Adoniran Barbosa – O “oriundo” do povo
(reprodução da entrevista publicada na edição nº 27 da revista Homem, de novembro de 1980)
O maior sambista paulistano acaba de completar setenta anos de vida e quarenta de carreira artística, em meio a uma grande festa. Mas ele não está feliz. Seu coração tem mágoa acumulada durante os muitos anos que passou sem ver seu trabalho reconhecido.
Nóis pega, nóis peguemo, nóis ia, mas num fumo. Óianóis cá travêiz! Cês num ligue não, é assim mermo. Ora, diacho, mas quem danado fala desta forma? – Num sou eu não, garanto. Eu até que falo certo, quem fala errado é o povo. Só que tem um negócio: eu sou Adoniran Barbosa, o Oriundo.
Então está explicado: Adoniran Barbosa, o que Adoniran Barbosa – O “oriundo” do povo (reprodução da entrevista publicada na edição nº 27 da revista Homem, de novembro de 1980) veio daqui mesmo, do povo. E não duvidem, povo verdadeiramente ele é.
– Óia, eu fui entregador de marmita, faxinêro, tecelão, serralhêro, garção de casa de ministro e muitas outra coisa eu fiz: rádio, televisão, cinema. Fui calôro e cantei muitas música de Noé Rosa... Hoje tô muito calejado. Sou um artista apusentado.
Adoniran não é de falar muito e com pouco se enche. É esquivo, escorregadio, mas quando toma “uns mé” – uísque, de preferência – ou se avista com amigos do tempo passado, se transforma numa torrente de palavras. Frequentemente amargo, diz de si:
– Não sinto mais emoção alguma, o que vier eu traço na maior indiferença.
Massificado pela cidade grande, que conheceu tão pequena e pacata? Sim, talvez. Apesar disso, não se fiem muito na conversa desse jovem de setent’anos, não. E uma coisa é certa: ele é incrível.
Uma vez a repórter Dulce Tupy escreveu que há muitas maneiras de se anunciar Adoniran Barbosa; uma delas: senhoras e senhores, com vocês o incrível, o fantástico, o extraordinário Adoniran Barbosa... Ou então: gente, olha mais um disco do Adoniran, que loucura!... Ou assim: veterano da música popular brasileira lança mais um LP após 40 anos de carreira artística em rádio, cinema e televisão...
Mas até ser considerado pela crítica como um dos maiores valores da música popular brasileira, João Rubinato – este o seu verdadeiro nome – comeu o pão que o diabo amassou. Muito cedo ele teve de lutar para sobreviver junto com mais cinco irmãos – três mulheres e três homens. A família vivia numa penúria de dar dó. O pai, italiano de Veneza, era ferroviário no Brasil. E, por isso, o pequeno João tinha de sair correndo da escola – fez até o 3º ano primário, em Jundiaí – direto à estação para ajudar o “velho”, que trabalhava sem descanso.
Lembrando tudo isto, Adoniran Barbosa diz hoje: – A vida me ensinou a viver. De vida ele fez curso e se formou.
A fama chega no trem das onze
perseverante, o pequeno João alimentava a esperança de um dia ser famoso, ser artista. E nas horas vagas, muito poucas, ele dedilhava um violão e compunha coisinhas maravilhosas assim, já nos anos 50: ”
...Eu sou a lâmpida
E as mulhé é as mariposa,
Ficam dando vorta
Em vorta de mim todas noite
Só pra me beijá...”
Nessa época João – já Adoniran Barbosa – era homem feito e bastante conhecido em São Paulo. Mas no começo da carreira, ele era conhecido apenas na rua Aurora – onde morou quase dez anos – e proximidades da praça Júlio Mesquita. No mais, não passava de um ilustre cidadão comum anônimo na multidão. Até que, achando o seu nome de batismo – João Rubinato – “difícil de pegar”, resolveu dar um jeito.
– Foi assim: o Luís Barbosa, cantor de samba carioca, meu amigo, vinha sempre a São Paulo e aqui a gente costumava passear; o Adoniran era um rapaz do Correio, também muito meu amigo. Aí juntei os dois nomes e ficou assim: Adoniran Barbosa.
Depois disso, a coisa mudou de figura. O pseudônimo deu certo e logo caiu na boca do povo. Quando fez a “operação nominal”, por volta de 1940, ele era locutor – disc-jóquei – de rádio, mas nem por isso tão famoso quanto hoje. Adoniran ficou famoso mesmo foi quando compôs o Trem das Onze, a Saudosa Maloca, a Iracema e, com Vinicius de Moraes, Bom Dia Tristeza, no tempo em que o poeta era embaixador em Paris. Adoniran:
– Você lembra de As Mariposa? É assim: Quando chega o frio/Fica dando vorta em vorta da lâmpida/ Pra se esquentá/Elas roda, roda, roda/... Eu sou a lâmpida/E as mulhé é as mariposa... Boa noite, lâmpida/Boa noite, mariposa/Permita de oscular-lhe a sua face/Pois não, mas rápido/Daqui a pouco eles me apaga. Bunita, né?
Pela Colúmbia, Adoniran Barbosa gravou, há muitos anos, a primeira música. Título: Agora Pode Chorar, de Baiton. Sua primeira parceria: Dona Boa, uma marchinha, com Jota Emere.
Agora Pode Chorar era um samba e começava assim: Chora, chora/-Quem te ensinou a chorá não foi eu/-Chora, chora purque o nosso amô morreu. Depois dessa ele fez e assinou muitas outras parcerias: Guiomar Pafunça, O Casamento do Moacir, Prova de Carinho, Aguenta a Mão, João, Torresmo à Milanesa, etc. etc .etc..
– Com Vinicius eu só tenho um trabalho, que é Bom Dia Tristeza. E foi muito engraçado o jeito como nóis fizemo ela. Naquele tempo eu nem conhecia Vinicius, ele tava em Londres, Paris, sei lá, nem me lembro direito. O ano acho que era 56. Apôis bem, ele mandô uns verso numa carta para a sua amiga Aracy de Almeida, dizendo: pode fazer o que você quiser com estes verso. Aí ela me procurou e pediu para eu pôr música. No mesmo dia eu botei, numa hora que eu tava no Nick Bar em cumpanhia do João Maria de Abreu. Musiquei o poema e o João achou muito bom. E disse: dêxa que eu iscrevo a música na partitura. Disse e fêis. Vinicius também adorou. Bom Dia Tristeza foi gravada pela própria Aracy de Almeida, Elizeth e mais um monte de artista.
Conta-se que Vinicius de Moraes não gostava muito de Adoniran, do jeito como até hoje ainda compõe as letras de suas músicas. Mas, depois de ouvir Bom Dia Tristeza, Vinícius teria mudado de opinião chegando até a dizer: ora, ora, mas como é que pode?... Conta-se também que, ainda por causa de Adoniran, Vinícius teria dito que “São Paulo é o túmulo do samba”, como se somente os cariocas fossem capazes de fazer samba. Porém essa versão é negada pelo autor de Iracema:
– Nada disso, isso é cunversa fiada. Inclusive, quando ele me conheceu gostou muito de mim, das minhas músicas, das minhas letras. Vinícius achava o meu estilo maravilhoso, inconfundível. Formidável mesmo. Ele dizia que eu sou um grande artista... Deve ser cunversa mole, né? Mas ele falou, tá falado.
Um sujeito muito calejado
Adoniran Barbosa é ciente do valor da sua obra, da sua “bagagem” musical. E, talvez por isto mesmo, costuma dar pouca importância aos elogios que lhe fazem com frequência. Arredio, dificilmente aceita ir a uma festa. E quando a festa é em sua homenagem... nem fala. Meio chateado e com uma indisfarçável pontinha de mágoa, segreda:
– Quando eu precisava de homenage, de uma força, ninguém tava nem aí. Agora que eu sou cunhecido, vêm com um lenga-lenga sem fim pru lado de mim. Tô sabendo.
Faz pequena pausa. Passa alguém à nossa volta e ele cumprimenta: “ÔI”. Baixa a cabeça e, indiferente, repete:
– Sou hoje um sujeito muito calejado.
Há dois meses, a direção da gravadora Odeon promoveu uma grande festa em homenagem a esse grande e magoado artista. Motivos: o lançamento do seu terceiro LP e o seu 70º aniversário de nascimento. Os amigos, cabreiros, imaginaram, como não poderia deixar de ser, que o jovem Adoniran não compareceria. Ledo engano, ele surpreendeu a todos indo à festa e tudo foi muito bonito, “só que perdi o sossego”, diz, acrescentando:
– Desde o cumeço do mêis de agosto que tudo quanto é repórter de jorná, rivista, rádio e televisão tem vindo me prucurá querendo intrivista. Sabe, tô tão cansado que já num guento mais.
Ele não gosta muito de lembrar a passagem do seu 70º aniversário e nem falar de planos futuros. Diz que as coisas estão assim, assim, e quer ver como é que vão ficar. As entrevistas que tem dado, quase que diariamente, começam com ele dizendo, invariavelmente, o tanto que batalhou para chegar onde chegou.
– Meu fio, eu fiz de tudo na vida. O sucesso eu cunheço desde o tempo que eu tinha programas de rádio: Casa de sogra, O crime não compensa, História da maloca, com Charutinho. Na televisão, eu fiz quatro novelas: Mulheres de areia, Os inocentes, Xeque mate e Ovelha negra. E no cinema: O cangaceiro, Candinho, A carrocinha. Entrei no rádio como calôro, por volta de 33. Eu interpretava mais Noé Rosa, que cunheci pessoalmente mas só de passagem, de bom dia, ôi, como vai. O Charutinho que eu fazia no rádio é famoso até hoje. Criei personage de todo tipo: criôlo, italiano, francês, por aí. Mas nenhum foi inspirado em alguém: tudo criação minha.
E São Paulo de hoje, muito diferente da cidade de ontem? Ele faz um muxoxo, como se dissesse: quá, num quero nem falá!
– Hoje a minha cidade está completamente transformada, muito diferente daquela que cunheci no cumeço do século. Nem as ruas do meu tempo num ixiste mais, é uma pena. São Paulo era uma cidade muito bonita. Hoje eu procuro São Paulo e não acho, tá tudo mudado, mudou tudo para pior. Tá tudo muito violento, tem muita gente, muito cimento, muito corre-corre, muito automove, muita buzina. Deus do céu!
Boêmio pobre, mas boêmio
Mesmo assim, Adoniran Barbosa continua sendo o cronista-sambista mor de São Paulo – cidade que, para Lourenço Diaféria, se resume numa questão de fé e “é um arroubo emocional acima de razões e certezas”. Fiel a si próprio, ultimamente Adoniran tem registrado suas reminiscências nas páginas do periódico paulistano Feijão com Arroz. Além disso, ele tem procurado imortalizar os bairros da cidade que conhece tão bem como a palma da mão, através dos seus sambas. Motivo de composições já foram: Mooca, Vila Esperança – uma obra-prima –, Brás, Jaçanã, Casa Verde etc. A avenida São João, claro, o artista não poderia esquecer jamais, como Paulo Vanzolini. E assim, ele continua indo. Aos 70 anos de idade, ainda se considera um “boêmio inveterado”.
– Sou um boêmio pobre, mas boêmio; de rua, de esquina, de botequim. Pra você ter uma ideia: sou do tempo de serenata na rua. Mas na rua agora não posso mais fazer serenata com violão e tudo, como as serenata eram feita. Serenata na rua a gente fazia antes de São Paulo ficar como ficou: feia e triste. Tudo acabô, foi proibido pelas otoridade. O que se há de fazê agora?
Adoniran Barbosa lamenta também o fato de as emissoras de rádio e televisão não oferecerem mais bons programas, como antigamente. Para ele, o que se salva ainda é um Chacrinha e mesmo Os Trapalhões. O resto é o resto e nada mais se salva.
– Chico Anísio é bom, mas saiu da televisão.
E o samba?
– Ah, o samba! O samba é tudo pra mim. Quando alguém me pergunta o que é que eu acho do samba, nem sei responder direito: eu sou o samba.
Nostálgico? Não, nem um pouco.
– A única coisa de que sinto saudade é da carne, do pão bom, enfim: da boa comida de antigamente. Hoje é tudo enlatado, horrive! E o rádio, o cinema? Garante ele que “nunca jamais” voltaria a empunhar um microfone para fazer um programa.
– Sou um artista apusentado. De positivo, só acha uma coisa: os jornais. E explica:
– Os jorná de hoje dão muita força a nóis artista. Antigamente num era assim, não. Tão muito bom. Mas eu também num ligo muito para isso não. Num quero mais me preocupá. Quero mesmo é vivê. Eu gosto muito da vida. É pena que eu me judiei muito na minha juventude. Me maltratei mesmo, sabe como é: boêmia, noitada e mais noitada, cigarro, bibida. É, me judiei muito. Hoje cum setent’anos era pr’eu tá mais forte um pouco. Tô forte, graças a Deus, mas era pra tá mais. Num tô arrependido, mas eu não faria tudo outra vêiz do mesmo jeito que fiz.
Se João Rubinato não tivesse conhecido o sambista carioca Luis Barbosa e o carteiro Adoniran, dificilmente existiria o artista Adoniran Barbosa. Talvez Jean Rubinê ou Giovanni Rubinato, isso porque o João estava decidido a adotar um pseudônimo. Ele brinca: “Já pensou um artista sendo chamado de João Rubinato?”.Não soaria bem, é o que João achava. Mas, felizmente, surgiram Luis Barbosa e Adoniran e os dois em João estão vivendo muito bem, diga-se de passagem. Para os mais íntimos, o artista Adoniran Barbosa atende pelo apelido de “Rei da Estufa”, que ganhou tempos atrás por gostar muito de pastéis, coxinhas e empadinhas que ficam expostas nas estufas dos bares. Mas, cuidado: tem que ser íntimo para chamá-lo pelo apelido.
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