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sexta-feira, 16 de abril de 2021

PANDEMIA COMO ROMANCE (1)

É uma história forte, tocante.
É uma história que foi não foi, mexe com o mundo. Com a humanidade. É cíclica.
A história que acabo "ler" começa num dia 16 de abril. Não tem ano, mas tem personagens muito interessantes: Rieux, médico; Rambert, jornalista; Paneloux, padre...
A história tem por título A Peste. É um romance (1947) do escritor Albert Camus (1913-60).
Começa numa cidade fictícia da Argélia denominada Orã com população de 200 mil habitantes.
Naquele 16 de abril, o doutor Rieux tropeça ocasionalmente num rato morto. Não liga. 
E a história vai começando, ratos mortos se multiplicando nas casas, vielas, ruas, corredores. E de repente, seres humanos morrendo de modo como nunca antes ocorrera naquele lugar.
É uma história incrível, que ora se repete na rua.
A Peste, de Camus, é atualíssima de todos os ângulos.
Amanhã contarei melhor essa história.

BRASIL DE GENTE GRANDE

O Brasil, país de dimensões continentais, é rico em gente, música, ouro, prata e tudo mais.
Foi aqui, no nosso País, que nasceram Chiquinha Gonzaga, Carlos Gomes, Benedito Lacerda, Pixinguinha, Chico Alves, Valdir Azevedo, Luiz Gonzaga, Tom Jobim, Cartola, Dalva de Oliveira, Elis Regina...
Todos os dias sou surpreendido por artistas apresentando suas obras como podem. Pela internet, principalmente.
Vocês já ouviram falar de Alexandre Neves e Adriana Gava?
Alexandre e Adriana são do Ceará, terra de Juvenal Galeno (1838-1931).
Vocês já ouviram falar da cantora, compositora e instrumentista Jordanna?
Jordanna é uma artista nascida na terra de Ary Barroso (1903-64) e das gêmeas Célia&Celma. Quer dizer, Ubá, MG.
De Alexandre e Adriana só tomei conhecimento agora, quando me enviaram uma belíssima adaptação da lenda amazonense O Boto (abaixo), que mora no rio e do rio sai na forma de homem pra conquistar mulher. É o besta!
A adaptação musical pra essa lenda foi feita por Vidal França e Márcia Aciolly.
Um dos primeiros CDs de Vidal traz um encarte com a minha assinatura. O cabra é bom.
Márcia Aciolly, jornalista, nasceu lá pelas bandas das Alagoa. Finíssima.
Lembro-me de uma vez que Márcia me "salvou". 
Foi numa noite em que eu apresentava São Paulo Capital Nordeste (rádio Capital AM 1040) e, de repente, surgiu-nos à frente o jornalista francês Gilles Lapouge (1923-2020). Foi sem avisar, de surpresa para me entrevistar para a radio France. E a Márcia, que domina a língua de Baudelaire, ajeitou tudo e tudo deu certo. E lá fui eu pra radio France, traduzido por Márcia. 
Pois é, este é o nosso país.

 
OUÇA TAMBÉM:

J&CIA ABORDA O TEMA "DEFICIENTES"

Jornalistas portadores de deficiência física, visual etc foram tema da edição especial do Newsletter Jornalistas&Cia, edição do dia 8 de abril de 2021, nº 1302.
"Foi uma edição excepcional, que tem rendido muitos comentários e sugestões", segundo seu fundador o jornalista Eduardo Ribeiro.
A edição ocupou mais de 60 páginas.
É histórica, pois até hoje órgão nenhum da Imprensa brasileira tratou do assunto.
Leia entrevista que abre a edição especial, cuja a íntegra pode ser conferida através do link: J&Cia: DIA DO JORNALISTA

“Fiquei cego só dos olhos”

A seguir, a entrevista que Assis Ângelo deu a J&Cia:
 

Jornalistas&Cia – Gostaríamos que você contasse primeiro a sua história, como ficou cego e como enxerga – apesar da cegueira – esse processo todo que envolve a deficiência, não só nos jornalistas, mas de um país inteiro que tem essas necessidades.

Assis Ângelo – Antes de mais nada, devo dizer – e digo com total convicção – que hoje vivemos numa sociedade cega, ou melhor, de cegos. Cegos, pior ainda, que veem. Ou quase veem ou fazem de conta que não veem. É terrível. Essa sociedade cega a que me refiro não vê o cego como cego; se recusa. É por preconceito, por medo, receio, é por tudo o que não presta. 

Eu perdi minha visão, recebi o laudo técnico do Hospital das Clínicas no dia 17 de fevereiro de 2013. São mais de oito anos. Isso depois de eu me submeter a duas cirurgias em clínica particular – laser e sei lá mais o quê – e em seguida HC, porque pensei que ali seria um caminho mais fácil, haveria ali para mim uma luzinha no final do túnel. Mas essa luzinha não chegou para o cego. Então, depois de um total de nove cirurgias, recebi um laudo técnico, de uma junta – porque vários médicos assinaram −, dizendo que todos os meios haviam sido tentados, mas infelizmente... − E tem retorno isso, doutor? − Não, não tem.

J&Cia – O seu problema é...

Assis – Descolamento de retina. Então, não há notícia de alguém que tenha ficado cego, completamente cego, e voltado. Se a retina caiu de vez, lascou-se! E no meu caso foi terrível! Inclusive, no próprio HC ela estava descolando e descolou. Fui orientado a ir lá pra o pronto-socorro, acompanhado, e lá embaixo não havia ninguém, médico ou enfermeiro... Fiquei esperando, esperando, esperando e o trem não chegava nunca. E quando o responsável pelo pronto-socorro chegou, olhou e pronto! Já foi. Eu chorei pra danar, não parava de chorar. Mandaram voltar uns dias depois, voltei e a tortura continuou. Uma cirurgia aqui, outra acolá, e acabou! Descolamento de retina total, absoluto. As cirurgias foram dolorosas em todos os sentidos. Foram cirurgias na alma, cortes no pensamento...

J&Cia – Foram quantas semanas nesse período?

Assis – Cerca de um ano. Esse problema aconteceu quando eu me apresentava no palco do Centro Cultural dos Correios, no Rio de Janeiro. Era o mestre de cerimônias do meu projeto Rodas Gonzagueanas. Levei Osvaldinho do Arcordeon, a cantora Socorro Lira, um monte de gente boa. 

De repente, aconteceu. Não foi total, no meu caso foi devagarinho. Quando terminei o negócio lá eu não via mais nada. E o choro... sou mole demais, não parava de chorar. Ninguém entendeu nada. Todo mundo desceu do palco e eu fiquei que nem uma barata tonta, rodando pra lá e pra cá. A Socorro Lira chegou e perguntou: “O que tá havendo, baixinho?”. Eu não conseguia falar nada. Ela me pegou pela mão, me tirou dali e a coisa ficou assim. Acabou com a minha noite. No dia seguinte já voltei pra São Paulo.

J&Cia – Você ainda conseguia ver alguma coisa?

Assis – Conseguia. Com o olho direito, porque o esquerdo já tinha apagado. Só me sobrou o olho direito. Pensei que o mundo tinha acabado, mas que não poderia acontecer mais nada comigo. Depois, as cirurgias, sempre acreditando que podia fazer alguma coisa. No hospital fiz um poema/oração:

Creio em ti, Santa Luzia,
Dos cegos a padroeira.

Creio em ti, Santa Luzia,
Dos cegos a mensageira.
Rogo a ti, Santa Luzia,
Que me dês boa visão
Para que eu possa
Ver as maravilhas da criação. 

Ó minha Santa Luiza,
Luzia santa querida,
As maravilhas da criação
São os pilares da vida.
Eu quero ver esses milagres,
Quero ver essa magia.
Eu quero luz nos meus olhos.
Eu quero ver, Santa Luzia. 

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. 

Essa prece eu fiz no Hospital das Clínicas. Mas a santa estava com outras preocupações...

J&Cia – Como era a sua vida até aquele momento?

Assis – Muito agitada. Eu viajava o Brasil inteiro.

J&Cia – Não tinha um emprego fixo, né? 

Assis – Não, porque chegou uma hora em que optei, apostando na cultura popular. O estudo da cultura popular sempre foi muito importante pra mim. Sempre, sempre fiz isso, sempre me envolvi com a cultura popular. E olhando prum lado e pra outro, notei – como hoje ainda dá pra notar – que o País, os seus dirigentes, em todas as esferas, não dão lá muita bola pra cultura popular. Não sabem esses dirigentes que a cultura popular é a marca de um país, a marca de um povo. É a “personalidade” de um país, sua identidade. Aí me envolvi mais ainda. Foi como Dom Quixote: não estou fazendo nada mesmo, então vamos inventar...

J&Cia – Você fez trabalhos pra várias instituições...

Assis – Muitas. Pra Sesc... Me apresentei muito em palcos, fazendo palestras, basicamente sobre cultura popular, embora pudesse fazer sobre vários assuntos. Mas cultura popular sempre foi o meu interesse. Para falar de cultura popular você sempre faz um voo, uma viagem, por outras facetas, como a cultura erudita... é um tema muito amplo, por isso sempre me interessou.

J&Cia – O Assis desse período era o quê? Um poeta, um jornalista, um declamador, um compositor. O que você era? Tudo isso e um pouco mais?

Assis – Era um pedaço de cada coisa. Era, não, sou um pedaço de cada coisa. A vida para mim sempre foi um desafio. Sempre procurei coisas na vida pra me ocupar e entender. Sempre tive a cabeça cheia de interrogações. Então, sempre procurei respostas para as minhas indagações, às minhas perguntas. As respostas que ninguém me dava fui buscar. Fui à pé, fui entrevistar, com um gravadorzinho, às vezes com um bloco de papel. Enfim, cruzei o Brasil de cabo a rabo, como diria Luiz Gonzaga. Fui pra fora, pra França, pra... e pra onde eu fosse ia buscar a cultura popular, especialmente o Brasil perdido pelo mundo. Então, achei lá nos alfarrábios de Portugal muita coisa bonita relativa ao Brasil. Achei nos alfarrábios da França muita coisa bonita relativa ao Brasil. Achei discos que nunca foram lançados aqui, nos seus originais. Como de Geraldo Vandré, lá gravados e que lá mesmo ficaram. Uma vez falei pra ele, que duvidou. Sentado neste sofá, onde estou, mostrei a ele. Geraldo se emocionou, evidentemente.

Então, muita coisa tenho aqui. Por exemplo, mais de três mil discos só de músicas de brasileiros gravadas em outras línguas. Tenho milhares e milhares de folhetos de cordel, do Brasil e de outros lugares. Inclusive de Portugal, das suas origens. Fora outros milhares de livros, de partituras, jornais e revistas a partir do final do século 19, do Brasil inteiro. É por aí, pela cultura popular, que se pode fazer o resgate, é possível recompor, recontar a história de um cidadão, de uma cidadã, de um país, de um lugar qualquer.

J&Cia – Você aplicou nisso boa parte do que ganhou na vida, não é? Até onde sabemos, não considerava isso um gasto, mas uma realização e um investimento. Tem ideia de quanto vale esse acervo? Quantos itens são?

Assis – Aproximadamente 150 mil itens. É muita coisa mesmo. E não me arrependo, absolutamente. O que comprei, está comprado. O que comprei, ninguém comprou.

J&Cia – Você ganhou muito dinheiro pra poder comprar tudo isso?

Assis – Eu trabalhava muito, né? Fui repórter da Folha, do Estado, ocupei chefia no Estadão, em vários lugares. Rádio, TV, revistas... assessoria de imprensa. Deixei a TV Globo a convite do Quércia [Orestes Quércia (1938-2010), governador de São Paulo de 1987 a 1991] pra assumir a assessoria da Secretaria da Agricultura do Estado. O secretário era um ex-prefeito de Bauru, Tidei de Lima. Fui ganhando muito bem, três ou quatro vezes o que ganhava na Globo. Fiquei mais ou menos um ano, até que o Estadão me chamou pra ser chefe da editoria de Política. Fui pra lá ganhando mais ainda. 

Na época o editor era José Nêumanne Pinto, paraibano como eu. Anda sumido. Desde que fiquei cego nunca mais telefonou. Mas faz parte, né? Quando perdi a visão, só perdi a visão dos meus olhos. Mas estou inteiro. Continuo falando direito, não esqueço as coisas, ando − mas sozinho não dá... −, tá tudo na minha memória. Sei escrever, é claro. Mas como não posso escrever... Não sei escrever em braile. O braile foi muito importante, mas agora não mais. Principalmente pra alguém como eu, que se mexeu tanto na vida.

J&Cia – Quando você ficou cego os amigos desapareceram?

Assis – Olhe... gato, cachorro, papagaio... etc etc etc. Até o macaquinho que havia ali no pé de côco foi embora também. Ficou um aqui, outro acolá. As pessoas mais queridas, pessoas lindas como a minha filha Ana Maria. Devo muita coisa a ela, por que não dizer: a vida.

J&Cia – Porque o seu apartamento aqui era um centro de referência, não? Um intenso vaivém...

Assis – Vinha gente do Brasil inteiro. Professores, estudiosos do México, da França, dos Estados Unidos, de países aqui do Cone Sul. Sempre abri as portas e sempre orientei a quem pude orientar. Atendi a muitos estudantes de jornalismo, de artes, de artes visuais... Vejam vocês, de artes visuais (risos)... Agora não dá mais pra atender a ninguém porque não poderei ajudar. Claro que sei mais ou menos onde estão os discos, os livros, as partituras. Mas é o que digo: mais ou menos. Não serei um orientador rico de informações como antes.

J&Cia – Depois de tantos anos tendo você como colaborador e amigo, sabemos que você tem uma memória de elefante. A cegueira reforçou ainda mais a sua memória?

Assis – Uma memória fantástica, uma carinha maravilhosa e um corpinho dando sopa (risos). Mas voltemos ao tema central dessa conversa. Os seres humanos nasceram tortos desde sempre. Desde que o homem desceu da árvore foram surgindo pessoas que se arrastavam no chão, pessoas mudas, surdas, cegas. Em algumas sociedades essas pessoas deficientes eram atiradas em precipícios, assassinadas ainda bebês. Isso na antiga Roma, na velha Grécia... Grécia, berço de Homero, um cego, que deixou para a humanidade obras, pérolas, como a Ilíada, a Odisseia, escritas séculos antes de Cristo. Não é brincadeira, não. Ele escapou. Até porque era de uma família abastada. Mas o governo da época o exilou em Atenas. Aí ficou meio chapado, ficou doido, e escreveu aquelas obras.

Aliás, em Odisseia tem uma coisa muito importante. O personagem, Ulisses, luta dez anos até a vitória e volta pra casa disfarçado de mendigo. Todos o davam como morto, menos a mulher, que era a rainha, Penélope. Durante todo esse tempo ela resistiu ao assédio para que se casasse, dizendo que só faria isso quando terminasse de tecer um sudário, mas toda noite desmanchava o que tinha feito de dia. Quando Ulisses voltou, ela não o reconheceu. Quem o reconheceu foi o cachorro, que já estava velho e cego, e morreu em seguida. Então, os cegos, mais do que outros, sempre sofreram muito. E ainda sofrem.

J&Cia – Mas você conseguiu preservar a sua memória e ela é uma luz pra você...

Assis – É, com certeza. Vejam bem: havia essa desgraceira toda, deficientes sendo mortos por causa dessa sua condição. O tempo foi passando até que em 1784, na França, o rei Luís XVI criou o Instituto Real dos Meninos Cegos de Paris. Em 1825, um menino chamado Louis Braille, com 16 anos de idade, criou o sistema de leitura tátil que leva seu nome. Nesse mesmo ano nascia no Brasil D. Pedro II. O que tem a ver? Já vou contar. Em 1844, um menino de dez anos, cego, de família abastada, vai para a França estudar no instituto, volta seis anos depois trazendo o sistema Braile, começa a mostrá-lo a outras pessoas cegas no Rio de Janeiro e a coisa vai evoluindo. D. Pedro assiste a uma demonstração desse método de leitura e em 1854 cria algo parecido com o que havia na França: Real Instituto dos Meninos Cegos do Rio de Janeiro. O instituto foi inaugurado em dezembro daquele ano, mas sem a presença do menino, que havia morrido em março, aos 19 anos. O nome dele era José Álvares de Azevedo. Em 1891 – portanto, logo após a queda do Império −, o instituto ganhou outro nome: passou a chamar-se Instituto Benjamin Constant, que era professor de Matemática da escola. O tempo correu e o IBC está lá até hoje.

J&Cia – Hoje, com toda a sua capacidade produtiva, boa memória, capacidade de escrever, de acompanhar o mundo contemporâneo, por que nada acontece, o que está faltando pra você ter um trabalho?

Assis – Tá faltando muita coisa, que poderia se resumir numa canetada do bem. Estão faltando pessoas com decisão, que dessem atenção às pessoas não só cegas, mas às pessoas portadoras de algum tipo de deficiência, seja de nascença ou adquirida. Falta muita coisa. Por exemplo: esse menino aí, Álvares de Azevedo, foi o primeiro professor de cegos. Isso poderia se multiplicar. Depois do instituto lá no Rio de Janeiro, surgiu outro em Minas Gerais, cujo nome não recordo; surgiu outro aqui em São Paulo, acho que o Padre Chico. Deve haver outros por aí.

Quando eu perdi a visão dos olhos, uma das pessoas políticas com quem falei foi a Luíza Erundina, deputada amiga, pessoa querida, minha conterrânea. Ela me recomendou ir a uma instituição na praça da Árvore. Uma instituição pequena, mas que não oferecia nada do que eu precisava. Tinha muito jogo de dominó, xadrez. A minha vontade é produzir, escrever, editar, falar. Atualmente duas pessoas me ajudam. Uma é Anna Clara da Hora, garota de 23 anos, estudante de artes visuais, que tem uma paciência enorme em me ouvir – com ela escrevo um ou dois textos diariamente para o blog, com exceção dos finais de semana; e o Vito Antico, jornalista recém-formado pela PUC, que estagiou no meu Instituto Memória Brasil, com minha orientação. Fechei o IMB como entidade cultural e sem fins lucrativos – até porque era sem fins lucrativos mas eu só pagava; então, quando só tira e não repõe, complica. O IMB ficou só na memória e o acervo ficou aqui, onde sempre esteve. Falta isso: mais atenção ao cego. O último censo do IBGE, que tem já 11 anos, indicava cerca de 600 mil cegos totais no País, mais de seis milhões de pessoas com visão reduzida. Mas é censo antigo e quem diz que fazem um novo?

J&Cia – Tem ideia de quantos deficientes são no total?

Assis – Segundo esse mesmo censo, 46 milhões de brasileiros tinham então algum tipo de limitação, de deficiência.

J&Cia – E o que existe de informação pra essas pessoas?

Assis – Nada! Elas estão no canto da parede, como eu fiquei quando recebi o laudo. Só pensava em me matar. Posso falar isso agora. Muitos na mesma condição que eu estão no canto da parede, chorando ou se matando. Não aparece em lugar nenhum porque suicídio não é notícia; especialistas dizem que esse tipo de noticiário incentiva mais suicídios. Só sei o seguinte: é muito sério o problema de uma pessoa sem visão. Qualquer tipo de deficiência é ruim, mas a falta de visão dos olhos é uma coisa danada. Tudo na vida é feito para o visual. Quando você perde isso, tem que se refazer, tem que se reestruturar, se reinventar. Mas é difícil para um invisível se reinventar. Eu me tornei uma pessoa invisível, infelizmente. (chora, emocionado) Somos humanos, temos o que pensar. A cabeça está boa, mas tenho a certeza de que muitas cabeças de cegos não estão boas. A propósito, sabem quem são? Procurem. Não vão achar. Os cegos estão escondidos. Escondidos pelo pai, pela mãe, pela irmã, pela família, engordando, sem meta, sem objetivo algum. Essa é a história.

Eu, apesar de tudo, sou um privilegiado. Estou querendo trabalhar há muito tempo. Quero voltar ao rádio, à televisão. Posso fazer isso com a maior naturalidade do mundo. Minha memória é boa, não preciso de script. Basta dar uma geral: olha o assunto é esse. Vamos fazer? Vamos fazer... No rádio, na televisão...

J&Cia – Você teve um programa de rádio que foi líder de audiência, não foi?

Assis – Na Rádio Capital. Durante sete anos apresentei um programa chamado São Paulo, Capital Nordeste. Líder de audiência em São Paulo. E era AM, ia pro Brasil inteiro. Levei cerca de quatro mil artistas, jornalistas, poetas, escritores, atores... todo mundo participou.

J&Cia – Você acha que poderia contribuir com isso, de algum modo? Acabar com essa invisibilidade, essa ausência? O que teria de ser feito?

Assis – Sim! Visão Cidadã! Esse será o título do programa de televisão e rádio que apresentarei em breve... (risos) Não é possível que não apareça alguém pra me chamar pra fazer um negócio desses. Esse é um projeto que já existe há algum tempo, no papel... Tenho já 13 episódios escritos, bonitinhos, com personagens sendo entrevistados, por mim e por uma amiga jornalista, Cilene Soares. Ela é uma jornalista muito boa e uma produtora excepcional. É isso aí, vamos fazer!

Olha aí, pessoal! É possível fazer! Por quê? Pra mostrar a minha cara feia, a minha fala? Não, não! É exatamente pra mostrar as lacunas que há na nossa sociedade em relação ao cidadão que está ali atrás, esquecido, quase como se fosse um cidadão de segunda classe.

J&Cia – Fale um pouco desse programa.

Assis – O ponto de partida, o gancho, é o deficiente visual, o cego. Sempre vamos fazer uma viagem pelo mundo, pela história, pelo passado, mostrando histórias de cegos incríveis, mas vamos trazer pessoas portadoras de outras deficiências. Então a ideia é dar visibilidade a essas pessoas, fazê-las mostrar a importância de ser cidadão, de ser cidadã neste País que não dá bola pra cultura popular. Mas é obrigação do governo, seja qual for a esfera – municipal, estadual ou federal −, patrocinar e abrir espaços para mostrar esse problema. Não tenho conhecimento que haja ou tenha havido algum momento no mundo um programa de televisão mostrando a dificuldade do cego. No Brasil, nem pensar... Visão Cidadã. Já fiz música pra ele. E vamos apresentar sempre um filósofo, um estudioso, um professor, um juiz, um advogado, um jornalista... Por que? Porque a cegueira é democrática. Ela ataca a todos. É que nem essa “gripezinha” aí: pega todo mundo. Mas vamos direcionar isso para o lado positivo da vida, porque todos nós precisamos viver, e viver bem. Não nascemos pra sofrer, não nascemos pra chorar o tempo todo. Chorar faz parte, pra lubrificar os olhos. Então, é preciso se mexer nesse sentido.

Eu falei desse menino aí, Álvares de Azevedo... Lá em 1749, havia em Portugal um rei chamado D. João V. Ele nasceu em 1689 e morreu em 1750. Um ano antes de morrer ele chancelou a Irmandade do Menino Jesus dos Homens Cegos de Lisboa. O que os cegos dessa irmandade faziam? Vendiam impressos da época principalmente folhetos de cordel. Essa era uma forma de o cego não se perder na vida nem nas esmolas. Uma maneira de eles ganharem a vida com o próprio trabalho, vendendo folhetos sem pagar impostos. Isso é uma coisa para se lembrar e replicar, mas não se replica. Esse é o problema. Exemplos do século 18 em Portugal, do século 19 na França e no Brasil, que não se replicam.

J&Cia – Acompanhamos o universo das empresas, onde parece que essa questão está bem avançada. Há programas de inclusão, leis que obrigam a contratação de pessoas com deficiência. Na área privada esse é um processo crescente. E na área pública?

Assis – Não sei... Na nossa área, acho que a Jovem Pan tem um cego... Não sei mais onde tem, estão todos escondidos. Ninguém fala de cego. Existe a lei de inclusão, lógico, de 2015.

J&Cia – Existe a lei, mas ela é aplicada? 

Assis – Ela não se movimenta. Um amigo, Luiz Guerreiro, me levou para o Laramara, uma entidade sem fins lucrativos. Ele sumiu – onde estiver, um abraço... Ele me levava uma vez por semana. Não me falaram quanto tempo eu ia ficar lá. Teve uma festa de fim de ano e nunca mais ninguém me chamou. Supus que aquilo tivesse sido um encerramento, mas ninguém me avisou. Três meses depois, alguém em nome da entidade começou a me ligar pedindo ajuda financeira. Falei: “Pôxa, estou desempregado. Não tenho fonte de renda”. Ligou várias vezes. Então, o que falta? Uma orientação maior, até pra aposentadoria. Eu estava completamente perdido; se morresse, ninguém ia perceber. É uma pasmaceira total. Essas entidades também precisam levar a sério esse lado. Tem também a Dorina Nowill, que não conheço mas dizem ser muito boa.

O que eu quero com esse projeto de rádio e televisão é exatamente mostrar que invisíveis podem ser vistos. E que cego pode ver

J&Cia – Como é a sua rotina hoje, o seu dia a dia?

Assis – Costumo dormir por volta das 22h, que é quando o sono bate. Acordo por volta de 1h, 2h, ligo o rádio; canso, aí ligo o aparelho de audiolivros. Quando o galo canta na minha memória, aí pelas 5h, como umas frutas, ligo o rádio de novo e vou fazer uma hora de ginástica. Depois, cuido do meu asseio e tomo o café da manhã. Fico na sala até começar o jornal na TV. Tem dias que faço o primeiro texto para o blog com o Vito por volta das 11 horas. Após o jornal, falo com a Aninha e faço mais dois textos. Há dias em que faço até seis textos. Tudo por telefone, ditado. Mas eu dito rápido, com pontuação. Sai bonitinho. Faço poemas, gravo... Tenho um amigo, Darlan Zurc, intelectual, escritor, historiador e quadrinista, que grava pra mim, põe música e solta na internet. Aos sábados e domingos tenho outro companheiro, colaborador, o Carlos Silvio, que faz o programa Paiaiá na webrádio Conectados... Minha rotina é essa. Às vezes vou a Portugal, Espanha, Roma, vou pra Rússia... Não quero nem saber, vou fazendo as minhas viagens.

Nessa pandemia, escrevi e publiquei quatro folhetos de cordel, que têm dados atualíssimos, até hoje. É como se fosse uma recontagem poética. Também concluí a adaptação para teatro de Os Lusíadas, de Camões. É uma ópera popular. Não divulguei isso ainda, mas está na hora de começar a falar, porque no ano que vem, 2022, vamos comemorar os 450 anos do lançamento da primeira edição de Os Lusíadas em Portugal. Está prontinha.

Estou também me envolvendo com a história de Maria Firmina dos Reis, que nasceu no Maranhão em 1822 e morreu cega, em 1917, na casa de uma amiga. Primeira professora negra no Brasil, primeira romancista e poeta a publicar livro e poesia no Brasil. Outra cuja história me interessa muito é da primeira soldada brasileira, a baiana Maria Quitéria, que nasceu em 1792 e morreu em 1853. Ela participou das lutas pela independência do Brasil, cuja última grande briga foi na Bahia. E assim vai.

O maior exemplo de personagem deficiente é o corcunda de Notre Dame, imortalizado por Victor Hugo. Shakespeare também tem personagem deficiente. Machado de Assis, pouca gente sabe ou lembra, ficou cego durante uns meses, tinha diabetes e era epilético.

 Voltemos ao descolamento de retina. Descolamento de retina não tem reposição, transplante, não tem conserto. Perguntei a vários especialistas, muitos: o que é isso? Você pode sofrer uma queda e a retina cair; levar uma pancada; entrar num táxi e estar cego ao descer; dormir e acordar sem enxergar nada. Isso tudo me foi dito várias vezes, repetidamente. Eles não conseguem explicar, não existe uma causa só. Também não tem cura, porque não é doença. Existem centenas de males que atacam os olhos, mas esse é pra gente grande (risos). Você cai e tem que se levantar. Estou me levantando, fazendo poesia, cordel, ouvindo muitos livros. Livros de domínio público, porque os livros novos ninguém pode botar na internet. Esses eu precisaria de alguém que lesse pra mim. Sinto saudades da leitura, de ter um livro na mão. Isso nunca mais terei.

Na Bíblia há muitos personagens cegos. Jesus vai lá, esfrega terra nos olhos do camarada e ordena: “Abra os olhos e veja!”. Eu, hem? Não existe prova disso. Deus que me perdoe, eu blasfemando...

A cegueira está presente em todo canto, mas o cego é invisível, está na hora de o Brasil acordar, de as pessoas acordarem, de as pessoas serem mais doces com outras, as discriminações existem, meu Deus do céu! Quando cheguei a São Paulo, em 1976, pensei que era brincadeira quando gozavam da minha cara, do meu sotaque. Eu ria. Agora sei que era discriminação. Contar piada de cego, de aleijado, de nordestino, sempre teve... Agora é que a vaca tosse, que a barra pesa. Aconteceu aqui na minha casa mesmo. O camarada botou o pé na minha frente e saí catando coquinho, quase enfiei a minha fuça na televisão. E esse era um amigo: “Ah, foi sem querer!”. Um tempo antes fomos tomar um caldo de cana na feira aqui perto, ele se afastou, conversando não percebi que tinha tirado minha mão do ombro dele e de repente, pa! – dei com a cara no poste. Os óculos escuros me feriram. Por que isso, cara? Acontece, infelizmente acontece. Histórias incríveis, algumas até cabeludas, de que nem vale a pena falar.

A discriminação mata. Encolhe, deixa a gente pequenininho. Somos todos iguais perante a lei de Deus. E a dos homens também, tá lá na Constituição. Todos os direitos para cegos e portadores de deficiências!

J&Cia − Quais são os grandes cegos da nossa história?

Assis – Estou muito bem acompanhado. Estou com Homero, Camões, Patativa do Assaré, Luiz Gonzaga (em 1961 ou 1962 ele perdeu a visão num acidente de carro no Rio de Janeiro), Maria Firmina dos Reis, Cego Sinfrônio, Cego Oliveira, Cego Aderaldo (foi o mais importante violeiro, cantador e repentista cego que o Brasil já teve), Titulares do Ritmo, um grupo musical constituído só de cegos. Aliás, quero levar músicos como esses todos para o rádio, a televisão, fazer festivais de música, de literatura, de poesia de cegos. Ninguém fez! Por que não vou fazer? Fiz o maior encontro de repentistas do Brasil, mais de 100 deles. Primeiro Campeonato Brasileiro de Poetas Repentistas, em 1997, que rendeu um belíssimo CD duplo. 

Quero trazer à tona, à vida, as pessoas que estão escondidas, sem quererem. Há caminhos a trilhar. A cegueira não é o fim. Qualquer deficiência não pode ser o fim da pessoa. Até o corcunda de Notre Dame apaixonou-se por uma bela. Quer dizer, existe alma num corpo defeituoso. Há coisas boas também na memória de um cego. Aliás, Ulisses, lá na Odisseia de Homero, dizia: “No meu peito há um coração que suporta a dor”. Então, há caminhos, e é esse que eu quero percorrer.

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