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quarta-feira, 9 de abril de 2025

LICENCIOSIDADE NA CULTURA POPULAR (179, FINAL)



Um mês depois da festa cá na fazenda, eu me achava lendo debaixo de um pé de manga. 

O relógio da igrejinha acabara de badalar quatro vezes. De repente, Flor Maria me chama e diz que os convidados para a entrevista já estão chegando. São pontuais, hein?

E lá estavam trazidos por Balzac os ícones da literatura que tem por matéria-prima a alma do povo. Entenda-se por isso os desejos e sonhos mais safados da espécie humana. 

Confesso que não conhecia pessoalmente Balzac. Li tudo ou quase tudo que ele escreveu, mas não o conhecia. Foi ótima ideia de ele vir com seus amigos num mesmo voo.

Depois dos cumprimentos, fomos molhar a garganta pra melhor fluir as ideias. Tinha vários tipos de bebida, incluindo licor e vinho. Aretino arregalou os olhos quando viu uma garrafa cheia de algo parecendo água.

 _O que é isso?

Eu disse ser cachaça produzida pelo pessoal do nosso engenho. 

Ansioso, Aretino pegou um copo e o encheu. Cheirou, lambeu as bordas e de uma vez só engoliu tudo. Menos o copo. 

A cena deixou boquiabertos Sade e Restif.

Achei graça e ofereci vinho.

Depois de beber mais um pouco, Aretino se antecipou dizendo que:

_Já estamos cheios de tanto vinho, pois isso é o que mais tem nas nossas terras.

Esse parece ter sido o sinal para Casanova, Sade e Restif pegarem os copos e, depois de enchê-los, beber. Cachaça da boa, diga-se.

Após  amaciarmos o gogó e saborearmos tacos de carne de sol e tira-gostos que tais, fomos à biblioteca para o bate-papo tão esperado. 


OLÉGNA — Antes de mais nada, sejam bem vindos ao Brasil. 


ARETINO — Eu sempre quis conhecer o Brasil. Quando o Brasil foi descoberto em 1500, eu tinha oito anos de idade. 


RESTIF — Tinha oito anos e já era safado, um perigo para as moçoilas.


ARETINO — Menos, menos. Na verdade, eu era muito tímido. 


CASANOVA — Hummm….


OLÉGNA — Sade, conte-me um pouco sobre você. Pra começo, diga-nos o seu nome completo. 


SADE — Meu nome completo  é Donatien Alphonse François de Sade. Sou filho de Jean Baptiste François Joseph de Sade e Marie Eléonore de Maillé de Carman. Filhos tive dois: um menino e uma menina. Nasci no palácio La Coste, em Paris, França.


OLÉGNA — Olha só! Na Paraíba nasceu também uma grande figura no Palácio. Essa figura tinha por nome Ariano Suassuna e o Palácio, da Redenção. Em pleno centro da Capital paraibana, João Pessoa.


ARETINO — O Sade não tinha nem oito anos de idade quando já corria atrás de rabo de saia.


OLÉGNA — É verdade, Sade?


SADE (com sorriso maroto) — Não me lembro.


CASANOVA — Hummm…


RESTIF — Por que você só faz hummm…?


CASANOVA (se ajeitando na cadeira e passando a mão nos cabelos) — É que estou achando engraçada a fala do Aretino e agora a do Sade. O Aretino foi meu professor e Sade continua sendo um grande cabra safado!


ARETINO — Poooxa! Eu não sabia que sabia tanto.


RESTIF — Antes do Aretino, que fez muita mulher feliz, existiu na sua terra Itália outro poeta que era um danado. Seu nome: Caio Valério Catulo. E antes de Caio ou pouco depois teve Mallanaga Vatsyayana que escreveu o Kama Sutra. Era indiano. 


OLÉGNA — Nas origens, o Kama Sutra tinha mais de 500 posições sugeridas para o prazer de quem queria prazer. Sexual, claro. Agora eu gostaria de saber de Casanova se pra fazer o que fez com as mulheres se inspirou no Vatsyayana ou no nosso querido Pietro Aretino. Qual a melhor posição para a obtenção de um orgasmo gigante?


CASANOVA (explodindo numa gargalhada) — Esse negócio de Kama Sutra, de manual sexual, pra mim não funciona. Tesão é tesão, ou tem ou não tem.


RESTIF — Você teve muitas mulheres?


CASANOVA — No começo, confesso, cheguei até a contar e a anotar num caderninho. Eu era muito novo. Tinha uns 20 e poucos anos. E anotados por mim já havia uns cento e pouco nomes. 


RESTIF — Perdeu a conta, é? Eu continuo anotando. A minha lista já tem 735 nomes de mulheres lindas.


OLÉGNA — Poxa, desse jeito vai passar de Don Juan. Esse era um espanholzinho muito safado. Dizem que ele traçava todas, feias e bonitas. Não tinha limite. Não enjeitava magrinha, gordinha, branquinha, pretinha, baixinha, altinha, pobrinha, riquinha…


CASANOVA — Hummm…


RESTIF — Lá vem ele com esse negócio de hummm…


OLÉGNA — Casanova, eu gostaria que você contasse agora de quem você é filho e como virou o “bon vivant” que todos conhecem e seguem, de certo modo.


CASANOVA — Sou filho de um ator e de uma atriz, que infelizmente não alcançaram o sucesso. Tive irmãos, um deles pintor.


RESTIF — O nome desse irmão era Francesco Giuseppe Casanova, autor de um bonito retrato seu?


CASANOVA — Sim, sim. Ele viveu um bom tempo em Paris e eu também. Era um bom rapaz e um talento incrível! Sua obra, digo sem medo de errar: é ma-ra-vi-lho-sa!


OLÉGNA — Na França do seu tempo só dava você nos salões grã-finos e até nos cabarés de má fama. Confirma?


CASANOVA (subindo no muro) — Talvez sim, talvez não. Não me lembro de muita coisa. A verdade é que o populacho fala muita besteira a meu respeito. 


SADE — Querido Casanova… 


CASANOVA — Opa!


SADE — Meu negócio é mulher, rapaz! Sempre. Você foi o cara que pegou muita mulher em Paris. Foi também o cara que ganhou e torrou muita grana. Algum arrependimento?


CASANOVA — Não, arrependimento não. Eu poderia ter tido mais juízo, isso sim!


ARETINO — Foi você mesmo o cara que inventou a loteria francesa?


CASANOVA (pigarreando e se ajeitando na cadeira) — Sim, eu mesmo. Antes e depois disso fiz parcerias com luminosos do meu tempo. Estive com barões, príncipes, princesas, rainhas…


SADE — Você traçou a Madame de Pompadour, o xodó de Luís XV?


CASANOVA — Não, não. Bom, acho que não. Só lembro que ela gostava muito de mim. Na verdade, éramos apenas bons amigos. 


SADE — E Catarina, a Grande?


CASANOVA — Essa mulher era terrível. Ela chegou até a matar o próprio marido, pra reinar no seu lugar. E reinou. Quanto a mim posso dizer que também  a temia. Agora esse negócio de levá-la pra cama, só se eu fosse doido. Não  sou, nunca fui. Gosto da vida que levo, na base da paz e de muito amor. 


RESTIF — Vida agitada a sua, Casanova. É verdade que você chegou a ser preso?


CASANOVA — Sim, por uma besteira. 


RESTIF — Que besteira foi essa?


CASANOVA (ajeitando a camisa, tossindo, pede algo pra beber) — Bom, questão de dívida. Eu jogava e gastava muito. Mulher comigo também nunca passou mal. Gosto de dar presente. Aí teve um pessoal que não esperou que eu quitasse o que devia. E aí, né? Me puseram numa cadeia de segurança máxima, mas de lá fugi pelo telhado. E corri mundo.


SADE — É verdade que você já foi dono de puteiro?


CASANOVA (se mexendo na cadeira, meio perturbado) — Sim, sim, quer dizer… Ah! Isso foi na Inglaterra, depois que fugi da prisão. 


SADE — Você já bateu em mulher, matou mulher, matou alguém?


CASANOVA (irritado) — Porra! Levei muita gente pra cama, mas nunca bati nem em homem e nem em mulher. Nunca matei ninguém! Não sou como você que adora ver gente sofrer. A minha cartilha é a cartilha da alegria e do prazer.


OLÉGNA — Calma, Casanova. O Sade fez essa pergunta certamente por saber que no Brasil o número de mulheres assassinadas por homens é enorme. 


SADE — Pois é, apenas curiosidade. 


OLÉGNA — Casanova, é verdade que você prestou serviço para o pessoal da Inquisição?


CASANOVA — Sim, sim. Por pouco tempo. O Sade também passou por isso. 


SADE — É verdade. Fui preso e não uma vez só, várias. Mas as prisões em que fui metido eram por outros motivos. Acusavam-me e ainda há quem me acuse de pornográfico e subversivo. Me prenderam até por sodomia. Quando não tinham um motivo, inventavam. Foi assim que me levaram para a Bastilha. Mas mesmo de lá consegui denunciar torturas e mortes cometidas atrás das grades, nos calabouços… Foi na Bastilha que escrevi vários livros, incluindo  Os 120 Dias de Sodoma.


ARETINO — É verdade que você foi condenado à morte?


SADE — Sim, duas ou três vezes. Mas como vê, escapei. 


RESTIF — Por que Napoleão Bonaparte detestava você?


SADE — Sei lá, era um louco. Ele sim era um devasso! 


OLÉGNA — Restif é verdade que você inspirou os revolucionários franceses a derrubar a Bastilha?


RESTIF — Sim. Os meus escritos não se limitam apenas ao que diz respeito a sexo, erotismo, prazer, essas coisas que o corpo nos pede. Enfim, escrevi livros de conteúdos diversos. Até de política, por exemplo. Você já leu As Noites Revolucionárias, que publiquei em 1788? E La Semaine Nocturne? E Noites de Paris? Nesses livros, eu falo o que iria acontecer na Bastilha e o que aconteceu na Bastilha. É isso. E se não leu, leia! Espalhe por aí afora o que eu escrevi nessa vida louca que é a nossa. E quero deixar bem claro uma coisa: mulher é o ser mais importante que Deus pôs na terra. Sem mulher, não haveria vida inteligente.


OLÉGNA — Poxa!!! O Sade escreveu Justine e em seguida você escreveu Anti-Justine. O que um tem a ver com o outro?


RESTIF — Foi uma brincadeira. Na verdade, eu gostei muito do livro do Sade. Aproveito a ocasião pra dizer do carinho que tenho por ele.


SADE — Obrigado, mestre.


OLÉGNA — Bom, pessoal, antes de mais nada…


— Oi, oi, oi, oi, oi, oi! — É um poeta chegando.


OLÉGNA — Quem é você?


O POETA — Não está lembrado de mim? Eu sou o Olavo!


OLÉGNA — Olavo…


O POETA — Bilac!


OLÉGNA — Olavo Bilac!?


O POETA — Sim, sim! Eu sou Olavo Bilac, amigo de todos os poetas que pensam e fazem boas poesias.


OLÉGNA — Sim! Já ouvi falar de você.


O POETA — Ora, vi estrelas!


OLÉGNA — Você tem uma poesia muito bonita, uma poesia de amor… Mas você nos interrompeu por que??


O POETA — É que eu vi essa mesa tão bonita, com tanta gente bonita do mundo da poesia…


SADE — Você já me leu, poeta?


O POETA — Eu li todos vocês. A vida é linda, quando não temos preconceitos…


RESTIF — Tudo isso com amor!


OLÉGNA — Que bom, pessoal. Quero agradecer a presença e o ótimo bate-papo que vocês nos propiciaram. 


ARETINO (pedindo a palavra) — Quero dizer da alegria que sinto por estar aqui. E que cachaça, hein!?


RESTIF — Faço minhas as palavras de Aretino. 


OLÉGNA — O Casanova estudou bastante. Sei que fez até poemas. Gostaria que ele encerrasse essa nossa prosa contando a sua vida em versos.


CASANOVA — Dá pra arrumar uma violinha aí?


Rapidamente uma viola foi arrumada e, para surpresa de todos, Casanova mandou ver:


Comecei lendo livros

Lendo livros me formei

Certa vez eu quis ser padre 

Mas a tempo recuei 

Foi numa biblioteca 

Que finalmente me achei


Pra mim foi tudo fácil 

Fácil tudo se acabou 

Amei muitas mulheres 

Mas nenhuma me amou 

Foi assim que descobri 

Que pra mim a luz pifou 


Ora pois eu sei que fui

Bom aluno e professor 

Na escola aprendi

Os segredos do amor

Desde então eu parti

Pra viver com destemor


Eu sou o personagem

Das histórias de amor

Muitos mentem sobre mim

Comigo fazem terror

Eu não sou o que dizem

Tampouco sou sedutor!...


AGRADECIMENTOS

Dou-me por satisfeito ao término deste trabalho que me tomou centenas e centenas de horas, desde 2023. Consumi a leitura de inúmeros folhetos de cordel, de autores os mais diversos. Consumi também o conteúdo de livros escritos por autores desde os tempos medievais, na Europa e em todo o canto, inclusive do Brasil, como o Gregório de Matos e Guerra, José de Alencar, Machado de Assis, Júlia Lopes de Almeida, entre outros. Ouvi óperas e muita música popular que abordam, no geral, a temática por mim escolhida: licenciosidade, que em livro deverá ganhar o título de Do Popular ao Erudito – o Sexo como Expressão Artística. Todos os campos da arte envolvendo amor e sexo foram por mim visitados. Nos arquivos do Instituto Memória Brasil, IMB, encontrei entrevistas que fiz com o rei do baião Luiz Gonzaga, Chico Anysio e Ignácio de Loyola Brandão, com quem voltei a trocar ideias depois de muitos anos. Aproveito a ocasião para agradecer às meninas Anna Clara da Hora e Flor Maria. E, claro, aos leitores que suponho terem gostado dos de tudo ou parte de tudo andei publicando no Newsletter Jornalistas & Cia e neste Blog.

terça-feira, 8 de abril de 2025

TEM CEGO NA CULTURA

Hoje, 8 de abril, comemora-se no Brasil o Dia do Sistema Braille. 

Esse sistema foi criado por um jovem francês de nome Louis Braille. Tinha esse jovem três anos de idade quando acidentalmente feriu os olhos e ficou cego. Era de família humilde, modesta. 

O 8 de abril como  Dia Nacional do Sistema Braille deve-se ao nascimento do carioca José Álvares de Azevedo, considerado o patrono dos cegos no País por ter trazido da França o sistema por ele assimilado numa escola própria de Paris. 

Foi esse Álvares de Azevedo a pessoa que convenceu o imperador Pedro II a criar a primeira instituição de ensino do braille. Chamou-se essa entidade de Imperial Instituto dos Meninos Cegos.

Bom, pessoal, amanhã 9 a TV Cultura levará ao ar, às 22 horas, o longa documento Vem Comigo, os caminhos da inclusão. Esse documentário foi dirigido por Sylvia Jardim. Não percam!

LICENCIOSIDADE NA CULTURA POPULAR (178)


O baiano Gregório vira rapidamente centro de atenção. Ele e o casal que o acompanhou até aqui. 

Curiosa, mocinha pergunta a Gregório quem são aquelas duas pessoas que o acompanham. E ele: 

— Laurindo, diga a essa bela mocinha quem são vocês.

O casal se identifica rindo e bem à vontade dizem ser ele Laurindo Rabelo e ela, Francisca Júlia César da Silva.

Surpresa e sem se conter, Mocinha pergunta: 

— Laurindo é o autor do poema safado As Rosas do Cume?

Pego assim de supetão, Laurindo balançou a cabeça afirmativamente, acrescentando: 

— E essa mulher é simplesmente a autora do poema Dança de Centauras.

O destrambelhado Inácio da Cangaceira, lá de trás, tira da memória alguns versos do famoso As Rosas do Cume: 


No cume da minha serra

Eu plantei uma roseira

Quanto mais as rosas brotam

Tanto mais o cume cheira


À tarde, quando o sol posto

E o vento no cume adeja

Vem travessa borboleta

E as rosas do cume beija


No tempo das invernadas

Que as plantas do cume lavam

Quanto mais molhadas eram

Tanto mais no cume davam…


Zé Ruela, que a tudo acompanhava um tanto nervoso, se mexendo todo, querendo falar, enfim toma coragem e após interromper Inácio da Cangaceira, pergunta com a voz enrolada e copo na mão: 

— Vocês conhecem essa outra do Seu Laurindo?

E antes de ouvir qualquer resposta, começou:


Amor, ao teu carro em vão

Tu me pretendes jungir

Eu não te posso servir

Já não tenho mais tesão 

De putas um batalhão

Já forniquei noutra era

Já fodi com porra fera

Mulatas, brancas e pretas

Hoje só como punhetas

JÁ não sou quem dantes era!


Todos batendo palmas, muita algazarra, brindes!

Levantei-me pedindo licença e perguntando se alguns dos presentes conhecia o poeta Renato Caldas, do Rio Grande do Norte. E antes que dissessem sim, porque não disseram, eu comecei:


Talvez não tivesse cheiro

Servia de brilhantina

Ninguém cagava em latrina

Se merda fosse dinheiro

Todo mundo era banqueiro!

Sanitário era baú

Porém aqui no Assu

A terra do interesse

Se tal coisa acontecesse

Pobre nascia sem cu


Enquanto dava uma bicada de boa cana e mordia um taco de carne de sol, Jarbas deu um berro chamando a atenção pra si.

— Esse poeta é dos bons. Supimpa!, disse emendando: 

— O Carlos Lacerda era doido pelo Renato. 

— De fato! O Lacerda chegou até a patrocinar um livro do Renato, confirmou o professor Wilson Seraine. 

— O Wilson sabe das coisas. Ele é da terra do João Cláudio Moreno, o Piauí, disse batendo palmas o Jessier Quirino.

Aqui em Areia a vida é como no céu: ótima!

Aqui tem de tudo. Tem fruta de todo tipo, legumes que não acabam nunca, pé de coco, pé de caju. O que se plantar por cá, dá. A fava daqui é grande, bonita e gostosa. Não há feijão e arroz melhor do que aqui na nossa Areia. Aqui ninguém sabe o que é fome. E o clima, hein?

Bom, somos um país tropical. Mas nesse país o clima difere aqui e ali, sem mudar radicalmente suas características. 

Aqui nessa terrinha o mês mais quente é janeiro. O mais frio são três: junho, julho e agosto. 

No mês de calor mais forte os termômetros marcam até 31 graus. No tempo de frio, a máxima chega a 27 graus. 

segunda-feira, 7 de abril de 2025

OS CAMINHOS DA INCLUSÃO, NA TV CULTURA




Dados colhidos pelo IBGE em 2010 davam conta de que havia no Brasil pouco mais de 500 mil pessoas vivendo completamente cegas, isto é: sem um pingo de luz nos olhos. 
Passado pois 15 anos, não sabemos quantas pessoas se acham na escuridão. 
Os dados de 2010 indicavam também que a região com maior número de cegos totais era o Nordeste. 
Historicamente, cegos existem desde sempre. E famosos, como o poeta grego Homero. São dele os clássicos Ilíada e Odisseia, que contam histórias gigantes da Antiguidade. Haver com Troia. Detalhe: Troia é posterior a Homero... Bom, deixa pra lá!
Até hoje tem chovido cegos à granel, na Terra.
Em tempos mais recentes, entraram para a história da literatura cegos ou mais ou menos cegos como o romancista James Joyce (Ulysses), Aldo Huxley (Admirável Mundo Novo) e Jorge Luís Borges (O Aleph).
Borges sofreu descolamento de retina quando tinha já uns 50 anos de idade. Sem nada enxergar, ditou seus textos a sua mulher Maria Kodama, até morrer em 1986.
Pois é, a vida lá atrás continuou  como  continuará até os fins dos tempos. Óbvio, tão óbvio como nascer e morrer. 
A sociedade, seja em que tempo for, continuará pendendo para um lado e para o outro. Sempre haverá brigas e tudo mais. Não haverá ser perfeito, seja homem seja mulher ou bichos do mato.
Sempre haverá tempo para reflexão. 
Depois de amanhã quarta 9, às 22 horas, a TV Cultura SP levará ao ar o longa documentário Vem Comigo, os caminhos da inclusão. A direção é da jornalista Sylvia Jardim. Ela diz:
"Esperamos que esse seja apenas o início da jornada deste trabalho que mostra que todos nós, seres humanos, almejamos praticamente as mesmas coisas".
A obra trata do dia a dia e das dificuldades de pessoas que conquistam espaços na sociedade hoje dita moderna. Excelente, bom de ver e de ouvir. 
Entre as pessoas que se deixam gravar se acham uma dançarina surda, um programador sem braços, um atleta cadeirante...  Bom, e um jornalista escritor metido a besta, que sou eu. 

LICENCIOSIDADE NA CULTURA POPULAR (177)


Ao cantar o que acaba de cantar, Zé da Luz inesperadamente de todos chama a atenção para a figura alta, esguia, com ar irônico e despachada que acaba de chegar à roda de cantoria. Durante muito tempo encheu o saco de muita gente e do clero, inclusive. Só não foi excomungado porque o papa do seu tempo estava provavelmente de pileque, ou soltando palavras de amor no ouvido de alguma beata. Oliveira e Marinho ofereceram suas violas ao mesmo tempo ao ilustre visitante, que sorriu. Pegou a viola de Oliveira e começou:


As excelências do cono

é ser bem grande, e papudo,

apertado, bordas grossas,

chupão, enxuto, e carnudo.


Com cachopinha de gosto

em cama de bom colchão, 

nos peitinhos posta a mão, 

e o pé no fincapé posto:

ajuntar rosto com rosto, 

dormir um homem seu sono, 

acordar, calcar-lhe o mono

já quase ao gorgolejar,

então é o ponderar 

As excelências do cono.


Eu na minha opinião,

segundo o meu parecer,

digo, que não há foder, 

senão cono de enchemão;

porque um homem com Sezão,

inda sendo caralhudo,

meterá culhões, e tudo,

e assim mostra a experiência, 

que do cono a excelência

É ser bem grande, e papudo.


É também conveniente, 

que não tenha o parrameiro 

a nota de ser traseiro, 

e que seja um tanto quente:

que às vezes mui facilmente 

são tais as misérias nossas,

que havemos mister as moças

para regalo da pica

com cono de pouca crica,

Apertado, bordas grossas.


Mas a maior regalia,

que no cono se há de achar,

para que possa levar

dos conos a primazia

(este ponto me esquecia)

para ser perfeito em tudo,

é nunca se achar barbudo,

por dar bom gosto ao foder,

como também deve ser

Chupão, enxuto, e carnudo.


Ao findar o último verso cantado, Gregório inclina-se um pouco com a viola nas mãos em agradecimento à chuvarada de palmas e hurras que lhe são dirigidas por todo mundo. Oliveira toma pra si a palavra. Diz, entusiasmadíssimo, que Gregório é sem dúvida um mestre na arte da cantoria: 

— O cantador Gregório nos dá uma aula de graça, saber e espontaneidade discursiva e poética. Abriu o baião com um mote, glosou tudo bonitamente em décimas de cantador.

O entusiasmo contagia todo mundo que, em coro, pede aos gritos que Gregório continue. Sem se fazer de rogado, põe a viola no peito e recomeça:


É este, o que chupa e tira

vida, saúde, e fazenda,

e se hemos falar verdade

é hoje o Amor desta era.

Tudo uma bebedice,

ou tudo uma borracheira,

que se acaba ao dormir, 

e co dormir se começa. 

O Amor é finalmente 

um embaraço de pernas, 

uma união de barrigas,

um breve tremor de artérias. 

Uma confusão de bocas, 

uma batalha de veias, 

um reboliço de ancas,

quem diz outra coisa é besta.


Novas palmas enchem de alegria o ambiente. 

Mocinha de Passira, quieta até agora, aproxima-se do cantador para parabenizá-lo e abraçá-lo com fervor. Puxa-o pelo braço e o leva até à churrasqueira, onde já se acham Jarbas, Julio, Jorge, Mário, Dorneles e Jessier Quirino.

Enquanto isso, Cajú e Castanha pegam de novo seus pandeiros e começam contando lorotas pra emendar num gancho de putaria:


Eu vou mostrar a diferença

Nesse meu repente nobre

Da mulher do corno rico

Pra mulher do corno pobre


A mulher do corno rico

Transa em motel de luxo

Pede só bebidas finas

No conforto rela o bucho

Numa cama bem fofinha

Deita e rola com o urso


A mulher do corno pobre

Transa mesmo é no mato

Sai mordida de formiga

De mosquito e carrapato

É que o danado do urso

Não pode pagar um quarto


A mulher do corno rico

Usa perfume francês

A calcinha é de renda

Troca todo dia três

Camisinha de primeira

Ela exige do freguês


A mulher do corno pobre

Usa perfume fuleiro

A calcinha é de algodão

E fica nela o mês inteiro

A camisinha que conhece

É de tripa de carneiro


A mulher do corno rico

Vive ganhando presente

É vestido, é sapato

É casaco, é corrente

Quando ganha carro zero

Ela fica bem mais quente


A mulher do corno pobre

Essa ai não ganha nada

Ao contrário ela leva

É sopapo, é porrada

Leva murro, leva tapa

Pra ficar mais assanhada


A mulher do corno rico

Tem babá, tem motorista

Só frequenta lugar fino

Tem cartaz com colunista

Muitas vezes com o urso

Sai em foto de revista


A mulher do corno pobre

Coitadinha passa mal

Anda só de coletivo

Só frequenta chaparral

Só é vista com o urso

Em folha policial


A mulher do corno rico

Todo ano faz cruzeiro

Agarrada com o urso

Se diverte no estrangeiro

Do coitado do marido

Ela esbanja o dinheiro


A mulher do corno pobre

Também sai pra passear

Agarrada com o urso

Por aí vai turistar

Na ilha do Maruim

Vai tomar banho de mar