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sábado, 29 de janeiro de 2022

SÃO PAULO EM PROSA, VERSO E MÚSICA (5)

Aquela redação…
(Extraído do livro São Paulo de meus amores, de Afonso Schmidt [1954]).

O aniversário da “Folha da Noite” faz-me lembrar muita coisa, pois tive o prazer de trabalhar com Olival Costa, Mariano Costa, Pedro Cunha e Antônio dos Santos Figueiredo. 

Isso foi no fim de 1922, se a memória não falha. 

A redação ainda estava instalada nos altos do Teatro Boa-Vista, à rua do mesmo nome, esquina da Ladeira Porto Geral. No rés-do-chão, havia uma casa de máquinas suíças. Dínamos e motores de diversos tipos estavam sempre expostos no salão aberto; quem passava na rua podia tocar-lhes com a mão. 

Entrávamos no jornal pela porta do teatro. Transpúnhamos um corredor enfeitado de quadros, cartazes e anúncios das peças em cena, ou prometidas para breve. Ao lado da bilheteria, gaiola de arame com guichê, embocávamos por uma escada escura, íamos desembocar no corredor de cima, ladeado de escritórios. Depois, caminhávamos para o lado da Rua Boa-Vista e virávamos à direita. Ali, o jornal mantinha duas salas: a da gerência, com a sua meia-porta envernizada, e a da redação, sempre escancarada e acolhedora. 

No fundo, à direita, diante de uma mesa grande, atulhada de papéis, sentava Olival Costa. Ele andava sempre de preto e já tinha cabelos grisalhos. Era de alegria comunicativa. Gabava- -se de cultivar os maus trocadilhos, porque os bons, geralmente, não tinham graça nenhuma. As outras mesas da redação eram menores, de desenho estranho, com suas pernas abertas, escarranchadas… 

Olival Costa admitia na redação todo bicho-careta que quisesse trabalhar. Poucos ficavam, muitos desistiam. Havia excesso de redatores. Por isso, sentavam dois ou mais em cada mesa. Ainda lembro de alguns deles: Taciano de Oliveira e Miranda Rosa, na parte esportiva. Correia Júnior, na Sociedade. Aristides Ávila redigia serenos comentários. Paulo Gonçalves que, escrevendo a parte artística, vivia cercado de poetas, pintores e comediantes. Lá iam com frequência Moacir Pisa, Silvio Floreal, Cleomenes Campos, Alberto Seabra, Belmonte, Cucê, Bernardino Pereira, Gino Bruno, Manzo, tantos outros. Foi lá que conheci Olegário Mariano, numa de suas viagens a São Paulo. E Benjamim Costallat. Gastão Barroso fazia a secção teatral. Eurico Branco Ribeiro, então estudante, especializara-se em reportagens sensacionais. E Filemon Assunção, Sabóia, João Silva, Carlos Monteiro Brisola, Luís Pisa Sobrinho. Mas ainda havia outros, muitos outros, de quem neste momento não consigo lembrar nomes.

Antônio dos Santos Figueiredo escrevia a abertura de futebol − uma nota que fez época − e os sueltos políticos, muito em moda na nossa imprensa. Pedro Cunha era o homem dos sete instrumentos: desunhava artigos, desempenhava funções de gerente e, na rua, dava pulos para alcançar uma publicidade que − naquele tempo − podia ser chamada de arisca. 

Eu estava num canto, perto da janela, por causa da claridade. Fazia alguma coisa: reportagens, artiguetes assinados etc. Mas o forte era a secção de queixas. Como o jornal ainda estivesse nos cueiros, com escassa circulação (escassa, porém, deveria duplicar de ano para ano), eu mesmo, para manter aquela coluna das lamentações, arredava cartas de leitores, protestando contra isto ou aquilo. Então, eu arregaçava a manga e entrava pela política, pela questão social, pela literatura… 

Lembro-me de que certo troglodita manifestou desagrado por essa secção do jornal:

— Vocês já repararam que só gente suspeita escreve para a coluna de queixas? Essa secção está-se tornando perniciosa! 

Mas, apesar de tudo, foi naquela “Folha da Noite”, de 1922 a 1924, cujo cabeçalho ainda se apresentava em caracteres manuscritos, que eu me fiz notado em outras redações da Capital. Certo dia, chegou-me aos ouvidos aquela proposta: trabalhar num matutino, ganhando 450$000 mensais. E, na manhã de 5 de julho de 1924, ao acordar-me, comuniquei aos meus botões: 

— Hoje, sim, vou mudar de vida! 

E mudei sim, mas antes não mudasse. Quando cheguei à Praça Antônio Prado, notei um diz-que-diz-que, um corre-corre. Logo depois, a cidade estava revolucionada. Pipocar de tiros no bairro da Luz, troar de canhões no bairro de Pinheiros. Boatos e mais boatos. Sustos e correrias. Um pandemônio. Hoje lembro, com saudade, aqueles primeiros anos da “Folha da Noite”. Foi uma aventura, uma façanha esportiva em que, de alto a baixo, todos deram, alegremente, o melhor do seu esforço. Bons tempos aqueles! Ganhava-se pouco mas, em compensação, trabalhava-se prá-xuxu.

As enchentes (1902 ?)
(Extraído do livro São Paulo naquele tempo − 1895-1915, de Jorge Americano [1957])

Chovia desesperadamente desde outubro. Quando as crianças chegavam da escola tiveram os sapatos e as meias encharcadas, faziam-lhes fricções nos pés com toalhas felpudas e calçavam outras meias e sapatos. 

Enchiam-nos os sapatos molhados com pedaços de jornal. Levados à estufa do fogão de lenha, depois do jantar, na manhã seguinte estavam secos. 

Tudo se repetiu nos dias seguintes. 

Quem passasse pelo Viaduto durante alguma “estiada”, veria o córrego Anhangabaú alagando o vale. As verduras da Chácara da Baronesa de Itapetininga tinham desaparecido n’água. 

Os jornais noticiaram as enchentes. A Várzea do Carmo (Parque Pedro II), os bairros marginais do Tamanduateí (Mooca, Cambuci, Ponte Pequena) foram invadidos pela água. As zonas da atual Vila Maria, do Carandiru e do atual Campo de Marte estavam inundadas. Na Ponte Grande (a primitiva Ponte Grande), a cujo lado estavam a chácara e observatório do General Couto de Magalhães, as águas alcançavam três palmos abaixo do piso. 

O corpo de bombeiros socorria, em canoas, os moradores desses bairros, para o edifício da Imigração, na Rua Visconde de Parnaíba, e para a Santa Casa de Misericórdia, na rua Cesário Motta. 

Uma tarde, em fins de dezembro, apareceu um sol coado. Na manhã seguinte, um pouco mais fria, o sol brilhou. 

À tarde tomamos na esquina da Rua dos Andradas o bonde a tração animal da Rua Vitória, que passou pela estação da Luz, recém-construída, cuja imensa torre podia ser vista de qualquer ponto da cidade, e entramos pela Rua Florêncio de Abreu. No lugar onde há hoje uma ponte sobre a Rua Anhangabaú, atrelaram mais um burro ao bonde, para facilitar a subida da ladeira. Ao chegar ao Largo de São Bento soltaram o burro, que desceu a ladeira sozinho. Daí tomamos o da Ponte Grande, no qual já havia diversas famílias, e pelas seis horas víamos passar as águas do Tietê. Com a ponta da bengala podiam-se deter destroços das plantas que flutuavam. 

Nos três dias seguintes fez calor forte. As águas baixaram. 

Recomeçaram as chuvas. A enchente subiu e continuou até março. 

Durante uma semana cessaram as comunicações ferroviárias para Santos, porque estava inundado o leito da estrada, na Várzea da Mooca.

Uma luz, uma jornada
(Segundo capítulo do livro A luz de Luiz, de Oswaldo Faustino, sobre o poeta e jornalista abolicionista e republicano Luiz Gama [2015])

Afinal, que Luz é essa que, noite após noite, atravessa os portões de ferro do Cemitério da Consolação
e desliza pelas ruas, travessas, becos e vielas? 
Luz a percorrer, um a um, os locais onde plantou sua história, hoje amargando a sensação de que, por ali, nada floresceu. 
Luz que busca reconhecer São Paulo, mas sua São Paulo já não há. Não aquela que tão profundamente conheceu e que também não a reconhece. Duas estranhas, frente a frente. 
Também, pudera, a cidade vestiu de asfalto todas as pedras dos calçamentos, nos quais se imprimiram as marcas profundas de suas pegadas de felino, a urrar contra a escravidão e o contra o império... 
São Paulo de quatrocentões escravocratas, cidade oligarca despudorada de ostentar seu baronato cafeeiro. São Paulo de orgulho bandeirante, voraz expansionista, caçadora de esmeraldas e de indígenas, destruidora de limites territoriais e de quilombos. 
São Paulo de ontem? Não, de hoje, de sempre...” (*) 

Seguindo a luz, que desliza célere, os jovens, em seus equipamentos de transporte, esporte e diversão, bicicletas, skates e patinetes, não conseguem alcançá-la. Há muito deixaram o medo para trás. Agora, a curiosidade é a fonte maior de energia que os mantém determinados a segui-la, através das vias tomadas por ela. 

A vantagem é que, mantendo-se num determinado raio de distância do epicentro do círculo formado por sua luminosidade, não são sugados pela escuridão do blecaute que tomou conta da cidade de São Paulo.

O mais estranho é que sons de tambores, muitos tambores, e de outros instrumentos de percussão, com sonoridades as mais variadas, das mais agudas às profundamente graves, fazem trilha sonora para essa jornada, no mínimo, insólita. Sons que ressoam em forma de palavras, na mente de cada um deles, formando um discurso que se inicia com: “Afinal, que Luz é essa que, noite após noite, atravessa os portões de ferro do Cemitério da Consolação...” e que se encerra com: “São Paulo de ontem? Não, de hoje, de sempre...”. E que, continuamente, retorna ao começo. 

De repente, no Largo São Francisco, bem em frente às arcadas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a luz estanca. O grupo para bem próximo dela, junto ao halo luminoso avermelhado, que toma boa parte daquele logradouro público. 

Agora, no centro da luz, já se consegue vislumbrar um vulto de homem. Um homem imponente, solene, de cabeça erguida e de queixo barbudo elevado. 

— Onde foi que já vi este homem? —, indaga-se Naomi. Quanto mais o observa, mais tem certeza de já tê-lo visto. A imagem vai adquirindo nitidez e, na mente da garota negra, vai se associando ao aroma de flores. 

— Lembrei! Foi no dia em que fui comprar rosas. Era aniversário de minha mãe. 

Todos olham assustados para ela. 

— Eu o reconheço é aquele busto do Largo do Arouche, pertinho do Mercado de Flores. Olhem! Não é o mesmo homem? A mesma altivez? —, questiona a menina. 

— Reparando bem se parece com ele sim —, concorda Shizuka, a amiga nissei inseparável, que estava em sua companhia na compra das rosas. 

— Você está falando do busto de Luiz Gama, Naomi? —, pergunta Pedro, o professor. Ao ouvir o nome, Luiz Gama, o homem se volta para o grupo e, pela primeira vez, parece perceber que não está só...

(*) Texto extraído do catálogo da exposição Memorial Luiz Gama – Caixa Cultural/São Paulo, 2014 –, do mesmo autor. Ouça!

Na casa do Assis

No dia 30 de dezembro de 2021, Assis reuniu em sua casa para um bate-papo sobre São Paulo quatro dos depoentes desta edição: Bill Hinchberger, Carlos Silvio Ramos, Darlan Zurc e Moacir Assunção. Carlos gravou o encontro e o postou no canal do seu programa Paiaiá na Conectados no YouTube.

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