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sábado, 17 de abril de 2021

PANDEMIA COMO ROMANCE (2, FINAL)

 A peste a que se refere no livro Camus é a Bulbônica.

A Bubônica é doença antiga, com origem na China. 

Muita coisa veio da China. Muita coisa boa, muita coisa má. 

Outras pestes importunaram e devastaram o mundo, desde tempos imemoriais. A história conta.

A Peste é uma romance que trata da fragilidade humana. Nossa. 

Camus chegou perto do nosso Machado de Assis.

Camus nasceu em 1913, Machado em 1839.

A narrativa de Camus trás personagens atualíssimos do cotidiano de uma tragédia pandêmica.

Dizer mais o quê?

Machado, em vários livros, fez referências às pragas do seu tempo.

Não aprendemos com a história das mazelas, desgraças, porque não prestamos.

Somos horrorosos, etc.

Albert Camus deixa a ideia de que nós, humanos, poderemos ser bons, solidários, generosos.

Camus morreu num acidente de carro. 

Camus, jornalista, filósofo, teatrólogo, deixou a França de luto quando um acidente de carro o matou 4 de janeiro de 1960.

Mas os grandes não morrem, que nem os sonhos. 



UM ARTISTA NA RIBALTA

O sábado tem que ser um dia bonito, como todos os dias. Mas sábado é sábado, ora. E por não ter lá o que fazer, estou retomando à escrita Conto. Tudo invencionice, de cabeça oca. Lá vai:

UM ARTISTA NA RIBALTA, por Assis Angelo

Para Darlan Zurc, um brasileiro de Nova Soure (BA).

Um tiro seco varou a tarde e pegou o peito de João, que caiu feito um fardo.
Foi tudo muito rápido.
Desesperada e gritando que nem louca, Maria correu para acudi-lo. Não deu tempo.
Sobre o corpo do marido, Maria despencou com batimento zero.
Sorrateiramente, um vulto escapulia entre árvores.
Aturdido, a pouca distância dali, um menino tentava entender o que ali ocorria.
Um tiro, um baque surdo, choro e silêncio.
O dia se aproximava do fim.
O céu escurecia prometendo chuva.
Chuva traz raio e trovão.
Pra muita gente chuva de trovão traz granizo, chamado de dentes de nuvens.
Num galho de árvore, um passarinho soltava um trinado triste.
João era filho de Antônio, que era filho de José.
O avô de João era das Alagoas.
Homem simples, honesto e solidário, seu José trabalhava de sol a sol plantando e colhendo num pedaço de terra que herdara do pai.
Era alegre, brincalhão, não reclamava de nada, a não ser das secas brabas que chegavam de tempos em tempos.
Seu José não se metia na vida alheia e nem se envolvia com “coisas da política”, como dizia.
Gostava mesmo era de miudeza.
Nos fins de semana, achava tempo pra se divertir com as tiradas dos poetas violeiros.
Cantoria era seu fraco, especialmente quando nos embates de viola presente estavam os Cegos Aderaldo e Sinfrônio.
Nem sabia direito porque gostava tanto desses cantadores. Só sabia que eram bons e que a cegueira em nada os incomodava.
Era experiente, duro na queda.
Escapou incólume dos ventos pandêmicos da Bubônica e da Espanhola, que muita gente matou.
Numa manhã José disse à mulher, Anita, que iria tomar banho no açude e que voltaria logo. Não voltou.
Antônio adorava as histórias do pai. E muita coisa que o pai fazia, ele passou a fazer. Como alimentar o gosto pelas cantorias, pelas rodas de cordel, pelos ditos, causos e histórias de Trancoso.
Trancoso era um português que inventava histórias, lembrava José.
As histórias do pai, Antônio passou para o filho João.
Mas Antônio não queria que João vivesse o tempo todo na roça, no roçado, no campo. Queria vê-lo Doutor, com um anelão reluzente no dedo.
E João foi crescendo, crescendo e virou Doutor. Em Agronomia. E justificou-se ao pai ressaltando a importância da profissão que abarcara. Sem, porém, esquecer das histórias dos cantadores, das histórias dos violeiros, das histórias dos cangaceiros.
Antônio ficou orgulhoso do filho.
Ao contrário do avô e do pai, João só teve um filho, a quem deu por herança o nome.
O pequeno João ouvia tudo, mas não via nada.
Ficava encantado com as histórias que o pai contava. Não à toa ele passou a gostar do Gego Aderaldo, Cego Sinfrônio e de outros cegos, como Patativa e Manelito.
Manelito era um ás do violão. Era chamado de O Poeta do Violão. E até no rádio ele tocava. E pelo rádio ficou famoso.
Com seu instrumento, Manelito era capaz de fazer Deus chorar de alegria.
Um dia o menino João prometeu ao pai: Vou ser que nem Manelito ou Aderaldo. Vou tocar muito pra o sinhô gostar do que eu vou tocar.
O pai chorou.
Na tarde do tiro seco e do baque surdo, João tinha uns 7 anos.
Depois, pouco depois, é que foi descobrir que o choro que ouvira naquela tarde era da mãe.
O tempo passou e ele foi crescendo, crescendo, até virar um gigante da arte de tocar cordas.

E como gigante, conheceu outros gigantes como João Pernambuco e Villa-Lobos.

Conheceu também o cantador Pinto do Monteiro, que lhe ensinou detalhes esquecidos por Villa.

Naquele tempo, tempo de gigantes, João viu se possível fazer o que prometera ao pai.
A cantoria e o gosto pela arte João do pai e do avô herdou.
Até hoje ninguém sabe quem disparou o tiro que pegou o peito de João, se homem ou se mulher.

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