Para marcar este período do ano, em que muitas regiões do
País festejam a Folia de Reis, Assis Ângelo conversou com o octogenário mineiro
Carlos Felipe Horta, jornalista, historiador, folclorista, grande conhecedor de
música, seresteiro e escritor. É autor, entre outros, de Téo Azevedo, um poeta
cantador, Alegria, alegria: as mais belas canções de nossa infância, Minas ao
luar: canções, Quilombolas de Minas Gerais − Uma metodologia de resgate de
identidades e O grande livro do folclore. Assis Ângelo − Na cultura popular o
que mais se destaca? Carlos Felipe Horta − A cultura popular é uma colcha de
retalhos, cada um deles com um formato, um colorido e modos diferentes de
existir. Há as crenças populares, a religiosidade, a música, a literatura do
povo, o artesanato, os folguedos e danças, a medicina, o conhecimento das
plantas, a visão do sobrenatural, a consciência da vida e a perspectiva do que
virá depois; tudo isso e muito mais está dentro da cultura popular. Nela, cada
agente, uma pessoa comum, tem um universo dentro dele, resultado de séculos de
aprendizado e acumulação de conhecimentos. Geração após geração, tudo vai se
incorporando num HD milagroso e fantástico. E ele, o agente, mesmo que não
saiba a razão, é e será sempre o conservador e guardador do que lhe deram e que
ele vai transmitir para os que vierem depois dele. Mesmo sem uma noção
consciente do que está fazendo. E nisso não há este ou aquele fator mais
importante. A cultura popular é um todo. Assis − Quais os estados que mais
praticam e alimentam a cultura popular? Horta − Evidente que não conhecemos
tudo o que gostaríamos de conhecer sobre o Brasil e sua relação com o folclore
e a cultura popular. Mesmo assim, arriscamos dizer que o povo brasileiro, como
um todo, pratica e alimenta a sua cultura mais intrínseca. Mesmo com a falta de
apoio de órgãos oficiais e, mais ainda, de setores econômicos, publicidade e
até de entidades que, embora integrem setores culturais, não conseguem
vislumbrar a importância do folclore como uma legítima representatividade de
alma popular. Mais ainda: estamos assistindo a um verdadeiro genocídio por
parte de grupos que tentam dar ao folclore um sentido diabólico. Com tudo isso,
repetimos, o Brasil inteiro pratica e É tempo de Folia de Reis Carlos Felipe
Horta alimenta a cultura popular. Com um detalhe importante. Há muitos brasis
no Brasil, cada um deles mantendo aspectos próprios, frutos de sua formação
étnica, sua história, sua economia e até sua geologia. Como querer que o
habitante da Amazônia tenha a mesma cultura do paulistano, do mineiro, gaúcho e
nordestino? Em um mesmo estado encontramos diversidades e aspectos regionais
completamente diferentes. Isto, talvez, seja a coisa mais importante da cultura
popular brasileira. Ela é rica demais e, mesmo enfrentando os problemas
naturais das transformações socioeconômicas, políticas e históricas, consegue
dar ao Brasil algo que poucos outros países possuem: uma multiplicidade
cultural numa unidade nacional. Assis − Como se guarda a Folia de Reis no
Brasil? Horta − O povo guarda. Mesmo com todas as dificuldades, enfrentando as
mudanças sociais e políticas, as folias resistem. É o caso de Minas Gerais,
onde pesquisa feita pelo IEPHA/MG constatou a existência de mais de quatro mil
grupos de folia. Evidente que a pandemia, com todas as suas consequências, deve
estar provocando a morte de algumas delas, mas, como aprendemos ao longo de
décadas de vivência no meio da cultura popular, elas vão resistir. Assis − Qual
a importância da Folia de Reis na cultura brasileira? Horta − A Folia de Reis
tem seus segredos e mistérios e um deles é ser mais presente no meio do povo
simples. Para este povo, mesmo que de modo inconsciente, ela faz parte de sua
vida. E eu me lembro muito bem de um tio meu, na velha Santa Cruz das Areias,
minha terra, hoje Fortaleza de Minas. Mais velho, ele tinha reumatismo e
problemas de locomoção. Mas quando chegava o Natal, ele ia para a rua com a sua
folia e dançava até o dia 6 de janeiro. Coisa milagrosa mesmo. Se ele não
dançasse, a vida perdia o sentido. Ele me ensinou muitas cantigas e rezas e
sempre dizia: “A folia é a alegria de todos nós”. Talvez seja esta a explicação
mais clara do que é a folia. É alegria do povo. Como outros folguedos, claro,
mas a própria palavra “folia” já diz praticamente tudo.