Seguir o blog

quarta-feira, 15 de junho de 2022

SEMPRE É TEMPO DE LEMBRAR TAIGUARA

Poucos artistas foram tão necessários à cena musical brasileira como Taiguara Chalar da Silva, nascido no dia 9 de outubro de 1945, em Montevidéu, Uruguai, mesmo mês em que os aloprados Hitler e Mussolini ainda insistiam em fazer deste mundinho de Deus uma simples bola de chutar.
Taiguara era uma figura e tanto!
Se alguém quisesse vê-lo irritado, que o chamasse de estrangeiro; e se o chamasse, que se preparasse para correr ou ficar e ouvir umas boas, já que não era de levar desaforo para casa. Parecia ter fogo nas ventas, o danado.
Deixou um legado musical comparável a pérolas do mais alto quilate.
E não quero aqui falar das canções clássicas como Hoje, Viagem, Universo no Teu Corpo, Que as Crianças Cantem Livres e nem dos nossos encontros no bar da esquina tomando jurubeba Leão do Norte; e chimarrão na minha casa. Tampouco, quero lembrar a vez que me pediu para levá-lo ao apartamento do cantor e compositor paraibano Geraldo Vandré, para um dedo de prosa.
E por que deveria lembrar o dia que duvidou que eu, trabalhando na TV Globo, mandasse registrar uma de suas passagens de som no Anhembi, em São Paulo, para o jornal da noite? E por que também deveria lembrar que foi gravado pelos franceses Françoise Hardy e Maurice Monthier? Que importância tem? E pelo sueco Jay Jay Johanson? Ah! Contar que ele próprio se aventurou a cantar na língua sábia de Shakespeare? Não, nada disso. Pra quê?
Também não quero lembrar o óbvio: que foi o artista que mais teve composições classificadas nos festivais de música popular no País. Era um craque, mestre na interpretação musical.
Há como esquecer a interpretação que deu à Modinha, de Sérgio Bittencourt, e à Helena, Helena, Helena, de Alberto Land? Voz suavíssima, encantadora por dizer o mínimo.
Em compensação, eu poderia aqui lembrar que este ano há pelo menos duas boas razões para se falar dele, Taiguara. Uma triste: o seu desaparecimento do mundo dos vivos. A outra alegre: a sua estréia em disco, ocorrida em 1965.
O que quero lembrar, mesmo, é que no baú das suas obras se acha o elepê Imyra, Tayra, Ipy, de 1976, recolhido das lojas 72 horas depois de lançado, por força e estreiteza mental do governo militar. É hoje uma relíquia nunca ouvida no formato cedê. Nunca aspas, pois essa relíquia acaba de ser relançada no Japão. No Japão! Em cedê, e eu disse: no Japão, repito. Uma de suas filhas, Imyra, se indignou ao saber da notícia:
— Não é justo que os brasileiros paguem em dólares para ouvir o meu pai cantar.
Aproveito para gritar: cartolas da Odeon, relancem logo os discos de Taiguara, pois as novas gerações não podem ficar alheias a eles. Precisam conhecê-los para saber que no Brasil já houve quem fizesse bonito na arte musical: o operístico e ao mesmo tempo popular Carlos Gomes; o chorão Callado, a chorona genial Chiquinha Gonzaga, o frevista Capiba, o bandolinista Jacob, o violonista Dilermando, o sambista Noel, o sanfoneiro Gonzaga, o mineiro Ary Barroso... Sem falar de Pixinguinha, Elomar, Vandré, Vital, Gereba, Sivuca, Osvaldinho, Dominguinhos e tantos mais.
As palavras que dão título ao disco censurado de Taiguara são mantras tupis, no esclarecer do próprio artista: imyra, uma volta à infância no bairro carioca de Santa Tereza; tayra, o sêmen do tempo; e ipy, o encontro ou mistura do velho com o novo.
Mais ou menos isso.
Nesse disco, ele se atira às raízes brasileiras a partir de Kuarup, de Darcy Ribeiro, mostrando que não se deixou levar pelo fácil canto falso das sereias transnacionais; e que soube, como poucos, usar as armas do inimigo para se fortalecer, não deixando de registrar sua obra no vinil por serem estrangeiras as gravadoras instaladas no Brasil. Assim, com esperteza, talento e determinação ele legou para a posteridade um punhado de sambas e canções, no meio alguns experimentos dodecafônicos, como Sete Cenas de Imyra.
No Imyra há letras e melodias absolutamente fantásticas.
Para começar, abre com pianice, uma “pecinha sinfônica” em que o autor usa o seu piano amestrado e segue lírico em Delírio Transatlântico e Chegada no Rio, passando pela saudade que morria do Brasil no exterior contida no lamento Terra das Palmeiras, inspirado no poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias; e fecha com a pequena peça de pouco mais de um minuto Outra Cena, em que usa a voz e o piano para falar de sol, sêca, sertão, povo, ladrão. Antes, na faixa penúltima (Primeira Bateria), clama por liberdade com a conivência do bandoneon ensinado do pai, Ubirajara.
E por aí ele vai que nem um mago trocando o condão pela batuta, enquanto se investe de maestro ao lado do bruxo Hermeto Pascoal, na flauta; de Toninho Horta, no violão; de Novelli, no baixo acústico; de Nivaldo Ornellas, no sax; de Lúcia Morelembaun, na harpa... De músicos, enfim, de primeiríssima linha.
Se por cá estivesse, certamente sorriria ao ler este texto e levantaria o braço direito com o punho cerrado, dizendo:
— Viva o Brasil, companheiro!
Era o seu jeito. 
 

POSTAGENS MAIS VISTAS