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quinta-feira, 16 de setembro de 2021

LOURENÇO DIAFÉRIA, UM MESTRE DA CRÔNICA

Nestes tempos malucos em que o presidente da República chama o Exército brasileiro de “meu”...
Nestes tempos malucos de fome e guerras absurdas que matam homem, mulher e criança, brancos e pretos…
Neste mês de setembro, quando o mundo lembra os 20 anos do ataque terrorista às Torres Gêmeas, que mataram quase 3 mil pessoas, de Manhattan, não custa também lembrar que foi num mês como esse que Lourenço Diaféria foi preso acusado de “manchar” a imagem do nosso brioso Exército.
Lourenço Diaféria foi um mestre da crônica jornalística e essa acusação “rendeu-lhe”, lamentavelmente, enquadramento na Lei de Segurança Nacional, LSN.
Antes do enquadramento, o chefe militar de gabinete do governo de Geisel (1974-1979), Hugo de Abreu, telefonou ao dono do diário Folha de S.Paulo, Octavio Frias de Oliveira (1912-2007), ameaçando fechar o jornal.
A Folha era editada por Cláudio Abramo (1923-1987), cuja a cabeça foi pedida pelo militar.
No lugar de Abramo ficou Bóris Casoy, que se identificava plenamente com o regime da época.
Depois de muita confusão, depois de muita polêmica, Lourenço acabou solto por decisão do Supremo Tribunal Federal, STF.
A crônica Herói. Morto. Nós., que entrou para os anais da história, rendeu também a seu autor um chute na bunda. Quer dizer: demissão do jornal onde trabalhava.
Eu conheci Lourenço na Folha, em 1977.
A amizade seguiu firme por outros lugares: JT, Diário Popular…
Foi não foi, Lourenço me citava em suas crônicas. Levantava a bola, como se diz.
Um dia, pedi-lhe que escrevesse um texto de apresentação para o livro que eu estava em vias de publicar: Nordestindanados, Causos e Cousos de uma raça de cabras da peste (1992). E em três páginas, sob o título Como um Gosto de Tapioca, ele começou:

“Este é mais um livro do mais paulistano dos paraibanos. Vivendo uma diáspora sentimental em busca de melhores perspectivas de trabalho, Assis Ângelo, o autor, não abandona as raízes, a placenta e o umbigo viscerais de seu modo nordestino de ser. A escritura de Assis Ângelo tem a umidade fecunda que banha a lâmina ao talhas a palma do xique-xique. Como não é romance, nem novela, nem autobiografia, nem relatório de serviço, a primeira vantagem deste livro é que as páginas podem ser lidas sem sequência, de trás para frente e vice-versa. Todavia, se alguma página for saltada, e não for lida, o leitor ficará sem saber algumas coisas que o tornarão mais rico de conhecer a alma de um autor. Por vezes, são anotações quase fortuitas, temperadas em meia dúzia de palavras, escritas, aparentemente, como rubricas de uma vida”
No seu delicioso texto, sempre na linha de loas, conclui:
“Este livro nada tem de empombado. Não pretende ser um ensaio. Muito menos tratado. É simples, como a tapioca. Mas para fazer igual é preciso ter estrada. Ser filho de dona Anunciada. Ter ido a trezenas de santos infinitos a rogo de dona Alcina. Ter sabido ganhar e perder na vida. E ter aprendido a receita de saber dosar com emoção o recheio do alimento sertanejo”.
O pai de Lourenço era italiano e a mãe, portuguesa.
O resultado dessa mistura deu no que deu: um cidadão explicadíssimo à vida, de olhares sensíveis ao cotidiano da cidade que lhe deu berço. Nascido no dia 28 de agosto de 1933. “Não havia lugar melhor pra nascer, a não ser o bairro paulistano do Brás”, disse-me uma vez.
Lourenço Diaféria, de batismo Lourenço Carlos Diaféria, cresceu brincando e chutando bola, como qualquer moleque de infância comum. Pelo gosto do pai, seria advogado. “A minha mãe não ligava muito pra isso, ela dizia não querer interferir na minha escolha profissional. Bastava-lhe que eu fosse uma boa pessoa, sem inimigos”, lembrou.
Lourenço começou, mas não terminou o curso de jornalismo na Cásper Líbero.
Em 1956, inscreveu-se num concurso para redator do extinto Folha da Manhã, hoje Folha de S.Paulo. Passou, trancou o curso que também iniciara na USP, e seguiu firme na mesma profissão que seu pai exercia no começo dos anos 20, quando chegou da Itália e escolheu o Rio de Janeiro para morar.
Lourenço Diaféria era onipresente. Estava em todo lugar. Ele via tudo e tudo anotava com descrição: as pessoas, os animais, a chuva, o sol, o vento, tempestades, caras feias e bonitas, sem falar dos monumentos espalhados pela cidade, dos teatros, dos cinemas, dos jardins...
Foi um cronista completo.
As palavras ele colhia do seu jardim particular, que regava com dedicação e amor.
Em 2000, o Jardim da Luz completou 200 anos.
Para comemorar a data, o cartunista Fausto desenvolveu uma obra gigantesca em que aparecem pessoas que marcaram a cidade. Pessoas simples, inclusive. E lá está Lourenço.
Lourenço fazia das palavras suas amigas. Da mesma maneira que ele cuidava delas, por elas era cuidado.
Ele sempre pôs as palavras no lugar certo, nos lugares certos. Elas não o surpreendiam. E vice e versa.
Era um craque, um verdadeiro jardineiro do Lácio.
Lourenço foi jornalista, cronista, romancista...
Deixou uma montanha de belos livros, entre os quais: Empinador de Estrelas, Um Gato na Terra do Tamborim e Coração Corinthiano.
Foi um grande corinthiano. Sabia tudo e algo mais sobre o Timão.
Quando um dia dispensaram sua crônica do Diário Popular, sem justa causa, sem motivo algum, escrevi uma carta que o jornal publicou. Nela mostrei a minha insatisfação, o meu desgosto como leitor. No dia seguinte, pra minha surpresa, recebi uma carta do mesmo Lourenço agradecendo o que eu fizera. Ele começava dizendo: “Querido Ângelus”.
Ângelus, na verdade Di Ângelus, foi um dos pseudônimos que usei nos meus tempos de artista plástico.
Quando uma equipe da TV Gazeta me procurou pra falar do bairro do Brás, lembrei-me do livro de Lourenço: Brás - Sotaques e Desmemórias.

Lourenço Diaféria morreu no dia 16 de setembro de 2008.
Morreu não, encantou-se
Ah! Sim: seus pais eram Filipe e Maria.
Grande Lourenço!

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