... Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me, pelo amor de Deus, que o fizesse comprar por minha madrinha, para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição, com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava.
Nada mostra melhor, do que a própria escravidão, o poder das primeiras vibrações do sentimento... Ele é tal, que a vontade e a reflexão não poderiam mais tarde subtrair-se à sua ação e não encontram verdadeiro prazer senão em se conformar... Assim eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência, como a deformação utilitária da criatura, e na hora em que a vi acabar, pensei poder pedir também minha alforria, dizer o meu nunc dimittis, por ter ouvido a mais bela nova que em meus dias Deus pudesse mandar ao mundo; e, no entanto, hoje que ela está extinta, experimentando uma singular nostalgia, que muito espantaria um Garrison ou um John Brown: a saudade do escravo.
É que tanto a parte do senhor era inscientemente egoísta, tanto a do escravo era inscientemente generosa. A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil...
(Massangana, trecho do capítulo 20 do livro Minha Formação, de Joaquim Nabuco; 1900)
Os exploradores do capitalismo selvagem continuam escravizando pessoas incautas e delas fazendo o que querem. De certo modo, tem sido uma rotina no Brasil.
Somente em 2022, segundo dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego 2.575 pessoas foram resgatadas de locais de trabalho análogo a escravidão. A maior parte dessas pessoas foi localizada no território de Minas Gerais. Os responsáveis foram obrigados a indenizar as vítimas.
O tema continua em pauta.
Ouvi hoje 1º notícia no rádio dando conta de que a polícia rodoviária do Rio Grande do Sul localizou e livrou do trabalho análogo a escravidão 207 pessoas, todas do sexo masculino e oriundas da Bahia. Encaixam-se na faixa etária de 18 a 27 anos.
Essas pessoas aqui lembradas foram localizadas no município de Bento Gonçalves, RS. Estavam trabalhando sem nenhuma garantia na colheita de uva. O período dessa colheita vai de janeiro a março.
A respeito desse assunto, acabo de ouvir no rádio trecho de um discurso do vereador gaúcho Sandro Fantinel. Um horror. Esse cidadão precisa ser punido na forma da lei, no rigor da lei, pelos absurdos que diz no Plenário da Câmara em Caxias do Sul, RS. Ouça/veja: https://youtu.be/H2nl-nNwM6c
O pernambucano Joaquim Nabuco (1849-1910) estava adiantado no seu tempo em mais de 100 anos. No livro Minha Formação, ali no capítulo 21 (A Abolição), ele escreve:
Quando a campanha da abolição foi iniciada, restavam ainda quase dois milhões de escravos, enquanto que os seus filhos de menos de oito e todos os que viessem a nascer, apesar de ingênuos, estavam sujeitos até aos 21 anos a um regime praticamente igual ao cativeiro. Foi esse imenso bloco que atacamos em 1879, acreditando gastar a nossa vida sem chegar a entalhá-lo. No fim de dez anos não restava dele senão o pó. Tal resultado foi devido a muitas causas... Em primeiro lugar, à época em que foi lançada a idéia. A humanidade estava por demais adiantada para que se pudesse ainda defender em princípio a escravidão, como o haviam feito nos Estados Unidos. A raça latina não tem dessas coragens. O sentimento de ser a última nação de escravos humilhava a nossa altivez e emulação de país novo. Depois, à fraqueza e à doçura do caráter nacional, ao qual o escravo tinha comunicado sua bondade e a escravidão o seu relaxamento. Compare-se nesse ponto o que ela foi no Brasil com o que foi na América do Norte. No Brasil, a escravidão é uma fusão de raças; nos Estados Unidos, é a guerra entre elas...
Em 2000, o cantor e compositor Caetano Veloso melodiou parte do texto Massangana. O texto musicado foi o título do CD Noites do Norte. Ouça:
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RUY BARBOSA 100 ANOS
O baiano Ruy Barbosa foi uma das mentes mais brilhantes do Brasil. Sem dúvidas. Foi ele também o primeiro ministro da Fazenda da 1ª República. Governo Deodoro da Fonseca. Sua inteligência ultrapassou fronteiras. Foi aplaudido nos EUA e Europa. Na Holanda a Imprensa o chamou de Águia de Haia. O apelido pegou e ficou no imaginário popular. Tentou ser presidente em 1909, disputando com o marechal Hermes da Fonseca. Perdeu. Em 1919 tentou novamente ser presidente, disputando com o paraibano Eptácio Pessoa. Perdeu. Antes disso, muito antes, mandou queimar documentos importantes referentes ao período da escravidão no Brasil. Crime. Desse crime jamais livrou-se.
Ruy Barbosa de Oliveira nasceu na cidade de São Salvador, BA, no dia 5 de novembro de 1849 e morreu em Petrópolis, RJ, no dia 1º de março de 1923.
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