“Seria na moda, entretanto, que a galanteria, servida por fundamentos filosóficos, estava destinada a encontrar
a sua maior concretização.
No complicado das roupas de golas largas e na opulência das perucas havia repousado até os princípios do século toda gama de diferenças sociais, que faziam as odiosas distinções entre as senhoras burguesas e as senhoras nobres, e entre estas servia para tornar diferente uma duquesa de uma condessa − quando vestidas, naturalmente.
O grande vento da liberdade, que em breve ia fazer desaparecer no redemoinho da Revolução títulos e privilégios, fez voar longe o emaranhado das rendas e das fitas, enquanto ao calor da libertinagem abria-se cada vez mais o ângulo obtuso dos decotes.
Os irmãos Edmond e Jules de Goncourt, falando da mulher do século XVIII, afirmaram que era a volúpia que as vestia.
Em lugar das perucas, passaram homens e mulheres a empoar os cabelos, e a estilização das vestes tornou-se em certo momento tão semelhante à moda feminina a masculina que o Marquês de Sade
Aliás, nunca esteve tanto na moda o amor por vias travessas e, enquanto Mme. Tallien podia ser vista, na Ópera, usando um provocante vestido aberto dos lados, nas ruas se viam comumente mulheres exibindo o chamado cul de Paris, um desinibido modelo que lhes deixava à mostra aquela parte do corpo que a riqueza de músculos não torna menos vulnerável.
Como um desafio à velha moral cultivada por tantos séculos de escolástica, apareceram as sandálias de salto alto, origem daquele andar que imprime aos quadris o compasso binário a que hoje chamamos rebolado.
Num corolário perfeito, a filosofia reivindicava a liberdade de discussão, a liberdade de discussão levava à conclusão de que a felicidade estava em viver de acordo com a natureza, a natureza indicava que a felicidade estava no gozo dos sentidos, e como nada excitava mais os sentidos do que a musculatura desenvolta das mulheres, em sua parte posterior, o rebolado feminino chegou a extremado requinte no século XVIII.
As mais famosas rebolantes do tempo saíam dos teatros, e d’Alembert, aplicando com cinismo bem-humorado o seu espírito científico na observação desse fenômeno sociológico, chegaria a concluir que ‘a prosperidade e fortuna das bailarinas era uma consequência natural da lei do movimento’.
Onde toda a galanteria do século XVIII marcava seu encontro, no entanto, era nas longas avenidas do Palais Royal, a vasta área em forma de paralelogramo próxima ao Louvre, que Felipe Igualdade convertera num elegante conjunto de palacetes, jardins, bazares, teatros, cafés, restaurantes e dezenas de pequenos bosques, a cuja sombra homens e mulheres podiam tranquilamente procurar a bem-aventurança que Deus lhes punha ao alcance das sôfregas mãos.
Uma eficiente guarda de soldados suíços impedia a entrada apenas de escolares, trabalhadores e cachorros.
Diderot confessa no seu Le Neveu de Rameau que gostava de sentar-se solitariamente por volta das cinco horas da tarde num dos bancos do Palais Royal: ‘Converso comigo mesmo sobre política, sobre amor, sobre filosofia e abandono meu espírito a toda doce libertinagem’ − escreveu, confessando com bonomia: ‘E como me agrada ver, pela avenida da Fé, um satirozinho de cabeleira empoada e casaquinho de Lyon seguir os passos de uma ninfa, que tanto mais revela suas graças, quanto mais finge ocultá-las’.
Por seus jardins, Rétif de la Bretonne pôde conhecer, orientado pelo médico Guillebert de Préval, charlatão em doenças venéreas, as várias espécies de mulheres que classificaria por nomes que indicavam à maravilha as suas especialidades no amor: segundo Rétif faziam ponto no Palais Royal as ‘boquissábias’, as ‘mãosintrépidas’ e as ‘sunamitas’, virgens de 12 a 15 anos cujo nome e função lembrava a bíblica figura de Abisas Sunamita, de quem nos fala o Livro I do Velho Testamento: a moça levada ao decrépito Rei Davi para lhe servir de cobertor, e que, colada a ele, ‘o esquentava e o servia’, como lá diz o Santo Livro. Assim foi o galante e profundo século XVIII, tão levianamente acusado às vezes de ter sido apenas um século de frivolidade cortesã e
de sangue revolucionário.
Um século ao mesmo tempo tão galante e tão profundo, que soube encontrar um jeito de conciliar a moral e o gozo da vida, como sintetizaria Saint-Lambert num verso em que, referindo-se a Deus, afirmava:
‘Jouir c’est l’honorer; jouissons, il l’ordonne.’
O bravo Saint-Lambert que, feitas as contas com a posteridade, só lhe restaria a glória extraliterária de ter tomado Mme. du Châtelet de Voltaire e Mme. d’Houdetot do cândido Jean-Jacques Rousseau − no melhor estilo galante do século XVIII.” (Fim)
Foto e ilustrações por Flor Maria e Anna da Hora
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