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segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

O BRASIL GANHA MAIS UM ENFERMEIRO

Seu Claudio e Dona Silvana estão todo anchos com a profissão escolhida pelo filho varão Wallace Silva: enfermagem.
Wallace é um jovem de 27 anos que nasceu com o sentimento de paz e dom de ajudar o próximo. Isso o leva pelos caminhos da medicina, da enfermagem, da solidariedade humana...
Eu conheci Wallace, que virou meu mais novo amigo de infância, há uns dois anos. Por aí. Chegou-me através de pessoas que trabalham com ele, aqui perto num posto da UBS.
Por esse tempo eu já havia perdido o brilho dos meus olhos e andava meio borocoxô. E ainda ando. Fiz até cirurgia de câncer e escapei, como se vê.
A gente dá muita risada, quando ele e a turma dele chegam aqui, em casa.
A turma do Wallace é formada por uma dezena de pessoas que escolheram dar um pouco de si a quem anda por aí sofrendo e tal.
Entre as pessoas do grupo de Wallace estão a doutora Daniele, as enfermeiras Grazi e Alessandra...
Aproveito aqui para mandar meu abraço à psicóloga Sara e ao psiquiatra Claudio.
Ah! Sim: Os pais de Wallace também são pais da menina Joyce.
O mundo, é bom que se diga, comemora o 12 de maio como o Dia Mundial da Enfermagem e do Enfermeiro, em homenagem à norte-americana Florence Nightingale (1820-1910). No Brasil há 2,7 milhões de enfermeiros, de acordo com o Conselho Federal de Enfermagem, Cofen.
E para fechar, recomendo a beleza de conto que é O Enfermeiro, do gigantesco escritor Machado de Assis:

Parece-lhe então que o que se deu comigo em 1860, pode entrar numa página
de livro? Vá que seja, com a condição única de que não há de divulgar nada antes
da minha morte. Não esperará muito, pode ser que oito dias, se não for menos;
estou desenganado.
Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras coisas
interessantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel;
o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina de madrugada. Não tarda o
sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida. Adeus, meu caro
senhor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e não
maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a rosas. Pediu-me um documento
humano, ei-lo aqui. Não me peça também o império do Grão-Mogol, nem a
fotografia dos Macabeus; peça, porém, os meus sapatos de defunto e não os dou a
ninguém mais.
Já sabe que foi em 1860. No ano anterior, ali pelo mês de agosto, tendo eu
quarenta e dois anos, fiz-me teólogo — quero dizer, copiava os estudos de teologia
de um padre de Niterói, antigo companheiro de colégio, que assim me dava,
delicadamente, casa, cama e mesa. Naquele mês de agosto de 1859, recebeu ele
uma carta de um vigário de certa vila do interior, perguntando se conhecia pessoa
entendida, discreta e paciente, que quisesse ir servir de enfermeiro ao coronel
Felisberto, mediante um bom ordenado. O padre falou-me, aceitei com ambas as
mãos, estava já enfarado de copiar citações latinas e fórmulas eclesiásticas. Vim à
corte despedir-me de um irmão, e segui para a vila.
Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem insuportável,
estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais
enfermeiros que remédios. A dois deles quebrou a cara. Respondi que não tinha
medo de gente sã, menos ainda de doentes; e depois de entender-me com o vigário,
que me confirmou as notícias recebidas, e me recomendou mansidão e caridade,
segui para a residência do coronel.
Achei-o na varanda da casa estirado numa cadeira, bufando muito. Não me
recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim dois olhos de gato que
observa; depois, uma espécie de riso maligno alumiou-lhe as feições, que eram
duras. Afinal, disse-me que nenhum dos enfermeiros que tivera, prestava para
nada, dormiam muito, eram respondões e andavam ao faro das escravas; dois eram
até gatunos!
— Você é gatuno?
— Não, senhor.
Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse-lho e ele fez um gesto de espanto.
Colombo? Não, senhor: Procópio José Gomes Valongo. Valongo? achou que não era
nome de gente, e propôs chamar-me tão-somente Procópio, ao que respondi que
estaria pelo que fosse de seu agrado. Conto-lhe esta particularidade, não só porque
me parece pintá-lo bem, como porque a minha resposta deu de mim a melhor ideia
ao coronel. Ele mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais
simpático dos enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de
sete dias.
No oitavo dia, entrei na vida dos meus predecessores, uma vida de cão, não
dormir, não pensar em mais nada, recolher injúrias, e, às vezes, rir delas, com um
ar de resignação e conformidade; reparei que era um modo de lhe fazer corte.
Tudo impertinências de moléstia e do temperamento. A moléstia era um rosário
delas, padecia de aneurisma, de reumatismo e de três ou quatro afecções menores.
Tinha perto de sessenta anos, e desde os cinco toda a gente lhe fazia a vontade. Se
fosse só rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se com a dor e a
humilhação dos outros. No fim de três meses estava farto de o aturar; determinei
vir embora; só esperei ocasião.
Não tardou a ocasião. Um dia, como lhe não desse a tempo uma fomentação,
pegou da bengala e atirou-me dois ou três golpes. Não era preciso mais; despedime imediatamente, e fui aprontar a mala. Ele foi ter comigo, ao quarto, pediu-me
que ficasse, que não valia a pena zangar por uma rabugice de velho. Instou tanto
que fiquei.
— Estou na dependura, Procópio, dizia-me ele à noite; não posso viver muito
tempo. Estou aqui, estou na cova. Você há de ir ao meu enterro, Procópio; não o
dispenso por nada. Há de ir, há de rezar ao pé da minha sepultura. Se não for,
acrescentou rindo, eu voltarei de noite para lhe puxar as pernas. Você crê em almas
de outro mundo, Procópio?
— Qual o quê!
— E por que é que não há de crer, seu burro? redarguiu vivamente,
arregalando os olhos.
Eram assim as pazes; imagine a guerra. Coibiu-se das bengaladas; mas as
injúrias ficaram as mesmas, se não piores. Eu, com o tempo, fui calejando, e não
dava mais por nada; era burro, camelo, pedaço d'asno, idiota, moleirão, era tudo.
Nem, ao menos, havia mais gente que recolhesse uma parte desses nomes. Não
tinha parentes; tinha um sobrinho que morreu tísico, em fins de maio ou princípios
de julho, em Minas. Os amigos iam por lá às vezes aprová-lo, aplaudi-lo, e nada
mais; cinco, dez minutos de visita. Restava eu; era eu sozinho para um dicionário
inteiro. Mais de uma vez resolvi sair; mas, instado pelo vigário, ia ficando.
Não só as relações foram-se tornando melindrosas, mas eu estava ansioso por
tornar à corte. Aos quarenta e dois anos não é que havia de acostumar-me à
reclusão constante, ao pé de um doente bravio, no interior. Para avaliar o meu
isolamento, basta saber que eu nem lia os jornais; salvo alguma notícia mais
importante que levavam ao coronel, eu nada sabia do resto do mundo. Entendi,
portanto, voltar para a corte, na primeira ocasião, ainda que tivesse de brigar com
o vigário. Bom é dizer (visto que faço uma confissão geral) que, nada gastando e
tendo guardado integralmente os ordenados, estava ansioso por vir dissipá-los
aqui.
Era provável que a ocasião aparecesse. O coronel estava pior, fez testamento,
descompondo o tabelião, quase tanto como a mim. O trato era mais duro, os breves
lapsos de sossego e brandura faziam-se raros. Já por esse tempo tinha eu perdido a
escassa dose de piedade que me fazia esquecer os excessos do doente; trazia
dentro de mim um fermento de ódio e aversão. No princípio de agosto resolvi
definitivamente sair; o vigário e o médico, aceitando as razões, pediram-me que
ficasse algum tempo mais. Concedi-lhes um mês; no fim de um mês viria embora,
qualquer que fosse o estado do doente. O vigário tratou de procurar-me substituto.
Vai ver o que aconteceu. Na noite de vinte e quatro de agosto, o coronel teve
um acesso de raiva, atropelou-me, disse-me muito nome cru, ameaçou-me de um
tiro, e acabou atirando-me um prato de mingau, que achou frio; o prato foi cair na
parede, onde se fez em pedaços.
— Hás de pagá-lo, ladrão! bradou ele.
Resmungou ainda muito tempo. Às onze horas passou pelo sono. Enquanto ele
dormia, saquei um livro do bolso, um velho romance de d'Arlincourt, traduzido,
que lá achei, e pus-me a lê-lo, no mesmo quarto, a pequena distância da cama; tinha
de acordá-lo à meia-noite para lhe dar o remédio. Ou fosse de cansaço, ou do livro,
antes de chegar ao fim da segunda página adormeci também. Acordei aos gritos do
coronel, e levantei-me estremunhado. Ele, que parecia delirar, continuou nos
mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e arremessá-la contra mim.
Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda, e tal foi a dor
que não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos, e
esganei-o.
Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito; mas
ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá-lo à vida, era tarde;
arrebentara o aneurisma, e o coronel morreu. Passei à sala contígua, e durante
duas horas não ousei voltar ao quarto. Não posso mesmo dizer tudo o que passei,
durante esse tempo. Era um atordoamento, um delírio vago e estúpido. Parecia-me
que as paredes tinham vultos; escutava umas vozes surdas. Os gritos da vítima,
antes da luta e durante a luta, continuavam a repercutir dentro de mim, e o ar, para
onde quer que me voltasse, aparecia recortado de convulsões. Não creia que esteja
fazendo imagens nem estilo; digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes que
me bradavam: assassino! assassino!
Tudo o mais estava calado. O mesmo som do relógio, lento, igual e seco,
sublinhava o silêncio e a solidão. Colava a orelha à porta do quarto na esperança de
ouvir um gemido, uma palavra, uma injúria, qualquer coisa que significasse a vida,
e me restituísse a paz à consciência. Estaria pronto a apanhar das mãos do coronel,
dez, vinte, cem vezes. Mas nada, nada; tudo calado. Voltava a andar à toa, na sala,
sentava-me, punha as mãos na cabeça; arrependia-me de ter vindo. — “Maldita a
hora em que aceitei semelhante coisa!” exclamava. E descompunha o padre de
Niterói, o médico, o vigário, os que me arranjaram um lugar, e os que me pediram
para ficar mais algum tempo. Agarrava-me à cumplicidade dos outros homens.
Como o silêncio acabasse por aterrar-me, abri uma das janelas, para escutar o
som do vento, se ventasse. Não ventava. A noite ia tranquila, as estrelas
fulguravam, com a indiferença de pessoas que tiram o chapéu a um enterro que
passa, e continuam a falar de outra coisa. Encostei-me ali por algum tempo, fitando
a noite, deixando-me ir a uma recapitulação da vida, a ver se descansava da dor
presente. Só então posso dizer que pensei claramente no castigo. Achei-me com um
crime às costas e vi a punição certa. Aqui o temor complicou o remorso. Senti que
os cabelos me ficavam de pé. Minutos depois, vi três ou quatro vultos de pessoas,
no terreiro, espiando, com um ar de emboscada; recuei, os vultos esvaíram-se no
ar; era uma alucinação.
Antes do alvorecer curei a contusão da face. Só então ousei voltar ao quarto.
Recuei duas vezes, mas era preciso e entrei; ainda assim, não cheguei logo à cama.
Tremiam-me as pernas, o coração batia-me; cheguei a pensar na fuga; mas era
confessar o crime, e, ao contrário, urgia fazer desaparecer os vestígios dele. Fui até
a cama; vi o cadáver, com os olhos arregalados e a boca aberta, como deixando
passar a eterna palavra dos séculos: “Caim, que fizeste de teu irmão?” Vi no
pescoço o sinal das minhas unhas, abotoei alto a camisa e cheguei ao queixo a
ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-lhe que o coronel
amanhecera morto; mandei recado ao vigário e ao médico.
A primeira ideia foi retirar-me logo cedo, a pretexto de ter meu irmão doente,
e, na verdade, recebera carta dele, alguns dias antes, dizendo-me que se sentia mal.
Mas adverti que a retirada imediata poderia fazer despertar suspeitas, e fiquei. Eu
mesmo amortalhei o cadáver com o auxílio de um preto velho e míope. Não saí da
sala mortuária; tinha medo de que descobrissem alguma coisa. Queria ver no rosto
dos outros se desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. Tudo me dava
impaciências: os passos de ladrão com que entravam na sala, os cochichos, as
cerimônias e as rezas do vigário. Vindo a hora, fechei o caixão, com as mãos
trêmulas, tão trêmulas que uma pessoa, que reparou nelas, disse a outra com
piedade:
— Coitado do Procópio! apesar do que padeceu, está muito sentido.
Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado. Saímos à rua. A
passagem da meia-escuridão da casa para a claridade da rua deu-me grande abalo;
receei que fosse então impossível ocultar o crime. Meti os olhos no chão, e fui
andando. Quando tudo acabou, respirei. Estava em paz com os homens. Não o
estava com a consciência, e as primeiras noites foram naturalmente de
desassossego e aflição. Não é preciso dizer que vim logo para o Rio de Janeiro, nem
que vivi aqui aterrado, embora longe do crime; não ria, falava pouco, mal comia,
tinha alucinações, pesadelos...
— Deixa lá o outro que morreu, diziam-me. Não é caso para tanta melancolia.
E eu aproveitava a ilusão, fazendo muitos elogios ao morto, chamando-lhe boa
criatura, impertinente, é verdade, mas um coração de ouro. E, elogiando,
convencia-me também, ao menos por alguns instantes. Outro fenômeno
interessante, e que talvez lhe possa aproveitar, é que, não sendo religioso, mandei
dizer uma missa pelo eterno descanso do coronel, na igreja do Sacramento. Não fiz
convites, não disse nada a ninguém; fui ouvi-la, sozinho, e estive de joelhos todo o
tempo, persignando-me a miúdo. Dobrei a espórtula do padre, e distribuí esmolas à
porta, tudo por intenção do finado. Não queria embair os homens; a prova é que fui
só. Para completar este ponto, acrescentarei que nunca aludia ao coronel, que não
dissesse: “Deus lhe fale n'alma!” E contava dele algumas anedotas alegres,
rompantes engraçados...
Sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, recebi a carta do vigário, que lhe
mostrei, dizendo-me que fora achado o testamento do coronel, e que eu era o
herdeiro universal. Imagine o meu pasmo. Pareceu-me que lia mal, fui a meu irmão,
fui aos amigos; todos leram a mesma coisa. Estava escrito; era eu o herdeiro
universal do coronel. Cheguei a supor que fosse uma cilada; mas adverti logo que
havia outros meios de capturar-me, se o crime estivesse descoberto. Demais, eu
conhecia a probidade do vigário, que não se prestaria a ser instrumento. Reli a
carta, cinco, dez, muitas vezes; lá estava a notícia.
— Quanto tinha ele? perguntava-me meu irmão.
— Não sei, mas era rico.
— Realmente, provou que era teu amigo.
— Era... Era...
Assim, por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham parar às minhas
mãos. Cogitei em recusar a herança. Parecia-me odioso receber um vintém do tal
espólio; era pior do que fazer-me esbirro alugado. Pensei nisso três dias, e
esbarrava sempre na consideração de que a recusa podia fazer desconfiar alguma
coisa. No fim dos três dias, assentei num meio-termo; receberia a herança e dá-laia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também o modo de
resgatar o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas
saldas.
Preparei-me e segui para a vila. Em caminho, à proporção que me ia
aproximando, recordava o triste sucesso; as cercanias da vila tinham um aspecto
de tragédia, e a sombra do coronel parecia-me surgir de cada lado. A imaginação ia
reproduzindo as palavras, os gestos, toda a noite horrenda do crime...
Crime ou luta? Realmente, foi uma luta em que eu, atacado, defendi-me, e na
defesa... Foi uma luta desgraçada, uma fatalidade. Fixei-me nessa ideia. E
balanceava os agravos, punha no ativo as pancadas, as injúrias... Não era culpa do
coronel, bem o sabia, era da moléstia, que o tornava assim rabugento e até mau...
Mas eu perdoava tudo, tudo... O pior foi a fatalidade daquela noite... Considerei
também que o coronel não podia viver muito mais; estava por pouco; ele mesmo o
sentia e dizia. Viveria quanto? Duas semanas, ou uma; pode ser até que menos. Já
não era vida, era um molambo de vida, se isto mesmo se podia chamar ao padecer
contínuo do pobre homem... E quem sabe mesmo se a luta e a morte não foram
apenas coincidentes? Podia ser, era até o mais provável; não foi outra coisa. Fixeime também nessa ideia...
Perto da vila apertou-se-me o coração, e quis recuar, mas dominei-me e fui.
Receberam-me com parabéns. O vigário disse-me as disposições do testamento, os
legados pios, e de caminho ia louvando a mansidão cristã e o zelo com que eu
servira ao coronel, que, apesar de áspero e duro, soube ser grato.
— Sem dúvida, dizia eu olhando para outra parte.
Estava atordoado. Toda a gente me elogiava a dedicação e a paciência. As
primeiras necessidades do inventário detiveram-me algum tempo na vila. Constituí
advogado; as coisas correram placidamente. Durante esse tempo, falava muita vez
do coronel. Vinham contar-me coisas dele, mas sem a moderação do padre; eu
defendia-o, apontava algumas virtudes, era austero...
— Qual austero! Já morreu, acabou; mas era o diabo.
E referiam-me casos duros, ações perversas, algumas extraordinárias. Quer
que lhe diga? Eu, a princípio, ia ouvindo cheio de curiosidade; depois, entrou-me
no coração um singular prazer, que eu sinceramente buscava expelir. E defendia o
coronel, explicava-o, atribuía alguma coisa às rivalidades locais; confessava, sim,
que era um pouco violento... Um pouco? Era uma cobra assanhada, interrompia-me
o barbeiro; e todos, o coletor, o boticário, o escrivão, todos diziam a mesma coisa e
vinham outras anedotas, vinha toda a vida do defunto. Os velhos lembravam-se das
crueldades dele, em menino. E o prazer íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de
mim, espécie de tênia moral, que por mais que a arrancasse aos pedaços,
recompunha-se logo e ia ficando.
As obrigações do inventário distraíram-me; e por outro lado a opinião da vila
era tão contrária ao coronel, que a vista dos lugares foi perdendo para mim a feição
tenebrosa que a princípio achei neles. Entrando na posse da herança, converti-a
em títulos e dinheiro. Eram então passados muitos meses, e a ideia de distribuí-la
toda em esmolas e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei
mesmo que era afetação. Restringi o plano primitivo; distribuí alguma coisa aos
pobres, dei à matriz da vila uns paramentos novos, fiz uma esmola à Santa Casa da
Misericórdia, etc.: ao todo trinta e dois contos. Mandei também levantar um túmulo
ao coronel, todo de mármore, obra de um napolitano, que aqui esteve até 1866, e
foi morrer, creio eu, no Paraguai.
Os anos foram andando, a memória tomou-se cinzenta e desmaiada. Penso às
vezes no coronel, mas sem os terrores dos primeiros dias. Todos os médicos a
quem contei as moléstias dele, foram acordes em que a morte era certa, e só se
admiravam de ter resistido tanto tempo. Pode ser que eu, involuntariamente,
exagerasse a descrição que então lhes fiz; mas a verdade é que ele devia morrer,
ainda que não fosse aquela fatalidade...
Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos valem alguma
coisa, pague-me também com um túmulo de mármore, ao qual dará por epitáfio
esta emenda que faço aqui ao divino Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os
que possuem, porque eles serão consolados.

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