foi uma aventura, uma façanha esportiva em que, de alto a baixo, todos deram, alegremente, o melhor do seu esforço. Bons tempos aqueles! Ganhava-se pouco mas, em compensação, trabalhava-se prá-xuxu.

As enchentes (1902 ?)
(Extraído do livro São Paulo naquele tempo − 1895-1915, de Jorge Americano [1957])

Chovia desesperadamente desde outubro. Quando as crianças chegavam da escola tiveram os sapatos e as meias encharcadas, faziam-lhes fricções nos pés com toalhas felpudas e calçavam outras meias e sapatos. 

Enchiam-nos os sapatos molhados com pedaços de jornal. Levados à estufa do fogão de lenha, depois do jantar, na manhã seguinte estavam secos. 

Tudo se repetiu nos dias seguintes. 

Quem passasse pelo Viaduto durante alguma “estiada”, veria o córrego Anhangabaú alagando o vale. As verduras da Chácara da Baronesa de Itapetininga tinham desaparecido n’água. 

Os jornais noticiaram as enchentes. A Várzea do Carmo (Parque Pedro II), os bairros marginais do Tamanduateí (Mooca, Cambuci, Ponte Pequena) foram invadidos pela água. As zonas da atual Vila Maria, do Carandiru e do atual Campo de Marte estavam inundadas. Na Ponte Grande (a primitiva Ponte Grande), a cujo lado estavam a chácara e observatório do General Couto de Magalhães, as águas alcançavam três palmos abaixo do piso. 

O corpo de bombeiros socorria, em canoas, os moradores desses bairros, para o edifício da Imigração, na Rua Visconde de Parnaíba, e para a Santa Casa de Misericórdia, na rua Cesário Motta. 

Uma tarde, em fins de dezembro, apareceu um sol coado. Na manhã seguinte, um pouco mais fria, o sol brilhou. 

À tarde tomamos na esquina da Rua dos Andradas o bonde a tração animal da Rua Vitória, que passou pela estação da Luz, recém-construída, cuja imensa torre podia ser vista de qualquer ponto da cidade, e entramos pela Rua Florêncio de Abreu. No lugar onde há hoje uma ponte sobre a Rua Anhangabaú, atrelaram mais um burro ao bonde, para facilitar a subida da ladeira. Ao chegar ao Largo de São Bento soltaram o burro, que desceu a ladeira sozinho. Daí tomamos o da Ponte Grande, no qual já havia diversas famílias, e pelas seis horas víamos passar as águas do Tietê. Com a ponta da bengala podiam-se deter destroços das plantas que flutuavam. 

Nos três dias seguintes fez calor forte. As águas baixaram. 

Recomeçaram as chuvas. A enchente subiu e continuou até março. 

Durante uma semana cessaram as comunicações ferroviárias para Santos, porque estava inundado o leito da estrada, na Várzea da Mooca.

Uma luz, uma jornada
(Segundo capítulo do livro A luz de Luiz, de Oswaldo Faustino, sobre o poeta e jornalista abolicionista e republicano Luiz Gama [2015])

Afinal, que Luz é essa que, noite após noite, atravessa os portões de ferro do Cemitério da Consolação
e desliza pelas ruas, travessas, becos e vielas? 
Luz a percorrer, um a um, os locais onde plantou sua história, hoje amargando a sensação de que, por ali, nada floresceu. 
Luz que busca reconhecer São Paulo, mas sua São Paulo já não há. Não aquela que tão profundamente conheceu e que também não a reconhece. Duas estranhas, frente a frente. 
Também, pudera, a cidade vestiu de asfalto todas as pedras dos calçamentos, nos quais se imprimiram as marcas profundas de suas pegadas de felino, a urrar contra a escravidão e o contra o império... 
São Paulo de quatrocentões escravocratas, cidade oligarca despudorada de ostentar seu baronato cafeeiro. São Paulo de orgulho bandeirante, voraz expansionista, caçadora de esmeraldas e de indígenas, destruidora de limites territoriais e de quilombos. 
São Paulo de ontem? Não, de hoje, de sempre...” (*) 

Seguindo a luz, que desliza célere, os jovens, em seus equipamentos de transporte, esporte e diversão, bicicletas, skates e patinetes, não conseguem alcançá-la. Há muito deixaram o medo para trás. Agora, a curiosidade é a fonte maior de energia que os mantém determinados a segui-la, através das vias tomadas por ela. 

A vantagem é que, mantendo-se num determinado raio de distância do epicentro do círculo formado por sua luminosidade, não são sugados pela escuridão do blecaute que tomou conta da cidade de São Paulo.

O mais estranho é que sons de tambores, muitos tambores, e de outros instrumentos de percussão, com sonoridades as mais variadas, das mais agudas às profundamente graves, fazem trilha sonora para essa jornada, no mínimo, insólita. Sons que ressoam em forma de palavras, na mente de cada um deles, formando um discurso que se inicia com: “Afinal, que Luz é essa que, noite após noite, atravessa os portões de ferro do Cemitério da Consolação...” e que se encerra com: “São Paulo de ontem? Não, de hoje, de sempre...”. E que, continuamente, retorna ao começo. 

De repente, no Largo São Francisco, bem em frente às arcadas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a luz estanca. O grupo para bem próximo dela, junto ao halo luminoso avermelhado, que toma boa parte daquele logradouro público. 

Agora, no centro da luz, já se consegue vislumbrar um vulto de homem. Um homem imponente, solene, de cabeça erguida e de queixo barbudo elevado. 

— Onde foi que já vi este homem? —, indaga-se Naomi. Quanto mais o observa, mais tem certeza de já tê-lo visto. A imagem vai adquirindo nitidez e, na mente da garota negra, vai se associando ao aroma de flores. 

— Lembrei! Foi no dia em que fui comprar rosas. Era aniversário de minha mãe. 

Todos olham assustados para ela. 

— Eu o reconheço é aquele busto do Largo do Arouche, pertinho do Mercado de Flores. Olhem! Não é o mesmo homem? A mesma altivez? —, questiona a menina. 

— Reparando bem se parece com ele sim —, concorda Shizuka, a amiga nissei inseparável, que estava em sua companhia na compra das rosas. 

— Você está falando do busto de Luiz Gama, Naomi? —, pergunta Pedro, o professor. Ao ouvir o nome, Luiz Gama, o homem se volta para o grupo e, pela primeira vez, parece perceber que não está só...

(*) Texto extraído do catálogo da exposição Memorial Luiz Gama – Caixa Cultural/São Paulo, 2014 –, do mesmo autor. Ouça!

Na casa do Assis

No dia 30 de dezembro de 2021, Assis reuniu em sua casa para um bate-papo sobre São Paulo quatro dos depoentes desta edição: Bill Hinchberger, Carlos Silvio Ramos, Darlan Zurc e Moacir Assunção. Carlos gravou o encontro e o postou no canal do seu programa Paiaiá na Conectados no YouTube.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

SÃO PAULO EM PROSA, VERSO E MÚSICA (4)

Também orgulhoso de viver em São Paulo está hoje o cantor e compositor baiano Tom Zé, que há mais 50 anos deixou a cidade em que nasceu, Irará, disposto a vencer através da música. E o campo de batalha para ele, no caso, foi São Paulo. A primeira relação foi de amor e ódio e o primeiro fruto, a canção São São Paulo, que diz: 

... São oito milhões de habitantes
De cada canto e nação
Que se agridem cortesmente
Correndo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor...

Tom Zé resume: 

“O Nordeste é um país onde prevalece o verso. Na sua forma falada, como no Gênese. Lá, a palavra falada é o principal valor circulante. É a filosofia, a metafísica, é a história. Portanto, na atual falência do dicionário, considerando que lá não circulam normalmente nem dinheiro nem alimento, o nordestino vê sua principal moeda corroída”. 

E, na falta de moeda, decorrente da escassez do trabalho remunerado, o nordestino termina agarrando-se ao sonho de prosperidade vivendo em São Paulo. O cearense Expedito Jorge Leite, de Jati, divisa com Pernambuco, afirma que “São Paulo só conseguiu ser hoje o que é por causa da mão de obra barata do cidadão nordestino”. Leite é dono da Ibrasa, uma das maiores editoras do País. Ele destaca uma qualidade incomum da cidade: 

“São Paulo assusta e encanta, antes de tudo. Em São Paulo o que admira é a impessoalidade, a incógnita, o que faz com que todos se tornem iguais. Ao mesmo tempo que acolhe, São Paulo liquida, isto é, ao mesmo tempo que afaga, mata. Mas nessa cidade fantástica há vez até para malandro”. 

O paraibano Roberto Luna, de batismo Valdemar Farias, concorda com tudo isso e diz rindo: “São Paulo, pra mim, pessoalmente, sempre foi um desafio maravilhoso. Aqui construí a minha carreira. Aqui virei empresário da noite. Aqui tive muitas alegrias”. 

Luna, nascido em Serraria, deixou a Paraíba ainda garoto. Tinha uns 16 anos quando aportou no Rio de Janeiro. Fez trabalhos gerais, mas o seu sonho era ser artista de fama. Um grande cantor. Estudou teatro com Ziembinsky (1908-1978) e fez amizade com o compositor baiano Assis Valente (1911-1958), que o apresentou ao jornalista e diretor de teatro e cinema português Chianca Garcia (1898-1983). Queria apresentar-se cantando no teatro de revista, dirigido por Garcia. Mas não deu. E lá foi ele atrás do seu sonho, cantando onde era possível cantar, até que conseguiu gravar o primeiro disco de 78 rpm, que trazia de um lado o bolero Por quanto tempo e do outro, o samba-canção Linda. 

Àquela altura o jovem paraibano já ganhara o nome artístico de Roberto Luna, dado por um locutor da Rádio Nacional, chamado Afrânio Rodrigues. Não demorou, conheceu o empresário de rádio e TV Victor Costa (1907-1959), que o despachou para São Paulo. E em São Paulo, já no Quarto Centenário da cidade (1954), fez a festa e a carreira. E onde está até hoje, com seus 93 de idade. 

No aniversário de 450 anos de fundação da cidade paulistana, o compositor, cantor e violeiro mineiro Téo Azevedo produziu um CD reunindo alguns dos grandes intérpretes da música brasileira. E lá estava, na faixa 13 ou 14, Luna cantando Bar da Tradição. Sobre São Paulo, claro. 

Uma curiosidade: um dia seu amigo Nelson Gonçalves o incumbiu de zelar (tomar conta) por uma namorada. Nelson fez isso porque fora fazer shows no Rio. Deu zebra, se desentenderam. E tiros deixaram marcas na parede e na memória de Luna: ”Coisas de jovens”, diz. 

O radialista pernambucano Luiz Wilson, no ar há 15 anos na Rádio Imprensa, também acha graça na graça de Luna, e conta: “Nada aconteceu comigo nesse sentido, mas Luna é um mestre incrível. O que ele diz, com a sua voz leve e de pluma, é sempre maravilhoso”. 

Wilson tem pelo menos quatro músicas que falam da cidade de São Paulo. 

Victor Costa, paulista, foi o cara que criou a Rádio Nacional de São Paulo, em 1953. 

Entre as várias empresas de comunicação dele, estava a Rádio Excelsior, criada em 1934. 

O empresário Roberto Marinho compraria a Excelsior em 1964. Costa já havia morrido. Foi lá que surgiu, anos depois, em 1991, a Rádio CBN. A história é longa... 

Detalhe: Victor Costa foi tão importante para o rádio e a televisão brasileiros como foi o paraibano Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (1892-1968), o Chatô, que trouxe para o Brasil a TV que conhecemos hoje. Isso, em setembro de 1950. 

São Paulo é uma porteira sempre aberta a quem deseja procurar caminhos e alimentar esperança. Foi isso o que fez o pernambucano Edenaldo Freire. 

Freire está em São Paulo desde o começo dos anos 1950. Aos 73 anos, transformou-se num dos mais talentosos e requisitados diretores de teatro do Brasil. “Eu amo São Paulo”, diz. 

A propósito, em 1954, o gaúcho de Santana do Livramento Nelson Gonçalves compôs e gravou o belo samba Por que amo São Paulo. 

Como Nelson, Teixeirinha não ficou indiferente ao Quarto Centenário de fundação de Sampa. E compôs e gravou a toada São Paulo. 

Eu, da minha parte, aproveito para sugerir que se faça um concurso com o objetivo de escolher o hino que falta à cidade de São Paulo. Aproveito também para sugerir que se crie o Museu da Música Paulistana. E de tabela, que se escreva um dicionário com verbetes das músicas, e autores, referentes à cidade fundada pelos jesuítas Nóbrega e Anchieta. 

Ah, sim, ia me esquecendo: nos anos de 2001 e 2003 criei um concurso para revelar cordelistas novos e reafirmar cordelistas velhos no panorama da poesia popular com o concurso de literatura de cordel. O primeiro foi em 2001 e o segundo, em 2003. Esses dois concursos resultaram em 410 mil folhetos de cordel que distribuí na rede pública de ensino do Estado de São Paulo. 

Quero aproveitar a ocasião para dizer que São Paulo representa para ricos e pobres, brasileiros e estrangeiros, uma espécie de Canaã, entendem? Antes, pela voz do multiinstrumentista Jarbas Mariz, mostro porque São Paulo é São Paulo, inclusive no samba. Ouça!

E pela voz do cantor Costa Senna ouça o xote que fiz com Enok Virgulino: Romance no Metrô

E fiz também um poema que intitulei de Declaração de Amor a São Paulo. O acompanhamento musical é de Osvaldinho da Cuíca.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

SÃO PAULO EM PROSA, VERSO E MÚSICA (3)

Morumbilândia, de Hermeto Pascoal

Destaco nesse trabalho de pesquisa, que durou mais de 20 anos, os nomes do já citado Carlos Gomes, além de Chiquinha Gonzaga (a primeira a fazer uso da palavra baião em composição musical), Giuseppe Rielli, Ary Barroso, Lamartine Babo, Luiz Gonzaga, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Germano Mathias, Rita Lee, Téo Azevedo, Rolando Boldrin, Mário Zan (autor do dobrado Quarto Centenário), Braguinha, Garoto (que participou da Revolução Constitucionalista de 32) e até Francisco Alves, que gravou a pérola São Paulo Coração do Brasil. 

O alagoano Hermeto Pascoal não gravou, mas compôs a curiosíssima Morumbilândia. Inédita, portanto. 

Uma vez lembrei a Dominguinhos o fato de ele nunca ter feito uma música sobre São Paulo. Riu e musicou versos do jornalista paulista Elias Raide, que renderam a rancheira A Moça do Metrô, única no gênero na discografia dele. Fiz a mesma observação a Geraldo Vandré, que me respondeu displicentemente: “É mesmo...”, e logo escreveu um poema que, um dia, poderá virar música. Esse poema ele declamou em público no dia 24 de março de 2014, no Teatro Bradesco, São Paulo. 

Sem dúvida, o tema é bom e certamente ainda resultará em muita música. E digo sem medo de errar: São Paulo é a cidade mais cantada em verso e prosa no mundo. E para chegar a essa conclusão nem fui muito longe. Fui à zona leste, berço de Alberto Marino, violinista que aos 15 anos compôs a primeira música dedicada a um bairro da cidade, o Brás.

Enquanto a Primeira Grande Guerra assustava o mundo, Marino encantava o Brasil com a valsa-choro Rapaziada do Braz, que anos depois receberia letra do filho, Alberto Marino Jr., a pedido do cantor argentino naturalizado Carlos Galhardo. Essa história, que ele mesmo me contou, eu inseri num CD intitulado São Paulo Esquina do Mundo, encartado no livro São Paulo Minha Cidade. 

São Paulo Minha Cidade, que reúne mais de 1.000 depoimentos de 300 e poucos moradores de Sampa, foi lançado na noite de 2 de abril de 2008, na Sala São Paulo, e distribuído gratuitamente ao público que assistiu ao concerto. O lançamento contou com um espetáculo estrelado por Billy Blanco, Cláudia e Pery Ribeiro. Com orquestra e apresentação do jornalista Chico Pinheiro e da atriz Bruna Lombardi. 

No referido CD incluí também outros depoimentos igualmente históricos, como o de Paulo Vanzolini

Paulo revela, pela primeira vez, o fato curioso de nunca nenhum intérprete ter gravado Ronda corretamente. Ele conta isso enquanto a cantora Ana Bernardo põe os pontos nos is, cantando, junto com o próprio Paulo, que, apaixonado, ainda declara seu amor à cidade, no poema inédito São Paulo. 

Zica Bérgami, autora de Lampião de Gás, disse-me uma vez que estava decepcionada, saudosa, com o progresso que tomou conta da cidade. Aproveitou para mostrar uma versão musical que fez como contraponto à sua valsinha famosa, lançada em disco de 78 rpm por Inezita Barroso, em 1958. E que ganharia versão até em japonês, que tenho em meu acervo (www.institutomemoriabrasil.com.br).

Mesmo com suas contradições e dificuldades de todos os tipos, São Paulo continua representando grande esperança para todos que nela vivem. E isso é fácil de entender, pois é uma cidade grande e rica, terrivelmente bela e desafiadora, ao mesmo tempo carinhosa e violenta, ou seja, o exato contraponto de tudo, a interseção do simples e o inusitado convivendo dia a dia e lado a lado em absoluta harmonia − ou desarmonia, dependendo naturalmente do ângulo que se queira focar. Estimativas indicam que há pelo menos três milhões de nordestinos e descendentes vivendo nessa cidade. 

“Mas se o nordestino, coitado, pudesse, não estaria aqui”, aposta Sebastião Marinho, presidente da União dos Cantadores, Repentistas e Apologistas do Nordeste (Ucran), um dos muitos moradores de São Paulo que, certo dia, nos anos 1960, viu-se forçado pelas circunstâncias da vida a trocar a sua pequena Solânea, no sertão paraibano, pela cidade grande, no caso, São Paulo. “Bom seria se houvesse condições de cada brasileiro poder desenvolver-se em seu torrão-natal”, sonha Marinho, concluindo, com expressão desolada: “Mas a vida é assim mesmo, e os políticos não estão nem aí com a situação de penúria que vive o Nordeste”. 

Os políticos, na verdade, demonstram algum interesse pela situação de profunda carência de quem vive nos cafundós do Nordeste apenas durante os períodos eleitorais. E não poderia ser diferente, já que a região, formada por nove estados (Paraíba, Pernambuco, Piauí, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe e Bahia), é a segunda maior em peso eleitoral (27,01% do eleitorado brasileiro) entre as outras quatro regiões do País, perdendo em número de votos válidos só para o Sudeste, que detém nada mais nada menos que 47 milhões de eleitores, isto é, 42,99% do total, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral, em dados de 2020. 

Dos nordestinos e descendentes que vivem em São Paulo, pelo menos um terço está habilitado a votar, mas nem sempre vota nos candidatos conterrâneos. Esquisito? Não para o jornalista José Nêumanne, para quem esse é um detalhe plenamente explicável. Para ele, o nordestino em São Paulo consegue exercer a cidadania na sua plenitude, quebrando o cabresto e se sentindo gente e não objeto de uso puro e simples dos coronéis. Em outras palavras: liberto das amarras invisíveis do coronelismo, os nordestinos na cidade grande consideram-se libertos para votar em quem acham que têm de votar, sem ordem ou recomendação de quem quer que seja. Ainda Nêumanne: “Em São Paulo, o nordestino abandona a relação de servidão e torna-se cidadão”, quase num passe de mágica. E completa: "Sim, construímos essa cidade e nela temos presença forte e permanente, por isso sinto-me profundamente orgulhoso de viver aqui”.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

SÃO PAULO EM PROSA, VERSO E MÚSICA (2)

A história é antiga: na manhã do domingo de 25 de janeiro de 1554, por determinação do jesuíta Manuel de Nóbrega (1517-1570), era celebrada a primeira missa em solo paulistano. O celebrante foi o padre Manoel Paiva e o ajudante, José de Anchieta. Estava, pois, com a missa, inaugurada a Vila de Piratininga. 
Por um desses acasos, o 25 de janeiro foi o dia escolhido pela Igreja para homenagear Paulo de Tarso, que virou santo com o nome de São Paulo. 
Esse Paulo, também chamado de Saulo, foi um histórico perseguidor de cristãos convertido ao cristianismo após uma visão que o teria levado à cegueira momentânea, em Damasco. Mas essa é outra história. 
A cidade de São Paulo, capital do Estado de São Paulo, é hoje a quarta maior do mundo. A sua população gira em torno de 15 milhões de habitantes. 
Todas as capitais do Brasil têm bandeiras, brasão de armas e hinos oficiais. 
São Paulo não tem hino. O Estado tem e é de autoria do poeta campinense Guilherme de Almeida (1890-1969). 
Muita água passou por debaixo da ponte, ou das pontes, desde então. São milhares e milhares de logradouros. 
Mais de 50 mil entre travessas, ruas, avenidas e viadutos. 
Dividida em cinco regiões, São Paulo tem no seu território 96 bairros. O mais populoso, o Grajaú, na zona sul, com cerca de 500 mil habitantes. O menos populoso também fica nessa região, Marsilac, com aproximadamente 8 mil moradores. São Paulo em prosa, verso e música José de Anchieta Manoel da Nóbrega. 
Há muitas curiosidades em torno da capital paulista. 
O bairro da Liberdade, fundado em 1905, era conhecido como o bairro dos escravos. Foi nesse bairro que nasceu a primeira escola de samba: Lavapés, em 1937, em plena ditadura Vargas. 
À medida que a cidade ia crescendo, iam também surgindo jornais e revistas. E muitos livros contando a sua história. 
Em 1954, ano do Quarto Centenário da cidade, o jornalista e escritor Afonso Schmidt (1890-1964) publicava o livro São Paulo de Meus Amores, em que diz: 

Certo dia, chegou-me aos ouvidos aquela proposta: trabalhar num matutino, ganhando 450$000 mensais. E, na manhã de 5 de julho de 1924, ao acordar-me, comuniquei aos meus botões:
— Hoje, sim, vou mudar de vida! E mudei sim, mas antes não mudasse. Quando cheguei à Praça Antônio Prado, notei um diz-que-diz-que, um corre-corre. Logo depois, a cidade estava revolucionada. Pipocar de tiros no bairro da Luz, troar de canhões no bairro de Pinheiros. Boatos e mais boatos. Sustos e correrias. Um pandemônio. Hoje lembro, com saudade, aqueles primeiros anos da Folha da Noite...
 

(ver íntegra em Aquela redação, ou na parte 5) 

Schmidt fazia referência à Revolução de 1924, que durou menos de um mês. 
Em 1957, o escritor e advogado Jorge Americano (1891-1969) publicava o livro São Paulo Naquele Tempo. Nesse livro, uma reunião de crônicas, pode-se ler sobre as enchentes ocorridas na cidade desde o começo de 1900:

Chovia desesperadamente desde outubro. Quando as crianças chegavam da escola tiveram os sapatos e as meias encharcadas, faziam-lhes fricções nos pés com toalhas felpudas e calçavam outras meias e sapatos. Enchiam-nos os sapatos molhados com pedaços de jornal.  

(ver íntegra em As enchentes (1902 ?), ou também na parte 5

Há muitos livros cuja leitura é indispensável à compreensão do surgimento e crescimento de São Paulo. Recomendados: A Revolução de 32, de Hernâni Donato; Contribuição para a História da Revolução Constitucionalista de 1932, de Euclydes Figueiredo; Dicionário de História de São Paulo, de Antonio Barreto de Amaral; Saudades de São Paulo, de LéviStrauss; e Câmara Municipal de São Paulo, de Délio Freire dos Santos e José Eduardo Ramos Rodrigues.
As discrepâncias, contradições, atrasos, progressos e importância de São Paulo não poderiam deixar de ser também contadas em composições musicais. 
É uma história longa. 
Tudo começou quando fui convidado por Wladimir Araújo, editor do extinto D.O. Leitura, para escrever uma reportagem sobre a música feita em homenagem à cidade de São Paulo. 
O D.O. Leitura era uma publicação de estudos brasileiros de circulação mensal, bancada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 
É bom que se diga que até então, e falamos de 1990, nada havia sido escrito a respeito. 
Na primeira incursão ao passado musical de São Paulo levantei cerca de 200 títulos, entre os quais o samba-canção Ronda, de Paulo Vanzolini, que meio mundo conhece de cor e salteado, e que foi originalmente gravado e lançado em disco pela cantora paulistana Inezita Barroso (1925-2013), em 1953. Procurei mais e achei um LP dos fins de 1960, no qual o seresteiro Sílvio Caldas cantava com sua voz macia pérolas do grande Lauro Miller. Na contracapa, um texto de Guilherme de Almeida, O Príncipe dos Poetas, O Poeta de 32 como era chamado, dava ao disco um valor especial. E não custa lembrar que, anos antes, o mesmo Silvio ganhara em concurso musical, promovido pela Excelsior, hoje CBN, para escolher um hino ao Quarto Centenário. Ganhou com Perfil de São Paulo, do juiz e boêmio barretense Francisco de Assis Bezerra de Menezes (1915-1995). 
 
 
Ainda durante a pesquisa, deparei-me com a canção São São Paulo, de Tom Zé, vencedora do IV Festival da Música Popular, promovido pela Record, cujo prêmio em dinheiro – a título de curiosidade – ele jamais recebeu. 
Mais à frente encontrei Sampa. Pronto, não demorou e fechei as duas páginas para que fui desafiado a preencher. 
Depois disso, achei partituras e notas em periódicos já extintos. 
O Correio Paulistano, por exemplo, edição de 6 de agosto de 1862, noticiou a existência de um álbum intitulado Melodias Paulistanas, formado por 12 peças para canto e piano, do padre Mamede José Gomes da Silva, diretor do Liceu Paulistano e amigo de Antônio Carlos Gomes, autor de um hino aos estudantes de Direito do Largo de São Francisco: À Mocidade Acadêmica, em parceria com o poeta Bittencourt Sampaio. A propósito, não custa acrescentar, que o referido Bittencourt também foi o autor da letra da melodia de Gomes, intitulada Quem sabe. 
Mas, antes de Mamede e Carlos Gomes, houve quem louvasse a inspiradora cidade: os religiosos Calixto e Anchieta Arzão, em Missa a São Paulo, de 1750. 
Em 1823, o músico Bento Maurício Arcade compôs Águas do Anhembi. Hoje constato o crescimento espantoso do meu acervo pessoal no tocante a músicas que tratam especialmente da capital paulista: mais de três mil títulos, já catalogados em ordem alfabética por autor, intérprete e data. E em todos os ritmos, do samba ao xote, forró, tango, canção, valsa, marcha, dobrado, rap e até poemas sinfônicos. 
Ruas, avenidas e viadutos receberam e continuam recebendo a atenção de muitos compositores. 
O Brás e a Mooca são os bairros mais cantados. 
Na letra do Hino Nacional há referência ao riacho do Ipiranga, que mais tarde daria nome ao bairro − lembro isso apenas como curiosidade. Mas há muitas outras curiosidades no repertório musical referente à capital dos paulistas, como o título São Paulo repetido 45 vezes e outro, 13: São Paulo Antigo. O Corinthians é o time mais cantado da cidade: mais de 100 vezes. 
O compositor mais frequente é o baiano Tom Zé, com mais de 30 músicas. E o segundo, o paulista de Valinhos Adoniran Barbosa, com 22. 
Adoniran é o mais rapidamente reconhecido autor de músicas de São Paulo. Entre os títulos que deixou estão Saudosa Maloca, Samba do Bixiga, Trem das Onze, Praça da Sé, Iracema e Tiro ao Álvaro, que a cantora gaúcha Elis Regina gravou em 1978. 
E é claro que há muitos grupos musicais que cantam São Paulo. O mais antigo deles é Demônios da Garoa. 
Foi o Demônios que lançou Saudosa Maloca, por exemplo. 
Não custa lembrar que o grupo Demônios da Garoa é o mais antigo em atividade ininterrupta no mundo. Essa façanha está registrada no Guinness Book. E, curiosidade por curiosidade − e isso poucos sabem −, o Demônios tem LPs lançados em Argentina, Uruguai e França. Esses discos, hoje raríssimos e jamais lançados no Brasil, estão nas prateleiras do meu acervo. 
Até na onda da Bossa Nova o Demônios da Garoa entrou. E no programa Tão Brasil, que apresentei na allTV, o grupo não se fez de rogado e mandou ver no ritmo da Bossa de Tom e João Gilberto. 
Na verdade, poucos são os autores brasileiros de sucesso que não compuseram sobre São Paulo.
 

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

SÃO PAULO EM PROSA, VERSO E MÚSICA (1)

Para Tom Zé, antena viva da musicalidade paulistana.

Jornalistas&Cia e Portal dos Jornalistas encontraram um jeito diferente de homenagear São Paulo neste seu aniversário de 468 anos: em prosa, verso e música. E o autor da façanha é o jornalista, escritor, cordelista, letrista e estudioso da cultura popular brasileira Assis Ângelo, dono de um acervo que contabiliza mais de 210 mil itens, entre discos (dos mais antigos 78 rpm aos CDs, passando pelos de vinil), partituras, livros, esculturas, pinturas, cordéis e tudo o que se pode imaginar de manifestações culturais produzidas no País. 

Assis estudou por quase três décadas as canções que de algum modo exaltam São Paulo, sua gente, seus costumes, seus bairros, suas mazelas, e catalogou nada menos do que 3 mil delas, compostas por centenas de artistas. Tem compartilhado esse estudo e esse conteúdo em exposições, instalações culturais, palestras, entrevistas e resolveu agora compartilhá-lo neste Jornalistas&Cia e no Portal dos Jornalistas, presenteando os leitores com um pouco dessa singela jornada, em que mostra como a música, a poesia e a literatura, de um modo geral, fazem um bem danado para a cidade e sua gente. 

Neste especial, além de contar um pouco dessa jornada, Assis nos brinda com trechos de gravações de históricas entrevistas que fez ao longo de quase 50 468 anos de transpiração e inspiração São Paulo anos de carreira, com alguns dos mais ilustres nomes da cultura popular brasileira, gente que já se foi, como Nelson Gonçalves, Paulo Vanzolini, Silvio Caldas e Zica Bérgami, entre outros, e outros que aqui ainda estão. Esses aceitaram o convite de mostrar o amor e o carinho que têm pela cidade, que ao longo de seus 468 anos, tem conseguido harmonizar as mazelas de uma sociedade desigual com a esperança de um mundo melhor, impedindo que o concreto, o asfalto, a miséria, a violência, as doenças infectem o espírito dos milhões que aqui vivem e que encontram na cultura e na arte um fio de esperança para apaziguar as tensões e os problemas do dia a dia e para elevar a alma e enlevar a mente, na busca de uma vida plena, melhor, mais doce e suave. A edição traz ainda a transcrição da entrevista que ele fez em novembro de 1980 com Adoniran Barbosa, ícone maior da música paulistana. 

Só que Assis, com a autoridade de quem estuda há décadas, com afinco, a cultura popular, tendo São Paulo como seu grande farol, revela: “A cidade de São Paulo não tem um hino oficial. É a única das grandes capitais brasileiras que não tem seu hino. E quero aqui fazer uma conclamação, um desafio: que a Prefeitura e a Câmara Municipal se unam para dar à cidade o hino que ela tanto merece. Seja via concurso público ou mesmo eleição das canções que ganharam os corações e as mentes dos paulistanos”. 

Desafio feito, deixamos agora nossos leitores com esse especial histórico, que mostra São Paulo em prosa, verso e música. 

Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli

Boa leitura!

A maior e mais importante cidade do Brasil e da América do Sul ainda não tem hino oficial

Mais de 7.500 compositores de várias partes do Brasil, e até do estrangeiro não ficaram indiferentes ao que viram e sentiram sobre a capital paulista. Dos mais famosos, por exemplo, Carlos Gomes, Chiquinha Gonzaga, Cornélio Pires, Ary Barroso, Tom Jobim, João de Barro (Braguinha), Taiguara, Rita Lee, Chico, Gil e Caetano, Luiz Gonzaga, Billy Blanco (autor da Sinfonia Paulistana − 1978), Tião Carreiro, Raul Torres, Teixeirinha, Eduardo Gudin, Carlinhos Vergueiro, Geraldo Filme, Jarbas Mariz e uma citação especial a Elza Soares, que cantou a cidade em várias canções. Certa vez, ali pelos fins dos 1980 e 1990, brincando o rei da embolada Manezinho Araújo soltou para mim uma quadra singular: São Paulo é Paulo/De São Paulo eu vim de lá/Quem não gosta de São Paulo/Do que é que vai gostar?

Lembrando isso, desse encontro com Mané na casa dele, contei ao maestro e ao professor de música da Universidade da Paraíba Jorge Ribbas e ele, de bate-pronto, tomou o mote em desafio e desenvolveu a embolada que abre este texto.

São Paulo é Paulo, de São Paulo eu vim de lá quem não gosta de São Paulo, do que é que vai gostar?

No universo tem estrela, tem planeta não me venha de veneta procurar qualquer lugar

Precisa mesmo achar o seu paraíso de tudo que for preciso você pode desfrutar

São Paulo é Paulo, de São Paulo eu vim de lá quem não gosta de São Paulo, do que é que vai gostar?

Nessa cidade todo mundo se reúne tantas são as competências que você vai encontrar

Eu desafio, meu amigo, minha amiga encontrar outra cidade mais gostosa de morar

São Paulo é Paulo, de são Paulo eu vim de lá quem não gosta de São Paulo, do que é que vai gostar?

Lá tem poeta, cantador e seresteiro tem sambista, jornalista, todo tipo de lidar toda ciência traduz a malemolência paulista ou são paulistano – nortista, do estrangeiro,

Pode vir de outro planeta – que se engraça do lugar

São Paulo é Paulo, de São Paulo eu vim de lá quem não gosta de são Paulo, do que é que vai gostar?

São Paulo é Paulo − Autores: Manezinho Araújo e Jorge Ribbas