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sexta-feira, 21 de junho de 2013

O CAPETA, DALÍ, KAFKA E DEUS

Ontem, no começo da noite, peguei meu boné e fui ver de perto o que ocorria na Paulista e redondezas. Vi estudantes e não estudantes de cores e idades diversas metendo o pau no governo de modo puro e simples. Alguns de caras-pintadas e outros não, mas quase todos exibindo cartazes e gritando palavras de ordem aparentemente sem nexos nem plexos, desordenadamente.
De repente um Capeta mascarado e mais um mais outro pularam na minha frente escudados com a bandeira do Brasil.
Enquanto eu dava um pulo para trás, assustado, eles explodiam numa gargalhada uníssona, esquisita, me convidando a engrossar o movimento deles, de protesto contra tudo.
Eu disse: vade retro!
Vade retro disse também um moço magro, franzino, de estatura mais pra baixo do que pra alto, bem-vestido, educado, de olhar profundo, orelhas pontudas e cabelos curtos cortados ao meio que estava ao meu lado e que a mim se apresentou como Kafka, Franz Kafka.
Kafka recomendou que eu não chorasse e levasse a situação numa boa, pois a vida é assim mesmo: ora simples, ora estranha; e ao se juntar o simples com o estranho, o resultado, em qualquer língua – ressaltou - é, digamos, kafkiano.
Faz sentido... – balbuciei um tanto tímido, pensando no assassinato do arquiduque do império Austro-Húngaro Francisco Fernando Carlos Luís José Maria de Áustria-Este e da sua mulher Sofia, duquesa de Hohenberg, por um lunático anarquista de 19 anos chamado Gavrilo Princip que levou boa parte do mundo à tristeza da Primeira Grande Guerra, em julho de 1914.
Às vezes – prosseguiu Kafka, calmo e filosófico -, a vida nos parece um encanto, um sonho e, às vezes, um pesadelo.
Olhando para os lados, mas indiferente ao que ocorria à nossa volta, o escritor checo contou, sem eu perguntar, que o seu personagem Gregor Samsa surgiu assim, do nada, e do nada foi baixar nas páginas de Metamorfose, em 1915.
- O ser humano é monstruoso, essa é que é a verdade – disse ele educadamente, enquanto me puxava a um canto para dizer mais.
Kafka disse que certa vez exagerara nas doses de vodka que tomara numa taberna de Praga onde nascera, em 1883, e tarde da noite acordara suado, tremendo, com sintomas de delirium tremens, querendo acabar consigo e com o mundo todo, pois estava de saco cheio com tudo, com todos; e todos lhe pareceram naquela ocasião que estavam também de saco cheio com tudo; e sendo assim lhe seria até mais fácil dá cabo de tudo.
Tentei dizer algo, mas Kafka interrompeu:
- Eu mesmo tenho muita pena de Gregor, que quis mudar o mundo a seu modo se transformando num inseto para chamar a atenção do horror que muitas vezes são pessoas e sistemas. Não conseguiu.- E de Josef K? – arrisquei, timidamente.
- Eu também tenho muita pena de Josef. Josef é um de nós, perdido, neste mundo louco.
Sem que desconfiássemos, a nossa conversa estava sendo acompanhada por um sujeito de modos ricos, perfumado, dedos anelados, olhos esbugalhados, cabelos longos e bigodes finos apontando para o céu. Sem pedir licença, o desconhecido foi logo dizendo que era Salvador Dalí. Dito isso, apontou para a multidão e com certa ojeriza falou:
- Vocês sabem qual é a diferença entre mim e esses malucos aí?
Eu e Kafka nos olhamos, incrédulos.
Antes de ele nos virar as costas numa gargalhada estrondosa, respondeu:
- É que eu não sou maluco, eu pinto a realidade e vivo sonhos!
Mas Kafka queria saber coisas a nosso respeito.
Eu disse que o Brasil é o melhor país do mundo.
Ele deu uma risadinha que não compreendi direito para se estender na pergunta:
- Se é o melhor país do mundo, por que então esse povo todo está na rua batendo lata, gritando, dizendo coisas incompreensíveis, sem nexos e quebrando tudo? É essa a maneira de o povo brasileiro mostrar a sua alegria? Esquisito, não é?
Respondi que não, que essa era uma maneira de os brasileiros mostrarem que estão insatisfeitos com a roubalheira, com a corrupção, com falta de escolas e professores preparados para educar; com o custo de vida alto e os salários baixos, com a inflação dando as caras e a incidência de crimes aumentando...
- Então este não é o melhor país do mundo! A mim me parecer ser o Brasil uma grande invenção, isto sim; uma utopia, uma coisa única, de gênio, de Deus.
Nisso, à nossa frente, do nada surge um velhinho de barbas brancas, maltrapilho e alquebrado rogando:
- Eu já fiz o que pude. Agora, por favor, me tirem dessa história.

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