ASSIS ÂNGELO — O sexo se acha na poesia, no romance, na pintura, no cinema, em todas as manifestações artísticas. Mas a hipocrisia não permite que se fale abertamente a respeito desse assunto.
JOYCE CAVALCCANTE — A hipocrisia é o pilar onde se escoram todas as religiões, como também as demais instituições de poder. É por essa estratégia que a religião vira política e ninguém se apercebe até ter sido escravizado. Amordaçado.
ASSIS — Joyce, que importância tem o sexo nas artes, especialmente na literatura?
JOYCE — É de uma importância tão grande e abrangente que fica difícil imaginar qualquer expressão artística que não tenha sido alimentada pela energia vital do segundo Chakra, SVADISTHIANA. De cor laranja é o Chakra que gerencia a sexualidade e a criatividade, dois conceitos inseparáveis quando se trata da reverenciar a vida fazendo literatura.
ASSIS — Você teve problema ao abordar esse assunto no começo de sua vida como mulher e profissional da literatura?
JOYCE — Não, nunca tive esse tipo de inibição. Principalmente porque a minha literatura - enquanto oscila entre o sagrado e o profano - se baseia, acima de tudo, na vida, que não pode nunca se dissociar do sexo. Porque o sexo é o ninho de toda manifestação de vida que possa existir. É o sopro primordial. Sem ele não haveria existência. Seríamos todos uns não nascidos.
ASSIS — É mais frequente o sexo na literatura masculina do que na feminina, por quê?
JOYCE — Pelo que já li nessa vida, julgo que acontece uma total equivalência entre ambos os campos sexuais ao produzir suas respectivas literaturas. Existe sim diferença de abordagem, mas não na representatividade numérica. Acho que porque no campo do erotismo é preciso que as parcerias sejam compostas e trabalhem em sinergia, senão qual é a graça?
ASSIS — Eu estudei em colégio de padres e tive dificuldade para aprender e me divertir com livros cujas histórias tratavam de sexo. Henri Miller, por exemplo, eu li às escondidas. E você?
JOYCE — Eu também li muito às escondidas, na minha adolescência. É saboroso, demais.
Meu pai tinha uma enorme biblioteca e muito organizada. Ler era o melhor passatempo na minha casa, porém tinha um severo controle etário, e alguns livros traziam o carimbo: “Impróprio para senhoritas”, nos avisando explicitamente que não era para chegar nem perto daquelas obras. No entanto, havia os livros religiosos os quais éramos incentivadas a ler. Um deles era “A Vida de Santa Terezinha”, que trazia uma sobrecapa em papel brilhante e colorida, ilustrada com a figura de uma linda moça coroada com um diadema de rosas. Enquanto minha mãe pensava que sua filhinha estava virando santa, eu utilizava essa sobrecapa para encobrir a capa de couro vermelho do “Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiroz; “O Vermelho e o Negro, de Stendhal”; “Dona Flor e seus dois Maridos”, de “Jorge Amado”; “O Romance de Tereza Bernard”, de Madame Leandro Dupré” e inúmeras outras maravilhas.
ASSIS — Todos os grandes escritores brasileiros, incluindo Olavo Bilac e Guimarães Rosa, falaram com naturalidade sobre a relação mulher/homem e tal. Autores estrangeiros também. Os grandões, desde sempre, abordaram essa temática. Aretino, Sade, Baudelaire, Focault e tal e tantos. O que você poderia dizer de Gregório de Mattos e Drummond?
JOYCE — Todos esses eu fui ler mais tarde e não me emocionaram tanto quanto os romances por mim citados acima. Mas Castro Alves sim, me emocionou. Não obrigatoriamente no épico “Navio Negreiros”, mas nas poesias de “Espumas Flutuantes”. Estudei toda sua obra quando estava no cursinho pré-vestibular. Estava cotado para cair na prova de português do vestibular. Não caiu, mas eu me apaixonei pelo poeta ao ponto de me sentir uma de suas musas. Fiquei fascinada por seus eróticos sonetos de amor, tão exagerados, tão intensos que, muito depois, encontrei nas letras das músicas de Cazuza um quê de Castro Alves.
Carlos Drumond, Guimarães Rosa e Baudelaire, são mestres.
E, para não deixar no esquecimento as mulheres, devo citar a melhor de todas: Anaïs Nin. Por imposição da justiça, entre outras a brasileiras: Júlia Lopes de Almeida.
Porém, não se assuste. Não abrirei essa caixa de Pandora, senão seria inaugurada uma noite sem fim.
ASSIS — A sua obra é pontilhada de erotismo. Fale mais um pouco a respeito disso.
JOYCE — Aí vai. Divirta-se:
PARA TE FALAR DOS MEUS SEIOS
Parceiro,
Eu te contaria toda a história dos meus seios, te falaria deles com menos embaraço, se por acaso tivesse tua mão enganchada na minha complementando minha coragem. (Não ache que é tão fácil ou tão indolor falar assim.)
Derrama com calma um olhar guloso pelo meu decote adentro, mas por favor, não me olhe depois como se pudesse ler meus pensamentos.
Gostaria também muito, nem que fosse por um pequeno segundo, de poder perceber minha imagem refletida na tua íris como se eu fizesse parte de ti. Ao mesmo tempo, ver tua imagem entrando pelos meus olhos, ou seja, eu em ti e tu em mim, numa alucinante projeção infinita.
(Deixa eu falar, nem que pareça tola. Deixa eu falar em paz de minhas vontades e expectativas sem a mínima disciplina. Sem censura largar minha cabeça à toa. Serão os seios o elemento básico de minha anatomia que me torna feminina e nos diferencia?)
Toque-me. Sinta como pulsa rápido meu coração.
Por cima do meu coração estão duas construções de minha geografia que brotaram com a única intenção de te provocar, principalmente quando uso certa blusa preta sustentada apenas por um cadarço. Daí, faço uso de tua imaginação e penso, que se puxas o laço, tudo vai ficar à mostra. E eu serei nada mais do que uma posta de mulher à tua disposição. (Vai ver que neles está nosso traço de união. Um traço atávico, pois não foi de algum seio que retiramos nossa primeira alimentação?)
Vá além da fantasia e me desfrute. Você me quer e eu te preciso.
Se você aqui não concordar, te demonstrarei em detalhes meu propósito, Me despojarei de qualquer roupa, coisa como jogar fora a embalagem que envolve a prenda para libertar a alegria de quem a recebe. É importante livrar-se de todas as prisões seculares que limitam. Aposentarei o antigo espartilho ou o não tão antigo sutiã, engrenagens que me apertam as carnes e me fazem tensa. Eu não estou conseguindo sozinha desatar tantas presilhas, peço que me ajudes. E desde que me ajudes, estarei quase nua. (Contra nós, são obstáculos essas peças que tentam nos separar na hora do abraço.)
Veja meus seios descobertos, desprotegidos, inteiramente à mercê de tua maldade ou de tua benevolência. É tudo teu.
Será então um momento perfeito aquele em que tu que me desabotoavas ainda há pouco, sentado na beirada da cama me rodeares a cintura, encaixando teu rosto de perfil, exatamente no hiato que existe entre, acolá. Num acanhado gesto, meio encabulada, dissimulando, vou me movimentar fingindo descompromisso, de forma a encostar tua boca em um dos meus mamilos. (Entretanto, minha intenção é te amamentar. Te sentir dependente, transformado em menino.)
Me suga, amor, enquanto solto um gemido baixinho. Modela com teus lábios meu prazer. Pode mordiscar. Não com muita força.
Seios são iguais as frutas de casca transparente e frágil. Quem com eles quiser brincar tem de ter muito refinamento e exatidão. Mesmo quando o desejo se confundir com a impaciência, é preciso cuidado. Certo dia lhes fizeste uns carinhos mais enérgicos, eu me lembro. Fiquei com os olhos cheios de água. Não era dengo nem exagero, não. É que eu fico sempre vulnerável quando está vindo minha menstruação. (Componente essencial da metafísica dos seios.)
Vamos deitar. Uma vez deitados, esconde teu nariz neles, quase te provocando um asfixiamento, ou um afogamento, já que pra ti eles se parecem com o mar.
Além de ser o mar, eles podem ser duas luas bêbadas e desorganizadas que oscilam quando faço movimentos tentando me enroscar em ti só para ganhar a sensação gostosa de teu peito cabeludo se roçando no meu. Gostas de te divertir com essas luas particularmente aos domingos pela manhã, quando acordamos. E eu nada mais quero das manhãs de domingo que eu tiver na vida a não ser tal ondulado, tal preguiça, tal contato. (Área na qual teu talento jamais será esquecido. Até no tempo em que eu não estiver mais contigo.)
Estou prontinha para amar, porém não tenho pressa. Deixa primeiro eu terminar de falar: quero propor um jogo diferente que retrate nossa imagem, nossa semelhança.
Foi por isso e por tanto que essa mulherzinha se permitiu inventar um jogo novo para te dar de presente. Não tenha receio, é um jogo bonito. No amor, todo ludismo é permitido. Vem cá. Deixa-me segurar teu sexo como se quisesse guardá-lo no peito. Devolvo a ti todas as folias que fizeste em mim. Esfregue-me, portanto. Do atrito de nossas peles, quem sabe eu consiga colher a intensidade do teu brilho num instante e o produto espalhar pelo meu pescoço, face, barriga, axila, por várias partes do meu todo.
No amasso demorado do fim, teu esperma secando vai se encarregar de nos unir suavemente, nos deixar misturados. Que loucura que é ficar assim: ser dois. (Porque em princípio a gente é solidão; junto fazemos a exceção).
ASSIS — Agora, Joyce, fale um pouco de você e da realidade que vive a mulher na nossa sociedade. Houve evolução? Que futuro você prevê?
JOYCE — Estou completamente comprometida em escrever minha biografia. Isso quer dizer que, devido a tal escolha, me obrigo a ser mais passado do que presente e muito menos futuro.
Vou escrevendo com a maior isenção, como sempre fiz com todos os meus romances. O objeto é inspirar quem vier em seguida. Já estou em pleno emprego vendo o passado o presente e o futuro se desenrolarem na minha frente como se fosse um filme colorido e emocionante, mas não é nada disso. Aqui está a mesma Joyce.