Dante Alighieri teve uma Beatriz como musa inspiradora. Não foi correspondido.
Francesco Petrarca teve uma Laura como musa inspiradora. Não foi correspondido.
O fato, porém, de esses italianos não terem sido correspondidos pelas respectivas musas não significa que guardassem qualquer tipo de ressentimento. Ao contrário. Tanto Dante quanto Petrarca escreveram belos textos inspirados nas duas musas. Quer dizer: ambos platônicos.
A expressão “amor platônico” data de tempos um tanto distantes, quando filósofos reuniam-se para beber e discutir a vida na velha Grécia. Platão na parada, Sócrates na parada e tantos outros abrindo portas para entendermos as complicações provindas da nossa alma.
Quem leu o Banquete sabe disso. Essa história nos leva a entender os passos que quase sempre damos pra trás.
Quando há correspondência do amor entre amantes a vida certamente fica muito melhor. Para ambos.
Sorte essa teve o paraibano José Nêumanne Pinto. Apaixonado pela musa querida Isabel tem sido completamente correspondido no amor a ela dedicado.
Dito isto, digo mais: Eros, Dalila e Sansão misturam-se num banquete com caju, inhame, cuscuz e ovos, queijo de manteiga e carne de sol, castanhas de caju primorosamente preparados e servidos pelo poeta, que também adora comer tudo isso.
Pra ficar melhor ainda esse banquete de amor e alegria, uma violinha ao fundo enfeita tudo.
Nós, pobres mortais, temos mais é que tecer louvores pela existência de dona Isabel por ter inspirado tão belo poema. E chega de prosa, vamos aos versos:
Manual de pintura, cartografia e anatomia
Ou melhor: corpo, alma, dengos e coração da mulher amada
Aqui entre nós Maria Isabel,
a rainha, a mãe, a tia,
a neta, a filha, a poesia;
Pimentel de Castro,
herdeira de engenho,
norte de bússola,
linha do Equador.
Recolhida ao solar de taipa
dos Pinto do Rio do Peixe,
que não tem água nem peixe,
balança na rede de Mãe-Inda,
egressa de outras trempes,
outros cantos, outros tempos
e mais cem anos de solidão.
À sombra das mangueiras,
em moagens de rapadura,
alfenim e cana de cabeça,
na Baixa Verde do clã Ferreira;
e à mesa farta de fruta e pão
de Maria Moreira, na feira sem beira
lá do sem fim do sertão.
Ao norte, esta minha amada
tem dois cérebros de pensar:
um é o templo da deusa Clio,
com seu passado em ordem.
O outro, o altar do bobo Eros,
sob desordens do amor a fazer,
oculto na cortina de cabelos,
que envolve seu crânio
em novelos de fios de ouro,
finos, macios e lisos,
a vigiarem esmeraldas
- dois sóis de ondas do mar,
dois canhões de raios laser,
um casal de araras mudas,
um par de periquitos de estimação.
Os olhos canavieiros de Isabel
ninguém consegue esquecer.
A testa da mestra amada
é feito caixa de Pandora,
proibida de ser aberta,
pois abriga legiões de César,
dispara guilhotinas de Marat,
espouca em cometas e fogos,
revela os segredos de Fátima
e espera dom Sebastião chegar.
As sobrancelhas de Isabel,
que a coroam rainha de Sabá,
protegem a harpa de Davi,
caçoam do saber de Salomão
e contêm a arca da aliança,
da nova e da velha aliança,
da Bíblia, da Cabala, do Alcorão.
No desenho dos lábios que beijo
o Criador traçou as rotas
de caravanas cruzando desertos
a buscarem oásis perdidos
sonhados em delírios nômades
dos contos de Sheherazade,
esquecidos ao acordar.
E boca mais linda não há!
(A voz grave que a esta chega
direto das cordas vocais
- com sensual toque masculino -
dá aulas do que passou
e fantasia o que virá.
Sua palavra traduz o que sente
e entrega o que promete.
Suas sentenças reproduzem
o que aprendeu e o que viverá).
E a perfeição vive em plena
e complexa harmonia
entre os lábios que a compõem
e o queixo em que se precipita
- à frente, o pescoço esguio
e atrás, a nuca solerte e alerta.
Mas tudo seria incompleto
sem seu nariz imperfeito,
que não aponta pra cima
para a ninguém humilhar.
E sem o labirinto das orelhas,
com curvas de risco
e contornos imprevistos,
que nunca levam ao Minotauro.
Sob a cabeça da amada,
ombros sustentam o peso do mundo
com a malícia de Dalila
no corte das madeixas de Sansão.
Seu colo é o vale de lágrimas,
o Muro das Lamentações
de uma Jerusalém particular.
É, também, o adro da devoção
onde o Crucificado agoniza
antes de o lavar o pranto da mãe.
Dos ombros partem braços,
endereços de nosso abraço,
que abarca a história inteira
quando ela vem se repetir:
meus bancos no seminário,
as aulas de português
de Argentina e Francisca Neuma
no Estadual da Prata,
seus passeios de bicicleta
com Cacá, no Junco do Seridó,
onde eu costumava tomar café
no posto de João Galo,
com inhame, cuscuz e ovos,
queijo de manteiga e carne de sol,
castanhas de caju à beira do asfalto
nas curvas da Serra da Viração,
onde almas penadas dançam o baião.
Deles pendem duas mãos pequenas,
com palmas fofas e cheirosas
sob dorsos firmes e bem feitos,
onde pousam aves e beijos
e descem foguetes e aviões.
Mãos que indicam caminhos
e entregam dádivas,
dedos que encurtam distâncias
e recolhem afagos
com suas unhas de cor viva
e nós fortes de massame.
Mãos de menina simples
com meneios de mulher
e feitiços de anjo-bruxa.
Suas clavículas foram feitas
somente para impedir
aos ousados o acesso abusado
a seios sensíveis ao toque
e aptos ao exercício de sugar
e lamber e beijar e chupar
para apenas um par de mãos
e uma língua só que desvende
mistérios de um gozo secreto
que ela pensava ter perdido.
Não é pra qualquer um,
É pra pouco, é só pra um.
(Dentro do peito pulsa o coração,
músculo de bondade e malícia,
capaz de muito mais amar
e se deixar amar em profusão).
(Lá dentro do tal órgão vital,
sopra sua alma capaz
de se entregar e se integrar,
mas só a quem decida amar).
No meio do ventre de Isabel,
o umbigo é o centro do universo.
Foi lá que Marco Polo achou
a trilha do Adriático ao Oriente.
E nele o genovês descansou
antes de singrar ondas no Caribe.
É o miolo do cogumelo atômico,
que caiu em Hiroshima, meu amor.
O reverso do dorso desta mulher
são suas costas de planícies
e nelas a vista se perde
sem tropeçar em contrastes
nem escorregar em lombadas.
Costas sem areia ou pedras
às quais o mar só chega
se ela chegar ao mar.
De um lado, a cintura de Isabel
introduz a gruta de mucosas
sob um bosque de pelos
e é ali que Eros foi morar
com sua destilaria de mucos,
que só ao iniciado cabe provar,
e sua confusão de odores
que uma inteira encarnação
não basta para identificar.
A origem de minha vida
passa por pétalas de rosas
que não me canso de admirar.
Do lado de trás, o Aleph,
orifício de onde tudo se vê,
mesmo o que não existe,
mesmo até o que não se vê,
artifício de uma beleza peculiar
que a nada mais é dado ter.
É o vale mais profundo
entre dois morros simétricos
que o ocultam e lhe dão valor.
Nada é demais ou de menos
nas nádegas de minha mulher:
na parábola de suas ancas,
em que convivem em paz
formas de côncavo e convexo,
tudo está em perfeita ordem,
embora elas provoquem o caos,
a desídia e o conflito nuclear.
Na vida toda nunca pude ver
membros inferiores tão belos
como os que ela tem, acredite.
Em palco, tela, sala ou cama,
mesa, desfile ou via pública,
onde mais pudesse haver,
nada me pareceu ter existido
com que se pudesse comparar:
nem as coxas de Norma Bengell
no filme exibido no Capitólio.
nem as pernas de Cyd Charisse
dançando com Fred Astaire.
Entre coxas e pernas
joelhos discretos, de matar
de inveja os de Nara Leão.
Quando vi pela primeira vez,
julguei que fossem miragem,
que nem pudessem existir.
E a ninguém careço convencer.
Pois é assim que vejo.
E assim é que são:
do magnífico traseiro,
de que descem,
aos pezinhos delicados,
com que só pisam o chão
depois de esmagar minha dor
e perdoar minha perdição.
Seus pés são asas de andorinhas,
sem as quais o inverno não parte,
sem as quais nunca chega o verão.
Ao sul Maria Isabel se dirige
para partilhar o maná caído do céu
e o pão que o diabo amassou,
a par de que vida é pra viver
e não há tempo que se possa perder.
Poema extraído do livro Antes de Atravessar