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sexta-feira, 30 de junho de 2023

FESTA É FESTA!

O Festival de Parintins, em Manaus, AM, começa hoje 30. É 56ª edição. Os personagens principais são os bois Caprichoso e Garantido.
Essa festa é uma das inúmeras festas que há no mês de junho, no Brasil.
No Nordeste, principalmente no Nordeste, o mês de junho é o mês junino, de São João.
Em Caruaru, PE, e em Campina Grande, PB, ocorre o que os marqueteiros de plantão dizem ser "o maior São João do mundo". É e não é. É porque no Brasil o São João continua sendo uma grande festa, ao contrário do que ocorre noutros países. E não é porque o São João dessas duas cidades virou um pastiche. Ou seja: o sertanojo e a sofrência estão substituindo a música tradicional da época.
O Festival de Parintins é algo parecido com o que ocorre no sambódromo do Rio de Janeiro, nos fevereiros de Carnaval. É festa luminosa para os olhos estrangeiros, principalmente.
Parintins é diferente do Boi-Bumbá que tão bem conhecemos.
Mas festa é festa. E ponto.



LEIA MAIS: O BOI NA CULTURA POPULAR

quinta-feira, 29 de junho de 2023

ATENÇÃO, LIVRO NOVO À VISTA!

Atenção, atenção, senhores e senhoras, meninos e meninas! 
Atenção Brasil! 
O mundo literário e dos quadrinhos tem motivo pra começar a se agitar: está na boca do forno o novo livro do cartunista Fausto. Esse novo livro, Histórias de Esquina, traz também a assinatura deste que cá escreve. Pois, pois. O prefácio é do maestro Júlio Medaglia e o posfácio de Valdir Carleto. Craques.
Eu se fosse você, meu amigo minha amiga, entrava correndinho em contato com o Fausto para reservar pelo menos um exemplar de Histórias de Esquina. O email dele é este aqui, ó: faube@uol.com.br
O cara que deu forma ao livro que está pra sair tem jeito pra coisa: Sérgio Bergocce. 
A primeira prova do novo livro de Fausto, feito com uma mãozinha minha, é esta:

A VIDA POR JOÃO CARLOS PECCI (4, FINAL)

João Carlos Pecci
ASSIS ÂNGELO:
Eu perdi a luz dos meus olhos há 10 anos. O motivo foi descolamento de retinas. E o acidente que paralisou você, ocorreu como e quando?

JOÃO CARLOS PECCI: Como disse antes, foi num acidente na Via Dutra. Eram 5 horas da tarde de um domingo chuvoso, eu viajava sozinho. Na época não havia cinto de segurança nos carros. Quando me socorreram, eu estava desacordado no piso de trás do Fusca. Imagina o impacto. Você perdeu a visão e continua enxergando através dos sentidos e com a profundeza da alma. Eu perdi a mobilidade e continuo me locomovendo sem deixar pegadas no chão mas exercendo minha vida no Ser, no Existir e no Evoluir. Assim, ambos enxergamos e caminhamos.


ASSIS: Pra mim é muito difícil viver sem a luz dos olhos meus. E você, adaptou-se completamente à nova vida?

JOÃO: Para quem perde alguma capacidade física ou sensorial, a adaptação dificilmente será completa. Mas a paraplegia, ao invés de me trancar, me soltou para a vida. Tornei-me mais sensível e evolui meu espírito na compreensão das diferenças. Sei que não posso tudo, mas posso muita coisa. Enveredei pelas artes, que me possibilitam expor sentimentos e angústias. Através delas eu me doo um pouco, essencial para o ser humano. O casamento fez de mim um homem maior ao lado de uma mulher ainda maior que eu. Deu-me uma filha, renovação de nossas vidas. E prossigo, velejando a vida, perseguindo a realização de novos sonhos, como um novo livro, que vem ai em breve. Há que continuar sempre em busca do novo, embora o novo seja a transformação de algo que já conhecemos…


ASSIS: Do alto dos meus 70 anos, ainda sonho. E você, já realizou todos os sonhos?

JOÃO: Sonhar é renovar caminhos e esperanças. Ai daquele que deixa de sentir o aroma desse perfume...

quarta-feira, 28 de junho de 2023

A VIDA POR JOÃO CARLOS PECCI (3)



ASSIS ÂNGELO: Seu irmão Toquinho tem uma parceria musical com Geraldo Vandré. A última vez que você viu Vandré foi no Carnaval de 1968. O que acha da obra desse artista?

JOÃO CARLOS PECCI: Conheci Geraldo Vandré no Guarujá, carnaval de 1968. Ele tornou-se amigo de minha turma, afável, carinhoso, divertido. Disponível em muitos momentos de vários dias. Depois o vi somente em 1976, levado à minha casa por uma amiga. Era um outro Vandré. Ficou quieto, sentado em um canto, falando pouco, escrevendo o tempo todo. Vandré é um romântico revolucionário. Polêmico, sua música é forte e transformadora. No final de 1968 ele agitou o Maracanãzinho apenas com seu violão e sua voz falando de flores e canhões. Depois saiu pelo mundo propagando o Brasil e suas raízes nordestinas.


ASSIS: Você escreveu livros sobre Vinícius de Moraes. O que mais importante você vê na obra de Vinícius?

JOÃO: Vinícius é um grande poeta e um grande músico também. Aliás, a música chegou para ele antes que a poesia propriamente dita. Sua primeira canção é de 1929, com 15 anos, “Loura ou morena”. Anterior ao seu primeiro livro, “O caminho para a distância”, de 1933. Vinícius retrata o amor e a paixão em poemas, sonetos, baladas, crônicas e peças teatrais. Acredito que o mais brilhante de sua obra são os sonetos que ele criou entre 1938 e 1940 quando esteve na Inglaterra como bolsista em Oxford. Mas o mais importante de sua carreira é o fato de ele ter transferido sua poesia para a música popular, dotando-a de leveza e simplicidade, tornando-se, ao lado de Tom Jobim, artífice da mais dignificante transformação musical que encantou e encanta o mundo até hoje: a Bossa Nova. E mais: na música, ele jamais deixou escapar o viço de sua poesia, mantendo-se sempre ao lado de parceiros jovens como Baden Powell, Carlos Lyra, Francis Hime, Edu Lobo e Toquinho.


ASSIS: João, o Brasil é um país fantástico. O que falta para o Brasil ser de fato um país feliz? Os políticos atrapalham?

JOÃO: Há tempos o brasileiro descobriu a mágica de ser feliz ludibriando a realidade. Com todo direito e criatividade. Seu divertimento é fazer piada de políticos que atravancam esse país. No Brasil, o povo vive de lampejos. Com alguns clarões mais promissores, mas sempre interrompidos. Passamos por suicídio, renúncia, ditadura, morte quase no dia da posse, dois impeachments, corrupção, um ex-presidente preso, ameaças à democracia... E sempre na esperança de que algum lampejo se transforme num brilho mais duradouro. Longe disso. Vivemos hoje um parlamentarismo disfarçado. Mas o nível dos congressistas é cada vez mais desanimador....

terça-feira, 27 de junho de 2023

A VIDA POR JOÃO CARLOS PECCI (2)



ASSIS ÂNGELO: O que ou quem inspirou você a trilhar o caminho das artes? Quando você começou a escrever livros?

JOÃO CARLOS PECCI: A deficiência física provoca obstáculos imprevisíveis, principalmente no início, quando tudo é espantoso. Mas também abre portas para a superação. Primeiro veio a pintura, como terapia para fortalecer os dedos das mãos. Jamais imaginei pintar quadros. Entre outras portas, a paraplegia me abriu também essa. A terapia foi virando profissão. De 1972 a 1978 expus meus quadros na Praça da República, numa época romântica e artesanal. Depois comecei a expor em galerias e meus quadros passaram a ser valorizados. Hoje os divulgo nas redes sociais recebendo retornos elogiosos e compensadores. A literatura surgiu de toda transformação provocada em minha vida. Mudava muita coisa, mas eu conseguia manter em torno de mim a abnegação da família, o carinho e apoio dos amigos. Além de usar a cadeira de rodas, tornei-me um itinerante apoiado em duas bengalas, o corpo suportado por uma órtese da cintura até os pés. A vida me caminhava, imitando Paulinho da Viola: “Não sou eu que me navego, que me navega é o mar...”. Namorava com mais poesia, fazia sexo – sim, fazia sexo com mais ardor. Então resolvi: “Preciso escrever sobre tudo isso”. Em 1980 foi editado pela Summus Editorial meu primeiro livro, “Minha Profissão é Andar”. Um texto transparente, real, sem pieguice nem vaidade. É um livro precursor desse tema no Brasil, virou ‘best seller”, foi adotado em escolas e faculdades, me fez palestrante. Hoje conta mais de 30 edições, sendo incentivo para que surgissem outros livros sobre o assunto. A literatura passou a fazer parte de mim e vieram mais livros. Atrevi-me a escrever crônicas e poesias em “Existência” (1984 – Summus). Enveredei pelo romance, “O ramo de hortências” (1987 – edição própria). Aí resolvi trabalhar em uma biografia sobre Vinícius de Moraes. Tarefa árdua de 4 anos de pesquisas e aprendizados resultando no livro “Vinícius-Sem Ponto Final” (1994-Saraiva). Minha filha nasceu em 1996. Dois anos após pensei em escrever sobre um outro periodo de minha vida: o do casamento com Márcia e o nascimento de Marina, concebida por meio de uma autoinseminação, método até então não experimentado no Brasil, sendo eu o primeiro brasileiro paraplégico a tentá-lo usando o próprio esperma, introduzido na mulher através de uma seringa. O livro: “Velejando a Vida” (1998-Saraiva). Entre pinturas e palestras, fui montando a trajetória musical de Toquinho, meu irmão. Deu em três livros: “Toquinho-40 Anos de Música” (2006), “Toquinho-Acorde Solto no Ar” (2010) e “Toquinho-História das Canções”, em parceria com Wagner Homem (2011-Leia do Brasil)


ASSIS: Você costuma compor música ou letras para música?

JOÃO: Não é comum. Acontece eventualmente, como “Caminhantes”, musicada e gravada por Paulinho Nogueira. “O robô”, “Doce martírio” e “Além do portão”, musicadas e gravadas por Toquinho em diferentes discos.


ASSIS: Outro dia você me falou que tem um ou dois livros inéditos. Quais são e do que tratam?

JOÃO: São dois livros. Um deles escrito em colaboração com a Laramara, associação que cuida de deficientes visuais. O livro conta a história de 10 pessoas deficientes visuais que conseguem conviver e superar suas deficiências de diferentes naturezas enxergando a vida com sabedoria e sensibilidades que vão além da visão comum. Continuo pintando e escrevendo. Nos próximos meses será lançado meu novo livro, “Ser, Conceber, Evoluir...”. Aborda um caso real de uma mulher portadora de Esclerose Múltipla, conseguindo superar a doença com coragem e determinação.

segunda-feira, 26 de junho de 2023

A VIDA POR JOÃO CARLOS PECCI (1)

Falar com o paulistano João Carlos Pecci é uma alegria. Cabra bom, de boa formação e otimista. É um velejador da vida, do mar. É um dos filhos do casal Nico e Diva. Tem um irmão famoso: Toquinho, compositor e violonista dos bons, conhecido em boa parte do mundo, parceiro eterno do poetinha Vinícius.
Esse João de quem falo é da safra de 42. Em 1965, na PUC, fez o curso de Ciências Econômicas. Sempre foi alegre, despachado. Conhece muita gente, muitos artistas. Sente saudade de Vandré, parceiro de Toquinho (Presença). "Conheci Geraldo Vandré no Guarujá, carnaval de 1968. Ele tornou-se amigo de minha turma, afável, carinhoso, divertido. Disponível em muitos momentos de vários dias. Depois o vi somente em 1976, levado à minha casa por uma amiga. Era um outro Vandré".
Após concluir Ciências Econômicas, João Carlos Pecci enveredou pelo caminho do Direito, mas não foi longe. Um acidente de automóvel, na Via Dutra, mudaria sua vida. Tinha 26 anos de idade. "... Eu cochilei na direção, meu Fusca derrapou dando várias voltas. Em consequência, deu-se uma lesão medular na altura da 6ª vértebra cervical e eu fiquei paraplégico", lembra.
A literatura e as artes plásticas alcançaram João após o lamentável acidente. Já publicou meia dúzia de livros. O primeiro: Minha Profissão é Andar (Summus; 1980). Também lançou à praça um monte de quadros. A geometria é a marca da sua obra. "De 1972 a 1978 expus meus quadros na Praça da República, numa época romântica e artesanal. Depois comecei a expor em galerias e meus quadros passaram a ser valorizados. Hoje os divulgo nas redes sociais recebendo retornos elogiosos e compensadores".
Em raras ocasiões, João também inventa de compor. Tem músicas gravadas por Paulinho Nogueira (Caminhantes) e Toquinho (O Robô, Doce Martírio e Além do Portão).
O sonho, a vontade de fazer coisas move João Carlos Pecci a seguir firme na vida. "Sonhar é renovar caminhos e esperanças. Ai daquele que deixa de sentir o aroma desse perfume...", ele diz.

A partir de hoje e até quinta-feira, os amigos seguidores deste Blog terão a oportunidade de acompanhar a entrevista que fiz com o João.

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João Carlos Pecci e o irmão, Toquinho
ASSIS ÂNGELO: Fale um pouco a respeito dos seus pais e irmãos. Em que bairro de São Paulo você nasceu e quando?

JOÃO CARLOS PECCI: Eu nasci em 1942. Morava no bairro do Bom Retiro, reduto de famílias italianas, na época. Minha mãe, Diva, falecida aos 92 anos. Mulher ativa, doadora para o marido e para os filhos. Não media esforços para dar aos filhos carinho e proteção. Tocava violino, minha mãe, e era uma grande modista. Meu pai, Antonio, conhecido como Seu Nico. Viveu bem e forte até 94 anos. Um homem além de seu tempo. Agregador, liberal, fascinado por livros, música e cinema. Tornou-se até um cinegrafista amador, na época, coisa incomum. Deixou para a família, em filmes, momentos inestimáveis. Fazia de tudo, meu pai. Foi alfaiate, taxista, industrial e empreendedor no ramo imobiliário. Dona Diva e Seu Nico. Ela nos ensinou o amor sem limites. Ele nos ensinou a acariciar as adversidades com ternura; a amenizar as ansiedades com paciência; a buscar os objetivos com determinação; a absorver cada momento difícil para poder vencê-lo com o gosto do prazer. Eles são responsáveis pelos Homens que somos hoje, eu e meu irmão Antonio, nascido em 1946. A música o tomou desde os 13 anos, estimulado pela Bossa Nova e João Gilberto. Abraçado ao violão, tornou-se o Toquinho, violonista, compositor e intérprete, cujas músicas alcançam uma dimensão internacional. Vivemos uma infância livre, o bairro facilitava. Tudo era muito bucólico, apesar de um bairro central da cidade. Brincadeiras de rua, jogo de botão, pipa, rolimã, pega-pega. Em junho, cadeiras na calçada, balão, fogueira, quentão, batata doce. A várzea nos oferecia campos de grama e traves com rede, e o futebol impregnou-se em nós desde crianças, fanáticos pelo Corinthians. Com vários campos à disposição, a vida se abria em lampejos de prazer: nas primeiras corridas atrás da bola, na escolha dos times, no barato de constatar que tinha rede nas traves! Era diferente jogar com rede nas traves. Podia-se vibrar mais ainda nos gols vendo a bola estufá-la e correr pela extensão dela rumo ao chão. Num gol com rede nas traves, parece que a bola desliza pelo coração do jogador fazendo-o pulsar com mais força. Sem rede é como se se esquecesse um poema no fim da última estrofe. E esse poema prosseguia quando nosso pai nos levava aos treinos do Corinthians, na velha Fazendinha, onde podíamos chegar perto dos ídolos da época, Cláudio, Luizinho, Baltazar, Gilmar, e tirar fotos com eles. Mais que irmãos, tornamo-nos amigos e cúmplices em venturas e aventuras pela vida. Hoje, além de meus pais, minha esposa e minha filha, ele é um dos orgulhos de minha existência.
 

ASSIS: Fale um pouco da sua formação.

JOÃO: Completei o curso de Ciências Econômicas na PUC em 1965, com 23 anos. Trabalhava na Philips do Brasil e ao mesmo tempo cursava o 5º ano de Direito na USP, visando exercer uma atividade conciliando os dois setores, Economia e Direito. Mas, em março de 1968, com 26 anos, sofri um acidente na Via Dutra, indo para o Rio de Janeiro. Eu cochilei na direção, meu Fusca derrapou dando várias voltas. Em consequência, deu-se uma lesão medular na altura da 6ª vértebra cervical e eu fiquei paraplégico. Tive de interromper meu trabalho e meus estudos. A vida dava uma guinada de 180 graus...

domingo, 25 de junho de 2023

LICENCIOSIDADES NA CULTURA POPULAR (28)

No final, bem no final dos anos 70, o estudioso da cultura popular Mário Souto Maior escreveu um livro a que intitulou Dicionário do Palavrão e Termos Afins. Prefaciado pelo sociólogo Gilberto Freyre, foi bloqueado à praça pelos milicos. Abençoado pelos ares democráticos, a obra de Souto Maior foi finalmente liberada. Hoje clássica, é referência.

Freyre saúda com entusiasmo o Dicionário do Palavrão. Aqui e ali diz, porém, que faltou algo. Normal. Lamenta que:
"Mário Souto Maior não tenha se valido de maior número de clássicos. Clássicos literários e clássicos da crônica histórica. Matéria que poderia ter colhido não só em Bocage e Guerra Junqueiro, como em Gil Vicente, em Gregório de Matos e em documento valioso do século XVI: as catolicíssimas Denunciações do Santo Ofício. Nestas, o autor deste prefácio, ao elaborar, no começo da década de 30, seu Casa-Grande & Senzala, deparou-se com expressões grosseiras e surpreendentemente obscenas da parte de colonos com aparências de virtuosos. Expressões que registrou no mesmo livro, como 'jurar pelos pentelhos da Virgem' e 'ardor de rabo' ".
Freyre encerra o prefácio que fez para o Dicionário do Palavrão, dizendo:
“O autor do Dicionário evita a pornografria pela pornografia, embora não pretenda entrangular o que é erótico na língua portuguesa do Brasil: o comunicativamente erótico ou o apenas descritivamente erótico. Seria um moralista caturra se se apresentasse, no seu Dicionário, como um antierótico, a exibir repugnância pelo que é vivo e corrente na linguagem mais secreta que aberta, porém de modo algum inexpressiva da sua e nossa gente. Fixa predominâncias regionais. Acentua usos generalizados no país inteiro ou quase inteiro. Revela-se conhecedor tanto de escritores literários — embora algumas deficiências possam ser apontadas nesse setor — como do próprio linguajar plebeu do Brasil. É, assim, um trabalho, este, que faltava aos estudos sociais, folclóricos, semânticos, desde a década de 20 tão em desenvolvimento no Brasil; e tão característicos do afã do brasileiro do conhecer-se cada dia mais a si mesmo e de, cada vez mais, interpretar-se por seus próprios intérpretes.”
Foto e reproduções por Flor Maria e Anna da Hora

sábado, 24 de junho de 2023

LICENCIOSIDADES NA CULTURA POPULAR (27)

Muito antes de Caju e Castanha, foi proclamado pela crítica um rei da embolada: Manezinho Araújo.
Manezinho Araújo foi quem criou o duplo sentido na embolada. Ele, como personagem, aparece como um traído depois de apanhar de quem lhe levou a mulher. Título: Tadinho do Manezinho.
Também consideradas de duplo sentido são as emboladas do Manezinho intituladas A Mulher e o Automóvel e Cuma é o Nome Dele?
Lá no passado cantores como Chico Alves, Patrício Teixeira, Jorge Veiga e Colé também puseram as unhinhas de fora ao cantarem safadezas.
O pioneiro na temática foi o cantor Manuel Pedro dos Santos, o Bahiano, que em 1902 gravou o lundu Isto é Bom, do ator Xisto Bahia. Saiu no lado A do primeiro disco gravado do Brasil. Começa assim: “A renda de tua saia/ Vale bem cinco mil réis/ Arrasta mulata, a saia/ Que eu te dou cinco e são dez/ Isto é bom, isto é bom, isto é bom que dói…”.
Tão elegante como Chico Buarque e Ney Matogrosso é o repentista pernambucano Oliveira de Panelas. Uma reserva do mundo da Cantoria, com andanças por Portugal, França, Cuba e EUA...
Panelas, de batismo Oliveira Francisco de Melo, é um artista altamente criativo e dono de voz poderosa. Nascido no dia 24 de maio de 1946, Oliveira tem publicados 19 livros, gravados 11 LPs e uma trintena de CDs. Tem músicas gravadas por nomes como Zé Ramalho, Teca Calazans, Flávia Wenceslau e Socorro Lira.
Fora isso, Oliveira de Panelas tem presença em vários filmes, entre os quais Chatô o Rei do Brasil, que trata da história do paraibano de Umbuzeiro Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, chamado de o magnata da Imprensa brasileira.
O brincante Ariano Suassuna tinha por Oliveira verdadeira veneração, tanto que o convidou para se apresentarem nas cantorias que fazia Brasil afora.
Caneta é arma na mão de quem sabe escrever.
Entendo também que palavras são que nem fio de navalha. Quando não mata, machuca.
A nossa língua, a que falamos, é formada por cerca de 600 vocábulos ou expressões. Desse total, há cerca de quatro ou cinco mil palavrões. Talvez um pouco mais. Homens, segundo pesquisa da Preply realizada em março de 2023, falam pelo menos 8,48 palavrões por dia, enquanto mulheres falam 5,35 vezes. Ainda segundo a pesquisa, Brasília lidera como o Estado que mais fala palavrões, empatado com Rio de Janeiro e Fortaleza: cerca de 8 palavrões por dia.

sexta-feira, 23 de junho de 2023

ESTÃO DESCARACTERIZANDO O SÃO JOÃO

Hoje 23 de junho é o dia de São José Cafasso, padre italiano nascido no começo do século 19. Era chegado a dar conselhos. Todo mundo gostava dele, mas não é dele que quero falar agora. Quero falar de São João.
São João Batista, filho de Zacarias e Isabel, nasceu em Israel num 24 de junho. Virou profeta e como tal anunciou a chegada do Messias, quer dizer: Jesus, seu primo, por ele batizado nas águas do Rio Jordão. Esse santo é o centro dos festejos juninos.
Os festejos juninos herdamos de Portugal, mas custou a pegar e virar uma coisa religiosa bem popular. Só ali pela década de 30 do século 20 é que esses festejos se firmaram entre nós. Porém não custa lembrar que já no século anterior esses festejos já engatinhavam nos salões do Império com a dança da quadrilha. Coisa chique, nobre, da elite. A música era valsa ou polca. O povo vendo aquilo, passou a imitar sem pompas. E aí vieram as fogueiras, milho assado, canjica, pamonha, doces, pipoca, pé de moleque; bandeirinhas, pau de sebo...
O baiano Assis Valente foi quem inventou a marcha junina, gênero inicialmente gravado com algum sucesso por Chico Alves e Aurora Miranda, irmã da portuguesinha Carmen.
Essa história eu já contei neste Blog, em livros, rádio... Ouça: RAÍZES DO BRASIL
É importante que se diga, e se rediga, que coube ao pernambucano Luiz Gonzaga disseminar a marcha e outros ritmos do período junino. O forró, por exemplo.
Uma vez Gonzaga me disse: "Todo mundo me chama Rei do Baião, mas eu sou o rei do forró e da marcha junina; do xote, xaxado...".
Foi Luiz Gonzaga que deu as principais características juninas no campo musical, claro. Mas as festas juninas são mais do que música. É nesse período, quer dizer em todo o mês de junho, que esse tipo de festa é comemorado com muita alegria, especialmente no Nordeste. No entanto, um detalhe: está havendo uma rápida descaracterização nesses festejos. Ouça o que diz a paraibana Elba Ramalho: https://youtu.be/wZn7CD6DYLE
Realmente não parece ser de bom alvitre não ter em uma festa de São João artistas do naipe de Biliu de Campina e Alcymar Monteiro. Concordo com Elba. E concordo também quando ela diz que "No céu cabem todas as estrelas".
Pessoalmente, não sou chegado a rock e nem a música sertanoja. Também não gosto dessas coisas chamadas de pisadinha, funk, mas respeito quem faz e quem goste.
O escritor Onaldo Queiroga também é da linha do bom gosto. Defende a tradição junina. Ele: "A importância desses festejos está na manutenção da tradição, se fugir desse formato passará a ser um festival, pode até alcançar públicos enormes, mas não será São João".
O forrozeiro Flávio José, que conheço de perto e sei do seu talento, foi contratado para cantar uma hora e meia no São João de Campina Grande. Perfeito. Mas antes de abrir o fole, alguém se aproximou dele e disse: "Você só vai tocar uma hora e dez minutos". Ouça Flávio:



LEIA MAIS: A MELHOR FESTA DE SÃO JOÃO É AINDA NO BRASILVIVA SÃO JOÃO!LUIZ GONZAGA E SÃO JOÃO

FORRÓ NA LUA

Pra quem está fora de Campina Grande, apresento esta composição que Jorge Ribbas e eu criamos. Confira: https://youtu.be/kHNTKvQuphU

LULA ARRASA NA FRANÇA

Num tempo não muito distante, dizia-se que fulano "está botando pra quebrar!". Isso quando alguém estava a fazer algo positivo, com firmeza. 

Num tempo mais distante, dizia-se que fulano "está mandando brasa!". Isso tal tal e tal.

Por estes tempos atuais diz-se que fulano "arrasou!" ou "está arrasando!".

Pois é, com as bênçãos do papa Francisco,  Lula deixou o Vaticano e desembarcou hoje 23 num Palácio em Paris para participar de um encontro reunindo pelo menos uma centena de chefes de Estado. A ideia desse encontro,  promovido pelo presidente francês Emmanuel Macron, é fechar um pacto financeiro global que tem por base a preservação do meio ambiente e coisa e tal. De repente totalmente de improviso, Lula sacou da cachola um discurso dizendo que é preciso acabar com as desigualdades no mundo.

A fala do presidente brasileiro provocou espanto geral. Disse ainda que não basta preservar o meio ambiente e todo mundo respirar bem, pois ainda assim o povo continuará morrendo de fome.

Ao espanto multiplicaram-se os aplausos.

No seu discurso improvisado Lula disse que não adianta apenas cuidar do clima se não se cuida das necessidades humanas, ressaltando a necessidade de se acabar com a miséria. Disse, com a firmeza de quem conhece as coisas que "os políticos só lembram do povo nas eleições".

E muito mais disse Lula.

Com certeza o presidente brasileiro fez um discurso histórico. 

quinta-feira, 22 de junho de 2023

TUDO PELO BEM DO MUNDO!

O Lula está apresentando, ou reapresentando o Brasil ao mundo. Há quem o critique por isso, mas quem o critica por isso precisa rever a crítica.
O governo anterior deixou o Brasil bambo, de pernas quebradas, o corpo torto.
Ontem 21 o papa Francisco recebeu, mais uma vez, o presidente Lula. Com ele, a mulher Janja. Foi um encontro demorado e rico de ideias.
É preciso que todos os governantes pensem na paz e no povo, caso contrário o mundo pode explodir.
Durante o encontro, Lula presenteou o papa com uma obra do pernambucano de Bezerros J. Borges. Título: A Sagrada Família.
 Janja, por sua vez, presenteou o pontífice com uma imagem de Nossa Senhora de Nazaré, a padroeira da Amazônia. 
No papo com o Papa rolaram temas de importância fundamental, como a preservação do meio ambiente e a Amazônia. 
Claro que nós, brasileiros, ficamos orgulhosos com isso.
J. Borges, de batismo José Francisco Borges, é nome muito conhecido pelo trabalho que faz no campo da cultura popular. Nasceu em 1935. Suas gravuras exibidas mundo afora enriquecem também obras de autores brasileiros e estrangeiros, entre os quais Eduardo Galeano (1940-2015).
A cultura popular representa com clareza e beleza o Brasil dos brasileiros.
O papa Francisco presenteou Lula com um quadro em bronze, feito no Vaticano. Nesse quadro lê-se: "A paz é uma flor frágil".
Sobre cultura popular, ouça o que um dia  mestre Câmara Cascudo me disse:



LEIA MAIS: O VELHO QUE SABE TUDO

quarta-feira, 21 de junho de 2023

CAIM PEGA PESADO COM DEUS

Lilith era linda e fogosa, incansável na cama. Casada, o marido Noah não tinha condições de lhe dar um filho que tanto queria. Do seu jeito, fechou os olhos e deixou ela se virar. Até aí, tudo bem. Ocorre que certo dia Lilith chama ao seu palácio um rapagão amassador de barro, forte e bonito, chamado Caim. E aí, lascou!
Esse é um trecho do livro Caim, na versão fabulosa e crítica/cínica do autor português José Saramago.
Saramago era comunista e como todo comunista que se preza, ateu.
O livro começa assim: "Quando o Senhor, também conhecido como Deus...".
Nas primeiras páginas do livro é apresentada a criação do mundo incluindo os moradores do Éden: Adão e Eva.
Ao criar o mundo Deus deu voz a todos os seres, esquecendo-se, porém, do famoso casal. Ao se tocar, o Criador foi ao Paraíso para corrigir o erro empurrando goela abaixo dos dois a língua que lhes faltava. Por comer o fruto proibido da árvore do bem e do mal, foram expulsos.
A partir daí acontece o inesperado: dois dos filhos de Adão e Eva, Caim e Abel, se desentenderam e Caim findou por dar cabo a Abel.
Depois de matar Abel, Caim trava discussão pessoal com Deus. E aí começa a graça reflexiva que o livro de Saramago nos oferece.
Caim transforma-se num crítico ferrenho de Deus, enfrentando-o cara a cara, peito a peito, acusando-o até de não poupar a vida dos inocentes, como ocorreu durante a destruição de Sodoma e Gomorra.
As discussões tête-a-tête entre Deus e Caim são impagáveis. Só por isso já valeria a pena ler o livro. Mas tem mais: os momentos de sexo intensos de Caim e Lilith. Antes Caim dá prazer a duas escravas do palácio. Como se não bastasse, o esposo de Lilith, enciumado, contrata marginais para matar Caim. Não consegue e Caim finda por dar o filho que tanto queria Lilith.
E tem as cenas interessantíssimas da grande canoa, barca, arca, ou sei lá, comandada por Noé. As mulheres que embarcaram na barca ou arca são graciosamente entregues ao prazer de Caim. O argumento era repovoar o mundo após o dilúvio promovido por Deus.
Noé, ao fim, suicida-se.
Hilariante!
E mais não digo.

terça-feira, 20 de junho de 2023

NINGUÉM QUER O CASTELO DE JOSÉ RICO

Na terça 3 de março de 2015 o Brasil tomou conhecimento da morte repentina do cantor e compositor pernambucano de São José do Belmonte José Rico, que durante anos formou dupla com o mineiro de Monte Santos de Minas, Romeu Januário de Matos, mais conhecido por Milionário.
A dupla Milionário e José Rico gravou muitos discos e ficou conhecida até fora do Brasil. Entre os sucessos da dupla, que se apresentou até na China, estão Estrada da Vida, Jogo do Amor e Boate Azul.
Conheci de perto os dois, Milionário e Rico.
Fui chamado pra fazer algumas caixas especiais de artistas de sucesso, como Milionário e José Rico. Outros projetos, porém, atropelaram a ideia da coletânea com os dois. Motivo foi um projeto reunindo obras de representantes autênticos da moda caipira como Cornélio Pires, Raul Torres/Florêncio, Boldrin e tantos mais. Esse projeto, intitulado Som da Terra, resultou em 26 discos nos formatos de fita K7, LP e CD.
Rico e Milionário cantavam e brigavam, com toda a naturalidade do mundo. Milionário, mais discreto. Rico, ele me disse um dia, encerraria a carreira feliz se conseguisse, e conseguiria, terminar a construção de um castelo em Limeira, SP. Não terminou e, detalhe: levado a leilão, não houve interessados no lance mínimo que foi de R$ 1,6 milhão.
Quando ocorreu o falecimento de José Rico a Folha me chamou para escrever algo a respeito da carreira dele e do parceiro Milionário. Clique na imagem acima.
José Rico nasceu no dia 20 de junho de 1946.

ARACY DE ALMEIDA


O dia 20 de junho, hoje, marca o falecimento da cantora Aracy de Almeida, que conheceu em 1934 o sambista Noel Rosa e dele tornou-se sua maior intérprete e amiga. Aracy começou a carreira artística gravando na extinta Columbia com acompanhamento de Pixinguinha e sua Orquestra. Aracy, boêmia, deixou a casa dos pais quando tinha 20 anos de idade. Nasceu em 1914. Na voz dela ouça Palpite Infeliz, de Noel:

segunda-feira, 19 de junho de 2023

CHICO BUARQUE 79 ANOS

Foi num dia como hoje, segunda-feira, que nasceu o carioca Francisco Buarque de Hollanda. O ano era 44 e o mês, junho. Dezenove de junho.
O tempo passou, pois não para de passar, esse Francisco virou Chico Buarque. Compositor, cantor, uma fera da arte musical no campo popular.
Chico é uma sumidade na profissão que abraçou.
Como cidadão, Chico é completo. Sempre soube o que quis, para si e para o Brasil. Sua obra enriquece a nossa música popular. Tem centenas de títulos registrados em compactos simples e duplos, LPs, CDs e DVDs.
Incomodou os milicos que tomaram as rédeas do destino do Brasil durante 21 anos, a partir de 1964.
Fora isso, Chico Buarque é também nome de destaque no campo da literatura. Tem vários romances e peças de teatro, como Gota D'água, Roda-Viva e Calabar.
Seu pai, Sérgio Buarque, deixou marcas na área da História e Sociologia. Um dos seus livros clássicos tem por título Raízes do Brasil, cuja primeira edição data de 1936.
A primeira composição musical de Chico Buarque foi intitulada Canção dos Olhos. Tinha 15 anos de idade. O sonho de Chico, digamos assim, era compor tão bem como o seu chamado "maestro soberano", Tom Jobim.
A primeira composição musical de Chico foi gravada pela cantora Maricenne Costa, em 1964. Título: Marcha para um dia de Sol.
Discos e livros de Chico Buarque têm sido publicados em vários países e nas línguas mais diversas: francês, inglês, alemão, japonês, italiano, espanhol, grego... 
Em junho de 1983, há 40 anos pois, fiz entrevista com Chico. Foi na Capital paulista e a entrevista publicada em julho daquele ano na Revista Homem. Confira: "NÃO GOSTO DE SER FILHO DE TODO MUNDO, MAS SE AS PESSOAS QUEREM ME ADOTAR, ACHO UM SINAL DE JUVENTUDE SAUDÁVEL"

HISTÓRIAS DE ESQUINA

O cartunista Fausto e eu acabamos de dar ponto final ao livro Histórias de Esquina. Já está no prelo e até o começo do próximo mês, nas nossas mãos. O prefácio traz a assinatura do maestro paulistano Júlio Medaglia. Uma amostra desse livro está aí embaixo. 

SARAMAGO NÃO MORREU

A morte não tem idade, mas tem vida. 
Num dia qualquer de fim de ano ocorre num país imaginário a continuidade da vida sem prazo para parar, por iniciativa da morte. 
Pois é, derrepentemente as pessoas param de morrer. Criança continua crescendo e os crescidos, homens feitos, continuam suas trajetórias rumo à imortalidade. Velhos continuam velhos, cada vez mais velhos; e doentes, doentes com a possibilidade de não morrer.
O livro As Intermitências da Morte, de José Saramago (1922-2010), começa com a morte tirando férias e as pessoas, homens e mulheres, vivendo a possibilidade de nunca morrerem.
É pra lascar, né não?
Não é de hoje que, na realidade, muita gente sonha com a imortalidade em vida. O tema se acha na literatura de todo canto.
Desse assunto trata um dos livros do checo Milan Kundera, A Imortalidade. E por aí vai.
O Nobel português Saramago abordou o tema com leveza e certa graça. Já nas primeiras páginas do livro, a população do país imaginado pelo autor não morre nem a pau, nem a tiros. Todos lá estão condenados a viver eternamente.
O afastamento da morte em vida preocupa, porém, autoridades de todos os setores do cotidiano. A começar pelo Clero, representado por um cardeal que procura o Primeiro Ministro do imaginado país para expor suas preocupações óbvias: sem morte não há ressurreição e sem ressurreição não há igreja.
E assim segue o enredo do livro que tem, lá pras tantas, um violoncelista como personagem de grande destaque. Esse personagem não tem nome, mas fica-se sabendo que tem 50 anos de idade. A Morte se apaixona por ele e ele, por ela. Terminam na cama. 
Depois do rola-rola, nenhum dos dois morreu.
Saramago não dá nome a nenhum de seus personagens, mas o narrador de As Intermitências da Morte cita Bach uma dezena de vezes, Chopin três ou quatro, Beethoven duas ou três, e o escritor francês Marcel Proust, autor do livro Em Busca do Tempo Perdido (1917)
Curiosidade: Saramago, que era ateu, cita na sua obra Deus em 16 ocasiões.
Quem conhece a obra de José Saramago pode até dizer, como eu, que a morte não o matou.
Ah! Sim: a leitura do livro As Intermitências da Morte dura sete horas e alguns minutos, ininterruptamente. 

domingo, 18 de junho de 2023

LICENCIOSIDADES NA CULTURA POPULAR (26)

Assis Ângelo e Paulo Vanzolini
A pernambucana Marinês, nomeada Rainha do Xaxado por Luiz Gonzaga, transformou em clássico o forró Peba na Pimenta, de Adelino Rivera, João do Vale e José Batista. Também transformou em sucesso Só Gosto de Tudo Grande, de Adélio da Silva e Adolpho de Carvalho. Diz: "Eu sou pequenininha/ Mas gosto de tudo grande/ Só gosto de tudo grande…/ Na minha terra botei gente pra correr/ Meio quilo de moleque/ Só gosto de tudo grande…".
A mineira Maria Alcina fez estrondoso sucesso com Bacurinha, depois de regravar Prenda o Tadeu.
Até a rainha do baião, Carmélia Alves, cantou a seu modo verso de duplo sentido. A música foi Trepa no Coqueiro, de Ari Kerner. Um trecho: “Oi! Trepa no coqueiro!/ Tira coco!/ Jipe, jipe! Nheco, nheco!/ No coqueiro olirá/ Papai, cadê Maria?/ Maria foi passiá/ Os passeios de Maria/ Faz papai e mamãe chorar”.
A rainha do forró, Anastácia, pegou o bonde dessa história e mandou ver no forró O Sucesso da Zefinha, em que diz: “A Zefa é moça bonita/ Bem apetitosa e ajeitadinha/ Usando a calça bem justa/ Cintura apertada fica bonitinha/ Os homens ficam quase doidos/ Querendo dançar só com a Zefinha/ E ela por si não dá conta/ Trocando de par a noite inteirinha”.
Quem também fez grande sucesso cantando bobagens foi a atriz Dercy Gonçalves. Uma das músicas que lhe renderam sucesso foi A Perereca da Vizinha, dela mesma e de Jonatan. Começa assim: "A perereca da vizinha tá presa na gaiola!/ Xô, perereca! Xô, perereca!/ A vizinha é boa praça/ A vizinha é camarada/ Vai soltar a perereca/ Pra alegrar a garotada!!!".
No mundo da cantoria ao som de viola e pandeiro há interessantes e curiosos registros em modalidades diversas, como embolada.
As irmãs Terezinha e Lindalva fizeram muitos marmanjos rirem com Baiana Sulá, gravada no lado A do LP Olha o Palavrão, de 1992. Elas usam palavras de baixíssimo calão para se "agredirem". Embora engraçados, os versos são pesados.
Terezinha e Lindalva gravaram vários discos e até participaram de um filme intitulado Saudade do Futuro, baseado no livro Eu vou contar pra vocês, que publiquei em 1990. Desse filme, inédito no Brasil, também participaram os emboladores Peneira e Sonhador.
Mais leves do que Terezinha e a irmã são Caju e Castanha. Falam de corno. Adoram esse tema. O Corno Conformado é uma graça. Ouça:



Foto e reproduções por Flor Maria e Anna da Hora

sábado, 17 de junho de 2023

LICENCIOSIDADES NA CULTURA POPULAR (25)

Menos violento do que se ouve em Maria Chiquinha é o Vampiro Doidão de Tukley Ganzert, que muita gente pensa ser Raul Seixas. Começa assim: "Puta que pariu!/ O meu gato pôs um ovo/ Mas gato não põe ovo/ Puta que pariu de novo!...".
De Raul é o engraçado Rock das Aranhas, em que narra a relação sexual entre duas mulheres. Fez grande sucesso, virando clássico do gênero: https://www.youtube.com/watch?v=rRj-9xhlXuQ
O trem dessa história segue por aí, aos solavancos.
Em 1929, a cantora e atriz do teatro de revista Aracy Cortes encheu de tesão os marmanjos que a viam no palco. Deu muito o que falar com as pernas nuas e os trejeitos sensuais. Um ano antes ela gravou o samba Jura, de Sinhô, que lá pras tantas diz: “... Daí então dar-te eu irei/ O beijo puro na catedral do amor/ Dos sonhos meus/ Bem junto aos teus/ Para fugirmos das aflições da dor”.
Aracy Cortes
Aracy foi quem lançou o gênero samba-canção, criado por Luiz Peixoto, Marques Porto e Henrique Vogeler. Título: Ai Ioiô (Linda Flor), gravada em disco Parlophon, em 1929.
Em 1935, a cantora Carmen Miranda botou pra quebrar com o samba Eu Dei..., de Ary Barroso. Gracioso, fez sucesso.
Em 1936 Noel Rosa compôs o samba Dama do Cabaré que Marília Batista gravaria em 1954. O personagem descarta uma namorada pela tal dama, com quem sai. Apaixona-se e passa a vida a procurá-la nos bailes da vida. É o contrário do que se sucede com a personagem do samba-canção Ronda, que o paulistano Paulo Vanzolini comporia. Essa música foi lançada em 1953, por Inezita Barroso.
Mais recentemente muitas cantoras se divertiram cantando coisas maliciosas.

POR QUE HOJE É SÁBADO?

Todo e qualquer tema se acha no repertório popular da nossa música desde 1902, quando o bom Bahiano, Manuel Pedro dos Santos, gravou o lundu Isto é Bom. É uma graça. O tempo passou e ele, Bahiano, também gravou uma cantiga do Norte, quer dizer: do Nordeste, intitulada O Meu Boi Morreu.
Eu disse e repito: todo e qualquer tema se acha na nossa música popular desde o nascimento, vida e morte de quem quer que seja.
A morte está presentíssima no repertório popular da nossa música. 
Todos os grandes compositores geraram músicas com base nessa temática.
Acho um barato Quando o Samba Acabou, de Noel Rosa, interpretado por artistas do naipe de Marília Batista. Ela gravou esse samba no ano em que eu nasci: 1952.
O ilustrado poeta Vinícius de Moraes falou de tudos nos seus versos, até  de suicídio. 
No poema O Dia da Criação, Vinícius diz que no sábado tudo pode ser feito. Ouça:

sexta-feira, 16 de junho de 2023

A MORTE TEM NOME: VIDA (6, FINAL)

A População de humanos deste nosso planetinha já passa de 8 bilhões.
Diariamente nascem cerca de 200 mil pessoas e morrem a metade disso. Quer dizer, continuamos a nos multiplicar como disse Deus, na Bíblia.
E se não morrêssemos o que seria da morte, hein?
Desde tempos imemoriais rola na boca do povo, e em todas as línguas, histórias que põe a Morte como imorrível e sábia. Dela ninguém escapa, é claro.
Nas histórias contadas pelo povo sempre aparecem malandros querendo passar a perna na morte. E perdem, claro.
O escritor paulistano Ricardo Azevedo reuniu num livro quatro histórias originárias de Portugal. São ótimas. Começa com o personagem procurando padrinho para o seu sétimo filho. É pobre, afunhenhado. Numa estrada dá de cara com alguém que se identifica como Morte. Vira a madrinha do filho.
A segunda história adaptada por Azevedo e inserida no seu livro Contos de Enganar a Morte trata de dois jovens, um deles ganancioso e o outro tranquilo, pacato, trabalhador, de profissão ferreiro. E não vou contar mais a respeito.
Mas foi em histórias desse tipo que o escritor português José Saramago inspirou-se para nos presentear com o livro As Intermitências da Morte, publicado originalmente em 2005.
No livro, o fabulista Saramago cria um país onde, de repentemente, ninguém morre. E de repentemente as pessoas se multiplicam, se multiplicam, se multiplicam. Caos. As funerárias vão à falência, os hospitais ficam atulhados de pacientes que envelhecem e não morrem. Preocupado com a situação, o cardeal liga para o primeiro ministro dizendo que sem morte não há ressurreição e sem ressurreição não há igreja.
A morte se acha em todas as narrativas, em todas as histórias desde sempre. Desde que mundo é mundo.
Há histórias sobre a Megera, como também é chamada a Morte, no folclore de todos os países.
Lá pras bandas da Europa há história do Cavaleiro Sem-Cabeça. As versões da história desse Cavaleiro variam. Contam que o tal foi decapitado pelo próprio pai. Há filmes a respeito.
No Brasil, que é rico de histórias de Trancoso e tal, tem a Mula Sem-Cabeça. Teria surgido no Nordeste. Fala-se de uma mulher que fora amaldiçoada por Deus, ou sei lá por quem, pelo fato de envolver-se sexualmente com um padre.
Tem também a história de um certo Corpo Seco. No caso um cara mão de vaca e mau. Xingava todo mundo, batia em todo mundo. Canalha. Ao morrer a terra recusou-se a comê-lo. Não foi parar no Inferno e tampouco no Céu.

Há casos reflexivos no vasto manto do folclore nacional. O Negrinho do Pastoreio é um desses casos. Cenário é uma fazenda no Sul. O Negrinho do título deixa escapar um animal e por isso é punido pelo patrão, um fazendeiro maldito. Ele apanha e tem o corpo ferido num formigueiro onde fora posto. Ressuscita montado num bonito cavalo e, como herói da história, liberta as pessoas escravizadas pelo fazendeiro.
E o Saci-Pererê, hein? O Saci, nosso Saci, aparece pela primeira vez em histórias escritas num livro do paulista Monteiro Lobato.
Foi também Monteiro Lobato que deu voz em livro à Mula Sem-Cabeça.
Vale sempre a pena ler e reler as histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo.
Um dos mais queridos personagens folclóricos é João Grilo. Grilo é cheio de onda, esperto. Tira proveito de quem esbanja fortuna e tal. Esse conseguiu vencer a morte. Nessa façanha, teve a mão santa de Nossa Senhora. Provoca boas gargalhadas. Foi morto por um cangaceiro, mas retornou ao convívio entre os vivos. Rouba cenas da peça O Auto da Compadecida, que virou filme.
A população mundial continua se multiplicando. O número de pessoas que nascem é o dobro das pessoas que morrem.
No auge da pandemia o Brasil registrou a média de 7 mil morte/dia.
Nascem mais homens do que mulheres, os dados são do Country Meters.
No Brasil nascem cerca de 7.700 crianças diariamente, segundo o IBGE.
Mas e se não morrêssemos, o que seria da morte?

quinta-feira, 15 de junho de 2023

A MORTE TEM NOME: VIDA (5)

A boa economia, equilibrada, faz qualquer país ser respeitado por todos.
País que anda mal é aquele que tem a economia mal administrada. E assim sendo, corroída pela praga da inflação.
Poetas populares do cordel, como Leandro Gomes de Barros, apresentaram na sua arte os malefícios da inflação. Inflação, leia-se: horror, morte, principalmente pra quem é pobre.
História.
A indústria fonográfica no Brasil começou a dar seus primeiros passos no ano de 1902. A primeira música, um lundu, tinha duplo sentido sacana e a presença da sombra maldita da morte. O autor, o ator Xisto Bahia, escreve para o cantor moleque Bahiano, o primeiro profissional do ramo, cantar os seguintes versos em quadra: "Isto é bom, isto é bom, isto é bom que dói.../ 'Vá saindo seu coió sem sorte!'/ Iáiá você quer morrer/ Se morrer, morramos juntos/ Eu quero ver como cabe/ Numa cova dois defuntos...".
A rigor, a música popular brasileira é triste, tem até violência e tal.
A tristeza da morte na nossa música começa pra valer a partir do gênero samba-canção. Intérpretes desses gênero, mulheres principalmente, marcaram época: Dolores Duran, Maysa, Waleska... Muitas.
Uma vez, não lembro exatamente quando, o compositor, cantor e instrumentista Tom Jobim falou a respeito do que acabo de falar: que a nossa música é, à rigor, triste. Mas aí surgiu, em 1958, a Bossa Nova.
Chico Alves
Tom disse que até tiros poder-se-iam ouvir em discos.
Tom estava certo.
Meses antes de morrer em Nova Iorque, em 1994, falei com ele por telefone dizendo que queria um encontro pessoal. O tema eram dois: Tom e a Bossa Nova.
À época, eu estava pronto para escrever um livro sobre a música brasileira gravada no Exterior.
O primeiro grande compositor brasileiro a ter músicas gravadas em outras línguas foi o mineiro Ary Barroso. Tom disse: "Estou viajando semana que vem aos EUA. Vou ficar pouco tempo por lá, quando voltar a gente conversa".
O livro ia se chamar ou vai se chamar se houver tempo, O Brasil dá o Tom.
O material para esse livro se acha no meu acervo.
E Tom tinha razão quando falou que a nossa música popular tem contornos tristíssimos.
O samba-canção representa a maior tristeza da nossa música.
A Bossa Nova é exatamente o contrário do que se canta no samba-canção.
O meu amigo José Ramos Tinhorão, sempre uma referência na história da nossa música, não gostava da Bossa Nova. Dizia que era coisa de gringo norte-americano.
Não discuto questões pessoais, quando trato de história. Aqui, devo dizer, que não só aprendi como tenho a maior admiração pelo Zé. Nossas discussões foram louváveis. 
Voltando: a música popular é de uma tristeza imensa.
A morte está sempre presente na nossa música popular.
Em 1934, o carioca Francisco Alves gravou Vivo Deste Amor, de Alcebíades Barcelos e Armando Marçal; e Quero Morrer Cantando, de Walfrido Silva, que lá pras tantas diz: "Quero morrer cantando um samba/ No meio de uma roda bamba/ Quero zombar da própria morte/ Cercado das pequenas/ Que me deram inspiração e sorte...".
De certo modo, a morte aqui apresentada por Chico Alves é interessante sim, por que não? Um tanto suave.
A Bossa Nova também falou de morte, de dor e solidão. É bom que se diga, é bom que se lembre.
No Soneto da Fidelidade diz o autor Vinícius de Moraes: "... E assim, quando mais tarde me procure/ Quem sabe a morte, angústia de quem vive/ Quem sabe a solidão, fim de quem ama...".
Houve muito disse-me-disse na ocasião da morte de Vinícius. Até que ele tinha optado, pessoalmente, por entregar-se nos braços da morte enquanto tomava seu whiskinho rotineiro deitado na banheira do seu banheiro do apartamento em que vivia.
Conversando hoje 15 com o escritor João Carlos Pecci, irmão de Toquinho e autor do livro Vinícius Sem Ponto Final, ouvi dele a declaração final: 
"Vinícius não matou-se. Vinícius estava se recuperando de um AVC e como consequência aconteceu o que todos nós não queríamos. Meu irmão, que estava hospedado no seu apartamento, no Rio, tentou ainda reanimá-lo, mas quando o médico chegou já não havia mais tempo. A primeira pessoa que notou alguma coisa estranha em Vinícius foi Rosinha, a cuidadora da casa. O resto é história".
Em 1919, Chico Alves gravou Pé de Anjo, de Sinhô. É uma marcha. As marchinhas estavam começando a serem compostas. A primeira foi da Chiquinha Gonzaga... Enfim: "... A mulher e a galinha/ São dois bichos interesseiros/ A galinha pelo milho/E a mulher pelo dinheiro".
Entre samba e Bossa Nova há ainda a canção Praieira inventada pelo baiano Dorival Caymmi. Ele: "É doce morrer no mar/ Nas ondas verdes do mar/ A noite que ele não veio foi/ Foi de tristeza pra mim/ Saveiro voltou sozinho/ Triste noite foi pra mim".
A morte não vive à toa.
Geralmente, quase sempre, a depressão antecede a morte pelo suicídio. Eu não tenho nada a ver com isso, mas como sempre não tenho o que fazer, fiz:
 

quarta-feira, 14 de junho de 2023

A MORTE TEM NOME: VIDA (4)

Torquato Neto foi um dos mais importantes compositores do Brasil, nascido em Teresina, PI. 
A vida vivida por Torquato foi uma vida triste, sorumbática. Sofreu na alma o que o corpo não sofreu: a crítica exagerada contra si e sua obra, enquanto vivo.
Em 1968, Torquato compôs com Edú Lobo Pra Dizer Adeus. A letra e a melodia são uma flechada envenenada nos corações românticos. A denominada rainha da fossa, Waleska (1941-2016), gravou essa canção que lá pra frente, diz: "Adeus/ Vou pra não voltar/ E onde quer que eu vá/ Sei que vou sozinho/ Tão sozinho amor/ Nem é bom pensar/ Que eu não volto mais/ Desse meu caminho...".
Nessa mesma linha, profundamente denunciante do estado espiritual vivido, a cantora Maysa (1936-1977) cantou com a voz cheia de lágrimas Bom Dia Tristeza, do carioca Vinícius e do paulista Adoniran. Um pedaço da letra morrente, este: "Bom dia tristeza/ Que tarde tristeza/ Você veio hoje me ver/ Já estava ficando/ Até meio triste/ De estar tanto tempo/ Longe de você...".
Antes dos tempos acima citados, em 1956 a carioca Dóris Monteiro gravou coisas tocantes aos corações dos apaixonados, suicidas ou quase suicidas.
A canção Melancolia, de Fernando César, traz a tristeza no seu estágio maior: o anúncio do suicídio. Um trecho: "Melancolia/ Tristeza e pena não sei de quem/ Melancolia/ Saudade amarga talvez de alguém/ Melancolia/ Que chega um dia para ficar/ Fica morando e torturando até matar...".
Melancolia faz parte do disco de 10 polegadas, Confidências de Dóris Monteiro, produzido pelo compositor mestre Braguinha (capa lado).
A morte está em tudo quanto é lugar. Até na imaginação dos doidos, e desde sempre. Desde que vida é vida. E falar de morte tem ou tinha de ser algo natural, como falar de sexo e medo.
A morte, repito está em todo lugar. E em todos os pensamentos.
Acho que foi o filósofo Camus que um dia perguntou, num texto que escreveu, não lembro qual: Quem nunca pensou em suicídio?
Eu mesmo, quando fiquei cego dos olhos, pensei ir pra casa do caralho. Moro no 7º andar de um prédio localizado no bairro de Campos Elíseos, em São Paulo. Fui ajeitando a cabeça e, por incrível que pareça, acho que ainda estou vivo. SIM, A VIDA É DE MORTE
O poeta mineiro Alphonsus de Guimaraens teve uma vida muito triste. Apaixonou-se por uma prima que morreu com 17 anos de idade. Casou-se e teve vários filhos e filhas. Duas se suicidaram como ele, em 1921. Tinha 51 anos.
Um dos poemas mais famosos de Guimarães é Ismália, que teve três versões. Duas dessas versões traziam como título do poema Ofélia. Somente em 1923, há 100 anos portanto,  é que se tornou conhecida a versão intitulada Ismália. É dolorosamente linda. Simbolista, o texto poético trata de um suicídio. 
Uma das gravações mais bonitas dessa obra foi feita pela cantora paulistana Inezita Barroso e mais recentemente pelo rapper Emicida que teve a companhia ilustre da atriz Fernanda Montenegro, declamando. Ouça: https://youtu.be/4pBp8hRmynI
O famoso poema de Alphonsus de Guimaraens ganhou versão especial para animação, desenvolvida pelo quadrinista Reinaldo Bruxxo. Confira: https://youtu.be/WKazkwgbA14
Em alguns textos musicais autores como Fernando Brant optam por devolver a vontade de viver a pessoas ou personagens inclinados ao suicídio. Caso desse tipo se acha, por exemplo, na canção Travessia, imortalizada pelo cantor Milton Nascimento. Lá pras tantas diz a letra: "... Eu não quero mais a morte/ Tenho muito o que viver/ Vou querer amar de novo...".
Mas nem tudo é morte o tempo todo na nossa música popular. Aqui e acolá, há até umas gracinhas como cantou o cearense Belchior: "Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro..." (Sujeito de Sorte). Isso foi em 1976, do LP Alucinação. 
Em 2019 Emicida, mais uma vez Emicida, fez uma revisita à canção do cearense Belchior. A gravação rebatizada à moda do rapper, Amarelo, contou com a presença da cantora Majur e Pabllo Vittar. Lá pras tantas, depois de dizer que "Belchior tinha razão!", manda ver: "... Rancor é igual tumor, envenena raiz/ Onde a plateia só deseja ser feliz/ Com uma presença aérea, onde a última tendência/ É depressão com aparência de férias...".
Atenção! Atenção!
Dados do Datasus mostram que nos últimos 20 anos o número de suicídios dobrou no Brasil. Foram de 6.780 a 14.840, de 2000 a 2021. Esses números são superiores aos de mortes provocadas por acidentes de moto e HIV. Na região Norte se suicidam mais homens com idade superior a 60 anos. No Nordeste, são mulheres que mais se matam a partir dessa idade.
E como sempre, por não ter o que fazer, fiz hoje o poemeto abaixo:

terça-feira, 13 de junho de 2023

A MORTE TEM NOME: VIDA (3)

Mesmo em textos não explícitos, a morte costuma aparecer sorrateiramente em canções que falam de solidão. 
A cantora e compositora Dolores Duran marcou época cantando a dor que certamente vem bem antes da morte. Em Solidão, por exemplo, ela diz quase chorando que "Ai, a solidão vai acabar comigo...".
Na Canção da Tristeza, feita em parceria com Edson Borges, Dolores canta com o coração na mão: "... E mais além, se eu te lembrar/ Terá de ser assim/ Com mágoa e dor/ Que eu viva para sempre/ A morte deste amor...".
Os vozeirões do passado cantaram a morte de várias maneiras.
Na canção Céu Moreno, de Uriel Lourival e gravada em 1935 por Orlando Silva, ouve-se: "... Senhor, deixai quando eu morrer/ Minh'alma em penitência/ Aqui mesmo sofrer/ Não quero a vossa santa luz...".
Mas, é claro, que há na nossa música popular textos fortíssimos referentes à morte. 
O roqueiro Lobão, de batismo João Luiz Woerdenbag Filho, cresceu num ambiente cheio de dores. O pai e a mãe mataram-se. Ele próprio tentou o suicídio mais de uma vez. A última em 1999, quando ficou sem gravadora. 
Num congresso de psiquiatria em Florianópolis, realizado em 2015, ele disse: 
"As pessoas precisam ter mais coragem para falar sobre isso. Precisam ter opiniões mais contundentes. O maior problema que se pode ter é perceber que se tem um problema que não está resolvido [...] Para mim, a arte é um processo de cura. Ela organiza a cabeça, expande o conhecimento. Lido com criatividade e preciso de equilíbrio e ausência de ansiedade. Ou você adquire isso ou não faz bem o seu trabalho"
No LP O Inferno é Fogo, de 1991, Lobão canta: "... Parceiros de suicídio/ Um vício sentimental/ Um acidente fatal/ Eu uivo pra Lua cheia/ E a felicidade vacila/ E por mais que a lua ilumine/ Continuará vazia..." (Bem Mau).
O baiano Raul Seixas, envolvido em drogas até aqui não era definitivamente uma pessoa alegre. Irritava-se com facilidade e não media palavras quando queria xingar alguém. Era da pá virada como se diz. Perseguiu a morte como pôde, sempre de modo perigoso. Ele: "... Ao lado de Herodes/ Comandou o genocídio/ Mas quando acorda assustado/ Está pronto pro suicídio..." (O Suicídio Parte II).
No dia 10 de novembro de 1972, com 28 anos de idade e um dia, o compositor Torquato Neto despediu-se da vida aspirando gás. 
Torquato (foto ao lado) foi figura importante no movimento Tropicalista, que teve a frente Caetano, Tom Zé...
Em 2000, a mestranda Anay Oliveira dos Anjos apresentou dissertação à banca de professores do curso de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP sob o título A Morte na Obra de Torquato Neto: uma análise semiótica. Ela:
No caso de um artista, podemos acompanhar esta constante presença da morte em sua obra, e Torquato não é exceção. A morte é uma constante em sua vida e obra. Ele já havia tentado se matar diversas vezes e cada uma era como um tributo à própria arte. Existe um ponto em que a criação artística torna-se de tal modo importante para a vida do artista que elas se confundem. Ela só existe por sua causa mas à medida em que sua criação se estrutura o artista se vê na posição contrária. Ele passa a depender da obra para existir tanto quanto ela depende dele para fluir. A morte aparece aqui como um tributo a ser pago à arte, uma experiência limite que permite ao sobrevivente o relato pleno de sua incursão pelos obscuros e perigosos caminhos do inconsciente.
Ainda na sua convincente dissertação acrescenta Anay: 
Sua atividade criativa estava aquecidíssima e ele tinha inúmeros planos de futuro. "Experimentar" a morte era como encarar de frente aquela que o colocava constantemente numa cilada. O artista é aqui uma vítima voluntária da própria arte. Caso ele sobreviva terá em seu desenvolvimento artístico um salto qualitativo talvez apenas possível por ter tomado a opção do sacrifício. Um ritual que ressuscita, como o próprio corpo do sobrevivente.

segunda-feira, 12 de junho de 2023

A MORTE TEM NOME: VIDA (2)

Existem pérolas no repertório da nossa música popular relacionadas à morte.
Num ano que não me lembro com firmeza, conversei e bebi bastante com o craque Nelson Cavaquinho.
Nelson tem obras-primas que fazem alusão à morte. Particularmente encontro enorme identificação com os sambas Quando Eu Me Chamar Saudade e Juízo Final. Quando Eu Me Chamar Saudade diz: 

Sei que amanhã, quando eu morrer
Os meus amigos vão dizer
Que eu tinha um bom coração

Todos os grandes compositores cantaram a morte. Chico, por exemplo, disse na canção Funeral de Um Lavrador baseada na peça Vida e Morte Severina, do pernambucano João Cabral de Melo Neto:

Esta cova em que estás com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho nem largo nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio...

Nessa mesma linha e batuque, em 1951, a paulistana Inezita Barroso estreou em disco com a canção Funeral de um Rei Nagô, de Murilo Araújo e Hekel Tavares. Ouça: https://youtu.be/jsd1OtCJKJo
Falei do Chico e também posso falar do Gil, Caetano e Vandré cantando a morte. Gil: 

Não tenho medo da morte
Mas sim medo de morrer
Qual seria a diferença
Você há de perguntar
É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no Sol, no ar
Ainda pode haver dor
Ou vontade de mijar...

E o mano Caetano, disse: 

Morre-se assim
Como se faz um atchim
E de supetão
Lá vem o rabecão...

E Vandré, hein?
Nas músicas Réquiem para Matraga, Disparada e Terra Plana, Geraldo fala de morte com todas suas cinco letras e consequências gerais. Diz ele em Terra Plana:

... Se um dia eu lhe enfrentar
Não se assuste, capitão
Só atiro pra matar
E nunca maltrato não...

No dito rock brasileiro há letras bastantes interessantes do tema morte.
Renato Russo e Cazuza, por exemplo, falaram muito sobre o tema.
Renato:

Os mortos não podem voltar
Os mortos não vão mais falar mal de vocês
Nem da madeira, nem do ferro em brasa
Choques elétricos e ameaças
Crianças que desaparecem
Frases perfeitas, palavras cegas
Escritas em cartazes tropicais
Cadê meu pai?
Meu irmão?...

E por aí vai. A história é longa.
Tudo há o que se procurar na discografia brasileira, desde de o começo do século 20. Sim, não podia aqui deixar de falar da gauchinha Elis Regina. Ela cantou com a beleza da sua voz a cantiga Lapinha. É de Baden Powell e Paulo César Pinheiro. Foi na I Bienal do Samba. Aqui Elis cantando: https://youtu.be/v_fBw6EHebA 
A história da morte está na história.
Meu amigo, minha amiga, você sabia que Cleópatra se suicidou?
Em 1942, o austríaco Stefan Zweig e sua esposa, Zweig Lotte, firmaram um pacto de morte, suicidando-se. As razões, não sei...
Hoje é o Dia dos Namorados.

domingo, 11 de junho de 2023

A MORTE TEM NOME: VIDA (1)



Pra viver, a morte precisa da vida. E nós, da morte.
O tema é tabu e por ser tabu, polêmico. Desde sempre.
Esse tema se acha em todos os quadrantes do pensamento humano, desde sempre.
Falar da vida, falar da morte e de sexo não é fácil. É difícil, e por ser assim, polêmico, polêmico.
Não é fácil falar das coisas fáceis.
A morte, por exemplo, está na nossa cara como na nossa cara está a vida. E vida como tal, sexo.
O sexo reproduz a vida e a morte, não é mesmo?

Mas poeta eu não sou não.
Poeta é Zilidoro
Poeta é Riachão
Que do nada fazem versos
E se brincar até canção...

A morte, como a vida, se acha profundamente presente nas mais diversas formas da cultura popular. Na música, inclusive.
O roqueiro Raul Seixas e o escritor Paulo Coelho assinam um tango interessantíssimo, cantado por Raul. Este: https://youtu.be/FHZpAnagMkc
O tema morte na música popular brasileira é antigo, antiquíssimo.
Em 1933 o carioca Noel Rosa escreveu e cantou Fita Amarela. Diz: 

Quando eu morrer
Não quero choro, nem vela
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela...

Isso, pois, há 90 anos!
Mas a temática morte na nossa música popular é anterior à Fita Amarela. 
Porém não custa lembrar que nesse ano, 33, os compositores J. G. Fernandes e L. Marques compuseram o fado A Morte da Ceguinha, que o português com raízes brasileiras Manoel Monteiro gravou com muita graça, digamos assim.
Antes dos 30, os cantores Paraguassu e os Irmãos Eymard gravaram Morrer de Amor e Morrer Por Ti. A primeira é uma modinha e a segunda, uma polca.
Polca, aliás, é um gênero musical muito bem assimilado pelo sanfoneiro e compositor, também cantor, Luiz Gonzaga.
Em 1953, há 70 anos, o Rei do Baião gravou do caruaruense Nelson Barbalho a toada A Morte do Vaqueiro. Obra-prima. Ouça: https://youtu.be/jSWwftxuSQQ
Antes dessa música, Luiz Gonzaga compôs um samba com Ari Monteiro. Essa samba foi gravado em disco de 78rpm pelo carioca Cyro Monteiro. Título: Meu Pandeiro. Ela começa assim:

Quando eu morrer, quero um braço de fora
Pra tocar o meu pandeiro, ô
O meu pandeiro cravejado de marfim
Quando eu morrer, quero um braço de fora
Pra tocar o meu pandeiro, ô
Em homenagem às morenas que gostam de mim


Num ano qualquer da década de 50, João Pacífico a mim contou que escreveu uma moda a que deu título de Cabocla Tereza. Clássico do gênero.
Cabocla Tereza foi gravada originalmente em 1959 pelo parceiro de João, Raul Torres. É gravação linda, lamentavelmente linda, feita pelo já referido Raul e seu parceiro de viola Florêncio.
À época Raul Torres formava dupla com Florêncio. Famosa.
O tempo passou e continua passando, que não é besta.
A morte está presentíssima na música popular brasileira.
É fácil falar da morte, difícil é viver a vida que ora o mundo vive com guerras e putaria de todos os tipos.