O som da rabeca continua chegando até nós.
Como se tivessem ensaiado, os artistas presentes acorreram em direção ao som. E lá estava Bibiu tocando uma rabequinha que que aprendeu com Deus. Num piscar d'olhos, Cajú e Castanha sacam os pandeiros e mandam ver. O mesmo fazem os violeiros e tudo vira uma festa.
Lá do fundo ouve-se a voz do Nêumanne chamando a atenção para a chegada do compositor e maestro Júlio Medaglia, trazendo consigo o amigo e também maestro Marcos Arakaki. Alto e bom som todos batem palmas e gritam em uníssono:
— Viva o maestro! Viva o maestro!
Julio sorri, agradecendo.
Não estava combinado, mas o maestro trouxe um violino pra tocar.
Perguntam-me:
— Seu Olégna, o maestro vai tocar o quê??
É João Cabeleira perguntando um tanto tímido. Acho graça na pergunta e sugiro que a dirija ao maestro, que se adianta:
— Estou a disposição de vocês!
Zé da Luz volta a me provocar. Insiste na questão se vou ou não aceitar o seu desafio.
Antes que eu respondesse a Zé da Luz, Zé da Bia pergunta quem são os estrangeiros que vêm à fazenda. De improviso respondo sem viola, sem nada:
Esse tal Marquês de Sade
Nunca foi brinquedo não
Cabraxo do sadismo
Filho da praga, pai do cão
Veio à Terra pra fazer
Do prazer aberração!
Pietro era devasso
Mulherengo, tarado
Mulheres o chamavam
De amor, meu namorado
Enfim a vida é fácil
Pra quem é bem criado
Rétif de La Bretonne
Sempre foi um bom autor
Escreveu diversos livros
Com histórias de amor
No campo filosófico
Foi um grande pensador
De repente alguém levanta a mão. É Joyce perguntando sobre Casanova. De improviso, respondo:
Não era do barulho
Ele era do baralho
Amava vida boa
E odiava o trabalho
Pra ele as mulheres
Foram sempre do caralho!
Depois das palmas, de novo ouço Zé pedindo desafio. Em uníssono, todos fazem a pergunta:
— E aí, vai ou não vai?
Foi então que pedi uma viola.
Zé da Luz abriu um sorrisão na cara, também batendo palmas. Pigarreou e perguntou se não tinha uma caninha na casa pra molhar o bico.
De bate pronto, quase num passe de mágica, surgiu nas mãos de Zé um copo esborrotando que rapidamente emborcou goela abaixo. Feito isso, pegou a viola e começou a dedilhá-la e a cantar:
Era veneziano
O mais famoso sedutor
Nascido para ser padre
Desistiu foi professor
Pra com calma ensinar
Os caminhos do amor
Eu:
Foi um aventureiro
Diferente dos demais
Não pensava duas vezes
Pra quebrar regras legais
Pra ele certas coisas
Eram muito naturais
Zé da Luz:
A mãe era uma atriz
E o pai um bom ator
O casal teve seis filhos
Entre eles um pintor
Que fixou em tela
O mano galanteador
Eu:
Era um cara simples
Bonito e elegante
Andava bem vestido
Com firmeza, confiante
Chamava a atenção
Por ser também galante
Zé da Luz:
Varão, forte e viril
— E bem dotado também!
Andou por todo canto
Num eterno vai e vem
Verdade seja dita
Nunca dormiu sem ninguém
Eu:
Casanova era fã
De Pietro Aretino
Um poeta sem vergonha
Devasso e cretino
Diziam inimigos
Do ousado libertino
Zé da Luz:
Mas ele não ligava
Pois tempo não perdia
Gostava de bom vinho
De mulher e putaria
Quando queria chamava
O Deus Baco pra orgia
Eu:
Por um rabo de saia
Tudo fazia num piscar
Leão caçava a pau
E onça fazia miar
Do céu tirava o sol
Somente pra se mostrar
Zé da Luz:
Casanova foi um cara
Que gostava de pecar
E pecava todo dia
Sem poder se controlar
Sua fama ele fez
Pra na história ficar
Eu:
No seu tempo fez de tudo
Com beleza, alegria
Seu prazer era o prazer
Que dava e recebia
Casanova fez de tudo
Com mulher o que queria
Sob uma chuva de palmas, Zé da Luz e eu chamamos Sebastião Marinho e Oliveira de Panelas para darem continuação à prosa poética improvisada ao som de violas.
Marinho:
Um amante completo
No rigor da perfeição
Casanova sempre foi
Um mestre da sedução
Pra ele toda mulher
Era benção da Criação
Oliveira:
Esse cara fez de tudo
Inda mais até faria
Pra um dia ser lembrado
Pelas coisas que sabia
No seu mundo aprendeu
A viver com ousadia
Marinho:
Casanova nunca teve
Nem limite nem noção
Por uma mulher gostosa
Agarrava até o Cão
O inferno todos sabem
É o mundo da perdição
Oliveira:
Pode ser pode não ser
Verdade o que contou
Mas ele contava bem
As batalhas que travou
Sua luta era na cama
Com as mulheres que amou
Marinho:
Nesse mundo ele passou
Amando e sendo amado
Pra onde quer que fosse
Era sempre desejado
As mulheres viam nele
Um macho apaixonado
Oliveira:
Casanova não fumava
Casanova não bebia
Casanova tinha medo
De brochar em plena orgia
Por isso se cuidava
Pra fazer o que fazia
Marinho:
O cara no entanto
Não era brinquedo, não
Estava sempre pronto
Pra entrar em ação
Mulher ele chamava
Para chamegar no chão
Oliveira:
Viver é coisa boa
Mas é bom ter cuidado
Quem anda sem destino
Pode pegar trem errado
Um trem de pés pra cima
É um trem descarrilado
Marinho:
Pacato de bom papo
Detestava confusão
De briga ele fugia
Sem nem topar discussão
Porém um dia foi preso
E atirado na prisão
Oliveira:
Fora vítima de quem?
E qual a acusação?
Quem seria seu carrasco
Alguém da Inquisição?
Ou um maluco qualquer
Sem rumo, sem direção?
Marinho:
Agora o que fazer
Ali encarcerado
Que nem um preso qualquer
Depois de condenado?
Fugir, tinha de fugir
Pra não ser crucificado
Oliveira:
Pra isso fez um plano
Pra lá de bem bolado
Furar uma parede
Subir lá no telhado
E pronto! Estava livre
Que nem um ser alado
Marinho:
Muita coisa ele fez
Até mesmo por compulsão
Estudou e aprendeu
A arte da tradução
Não à toa encantou-se
Com Homero e Platão
Oliveira:
Teve tempo pra ouvir
Muito tempo para ler
Escutando aprendeu
A cultura do saber
Seguindo essa trilha
Completou-se no prazer
Marinho:
Traduziu Ilíada
Para italianos
Livro trata da guerra
Entre gregos e troianos
Que começou com um rapto
E durou mais de dez anos
Oliveira:
Aprendeu tudo que quis
No belo campo da cultura
Leu Dante, Camões e Sade
Mestres da literatura
Porém ele aprendeu
A viver com pica dura
Marinho:
Tinha sorte no amor
E no jogo tinha azar
Não sabendo o que fazer
Ajoelhou-se pra rezar
Seu destino era perder
Muitíssimo antes de ganhar
Oliveira:
Morreu longe de casa
Esquecido sem ninguém
Distante das mulheres
E dos seus filhos também
No jogo perdeu tudo
Um por um cada vintém
Zé da Luz:
Atenção chegou agora
Direto de São Salvador
Gregório de Matos e Guerra
Inspirado cantador
Que hoje já é lenda
Como grande pegador!