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sábado, 5 de abril de 2025

LICENCIOSIDADE NA CULTURA POPULAR (175)


Pois é, tudo bem. Gosto daqui, deste lugar, onde nasci, brinquei, cresci, virei gente, casei, tive filhos e depois de algumas tempestades e sutis terremotos, enviuvei.

Como os pássaros, os filhos foram em busca dos seus caminhos. Isso faz tempo, embora não me lembre de quanto tempo. 

O tempo é intangível, impegável, impalpável, sem cor. Às vezes engrossa e toma jeito de tornado, tempestade, furacão e tudo mais. O vento é violento quando quer, quando não quer é um doce: suave, cheiroso que nem o perfume de todas as flores juntas.

A propósito, em tempos outros eu cheguei a fazer uns versos atemporais. Diziam:

 

O vento sou eu

O vento sois vós

Sem o vento ventando

O que será de nós?...


Eu gosto deste lugar, daqui onde estou a contemplar o bailado mágico das plantas e dos galhos com suas verdes folhas que o vento tanto gosta de soprar.

Sim, eu gosto mesmo deste lugar.

Eu gosto de ouvir o trinado dos passarinhos em bando ali pelo meio da tarde.

O bem-te-vi me faz um bem enorme! E no tempo de chuva, ou de chuva a cair, me vejo em êxtase ouvindo o canto da acauã. 

A mim sempre doeu ouvir o bater da asa branca fugindo por prever tempos de seca. É o primeiro pássaro que faz isso. 

O lugar cá onde estou parece mais o Paraíso. 

Areia é o nome da cidade onde hora me acho e escolhi para viver a minha eternidade.

Essa terra faz parte dos oito municípios do Brejo paraibano. 

Do Brejo paraibano faz parte a cidade onde nasceu o popular Jackson do Pandeiro: Alagoa Grande. 

Desse brejo também fazem parte Pilões, que conheci no meu tempo de menino; Bananeiras e Serraria. 

Serraria, pegada com Bananeiras, é uma bela cidadezinha de porte gracioso pronta para encantar quem a visita. Parece mágica. Foi nessa cidade, onde o vento é sempre brisa e cheiroso como o perfume das melhores pétalas, que nasceu o cantor Roberto Luna.

Não é todo mundo que tem o privilégio de viver aqui. 

Aqui em Areia eu nasci e voei para o mundo pra depois voltar. 

É uma fazendinha de nome Ninho de Pássaros. Tem sei lá quantos hectares!

Aqui em Ninho de Pássaros tem de um tudo. Exemplo? 

Além dos pássaros que voam em bando enchendo o céu de cantos, no chão tem bichos que andam. 

A menina Bibiu brinca sem nunca se cansar com coelhinhos e passarinhos. 

Bibiu também adora brincar com tartarugas e corujas. Parece encantar tudo com os seus olhos de fantasia. 

É uma delícia ver Bibiu hipnotizando a corujinha Bastiana.

E como descrever Bibiu ensinando a tartaruga Xiroca a andar apressada, hein?

E o que dizer de Bibiu correndo e tangendo passarinhos que insistem em brincar com ela?

Bom, Areia, com seus 30 mil habitantes, é uma terra de deuses. 

A história dessa cidade é uma história comprida. 

Antes de virar município, num ano qualquer do século 19, Areia recebeu esse nome por causa de um riachinho estreito, de águas cristalinas, do tamanho de nada e muito do bonitinho com peixinhos miudinhos dando-lhe vida. Eu sei tudo dessa terra.

Corria o ano de 1625, quando a região começou a ganhar casas e virou povoado.

À época a região era habitada por indígenas da etnia Bruxaxás.

De repente fui interrompido por Margarete, dona Margarete, trazendo nas mãos um telefone. Ela disse, pedindo milhões de desculpas:

— Seu Olégna, é uma ligação internacional. 

De fato, do outro lado da linha vinha uma voz feminina doce e firme. Era Flor Maria dizendo que se achava em Veneza, Itália, a caminho da Alemanha e da Suíça. Gostei do que ela disse. 

Eu estava mesmo aonde?

Atentos a minha volta estavam Zé Perrepe, Zé da Luz e Zé de Bia, sem a Bia.

Eu nem precisei terminar a frase quando Zé Perrepe disse logo: 

— O Sr. estava falando a respeito do povoado que virou Areia.

Ouvi palmas ante a fala de Zé Perrepe. 

Eram palmas que vinham dos amigos Onaldo, Ribbas, Klévisson, Rômulo, Maurício, Marcelo, Peter, Betão, Osvaldo Mendes, Faustino, Celso Sávio, Valmir Salaro, Zé Nêumanne, Chico Anísio, Joyce, Irene, Fatel, Cilene, Silvia, Júlia, Madalena, Rebeca, Júnia, Cristina, Marília, Célia, Anna e a violeira Mocinha de Passira, que vieram até aqui sob o pretexto de me parabenizar pelos meus supostos… sei lá quantos anos!

Pense numa risada estrondosa, bombástica! Era o cantador Oliveira de Panelas trazendo a tiracolo Jarbas Mariz, Sebastião Marinho, Ivanildo Vila-Nova, Geraldo Amâncio, Mário de Andrade, João Cabeleira, Téo Azevedo, Wilson Baroncelli, Manoel Dorneles, Jorge Araújo, Eduardo Ribeiro, Audálio Dantas, os irmãos Paulo e Jean Garfunkel, Paulo Caruso, Jessier Quirino, Zé Hamilton, Marcos Zanfra, Wilson Seraine, Carlos Silvio, Leonel Prata, Loyola Brandão, os emboladores Cajú e Castanha e o todo prosa Fausto Bergocce. Um timaço.

Bom, como eu ia dizendo: em 1625 o que hoje é Areia era um pequeno povoado do tamanho de quase nada, porém lindo que só! Enfim, devo dizer que Areia é uma terra legendária. Aqui nasceram o pintor Pedro Américo, autor do famoso quadro O Grito do Ipiranga e o escritor e político José Américo de Almeida, que chegou a ser governador da Paraíba e ministro do governo Vargas. Fora isso e mais importante, foi o autor do marcante romance A Bagaceira. 

No correr dos anos, Areia gerou filhos corajosos e brilhantes. Muitos deles participaram da Revolução Pernambucana (1817), da Confederação do Equador (1824) e da Revolução Praieira (1848). 

Foi em Areia que se travou a batalha derradeira da Praieira em 1849. 

— Muito bem, muito bem seu Olégna Cameron!

Era o historiador José Octávio chegando e batendo palmas com aquele sorrisão e jeitão só dele.

Não custa dizer pra quem não sabe que esse Zé Octávio é o mais reverenciado historiador do Nordeste e por que não dizer do Brasil.

É bom que se diga que estamos num amplo espaço pontilhado de plantas e árvores frutíferas. 

É bom que se diga também que estamos aqui na fazenda degustando um bom feijão verde com carne de panela e um churrasquinho dando sopa, enquanto molhamos o bico com uma cachacinha de nome Volúpia. Hmmmm… Essa cachacinha dela quem me falou foi Jarbas Mariz.

Dessa cachacinha boa para o gogó quem também me falou foi o poeta e juiz de Direito Onaldo Queiroga.

Lá dentro as mulheres estão preparando cuscuz, macaxeira, inhame, um baiãozinho de dois pra três, pra quatro, pra cinco…  e tapioca de todo tipo. Como sobremesa tem caju, jaca, manga, laranja, banana, melancia, mamão e até fruta-pão. 

Pois é, fruta aqui dá o tempo todo.

E ia me esquecendo: também tem mel e rapadura a granel diretamente de nosso engenho.

Da igrejinha perto daqui o sino está dando conta da hora: treze.

O dia de hoje é sábado. 

O céu de brigadeiro, lindo, mostra o sol mandando faíscas. 

O vento faz uso da sua força e beleza para balançar os galhos e folhas das árvores muitas centenárias.

Em dado momento sai de algum lugar um som de rabeca.

Outra vez, chega até mim a prestativa Margarete. Diz que acabara de falar ao telefone com Flor Maria. Perguntei: e daí?

Margarete sempre atenciosa, contou que Flor Maria tinha convencido  os escritores a estarem aqui  logo, logo e que ela mesma já está de volta ao Brasil. 

Essa Flor Maria não é brinquedo, não!

Zé da Luz pergunta: 

— Quem é Flor Maria?

Eu digo a Zé da Luz e a todos que queiram ouvir: Flor Maria é a coordenadora de pesquisa do Instituto Memória Brasil. Uma fotógrafa e tanto, com canudo outorgado por Harvard. É a melhor que há.

— Ela foi fazer o que lá na Europa?

É o cantador Oliveira de Panelas, com aquele vozeirão de trovão intergaláctico, curioso perguntando o que perguntou.

Matando a curiosidade do cantador, eu disse que Flor está acompanhada de assistentes com a missão de combinar uma entrevista reunindo Pietro Aretino, Sade, Rétif de La Bretonne e, principalmente, Giacomo Girolamo Casanova. 

— Poxa vida! Verdade!?

— Isso mesmo, pessoal. A ideia é mostrar a vida desses namoradores que fizeram história e ainda dão muito o que falar.

— Muito bom! Muito bom!

Zé da Luz: 

— Eu já ouvi falar desse tal de Casanova. Seu Assis, com todo respeito, eu lhe desafio para um embate ao som de viola com a temática Ca-sa-no-va. Topa?

— Fazer o quê, hein?

O multitudo Luiz Wilson levanta a mão pedindo pra falar. Mais do que isso: declamar de improviso uns versos sobre o famoso garanhão de Veneza que já rendeu até filme de Fellini:


Das histórias de amor

Do passado, se comprova

Cito o galanteador 

Aqui nesta minha trova

Que por ser namorador 

Transformou-se em sedutor

O famoso Casanova!


Boêmio na sua época 

E grande conquistador

Se Inspirou no poeta

Pra's mulheres foi terror

Para trazer à Memória 

Pesquise a sua história 

Casanova o sedutor!


Ao fim da fala cantada Wilson sorrindo fez gesto de agradecimento pelas palmas a ele dirigidas. 

É a vez do poeta Klévisson Viana pedir pra dizer uns versos citando o Casanova. Ele faz uma comparação…


A vida de um sedutor

Nunca foi vida vadia

É um serviço pesado

Mata-se um leão por dia

Venha conhecer o Don

Juan da Periferia


A sua alcunha é Francisco

Filismino das Donzelas

Já nasceu predestinado

Pra ser amado por elas

Chico Tripa para os íntimos

Por ter pernas magricelas


Don Juan, ou Casanova

Perto de Tripa era brocha

O elemento é do tipo

Iludidor de cabrocha

Que só olhando pro rastro

Acendia a sua tocha


terça-feira, 1 de abril de 2025

TORTURA NUNCA MAIS!

O dia 1° de abril de 1964 começou com militares e tanques nas ruas do Rio de Janeiro. Era o começo de longa escuridão que o país passaria a viver.

O dia 2 de abril de 1964 terminou como começou o dia anterior. A tensão tomava conta do país. Nesse dia o presidente deposto, João Goulart, se achava no Rio Grande do Sul conversando com Brizola e aliados. A conversa girou em torno de possível enfrentamento contra os poderosos de plantão que se perpetuariam até março de 1985.

O presidente tampão foi o titular da Câmara, Ranieri Mazzilli, paulista. "Governou" durante 13 dias. Aliás, por 13 dias o mesmo Mazzilli esteve à frente do poder em 1961. Foi nesse ano que Jânio, acusando umas tais "forças ocultas", pegou o boné e foi-se. 

Por dois meses, o Brasil foi "conduzido" por uma junta militar formada pelos ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica. Depois disso, se revezaram na cadeira de presidente Castelo Branco, Costa e Silva, Médíci, Geisel e Figueiredo, esse tal aí que "imortaluzou-se" por dizer que não gostava do cheiro do povo. 

Bom, esses cinco aqui citados se acham com o capeta pulando miudinho no fogo do inferno.

Durante 21 anos seguidos, o Brasil sofreu e muito.

Os anos de 1960 findaram com o povo revoltado. 

Em 1968, a repressão matou a tiros o estudante mineiro Edson Luís. O fuzilamento ocorreu no restaurante Calabouço no Rio.

O cantor e compositor paulista Sérgio Ricardo eternizou o episódio gravando Calabouço, de sua autoria.

Em 1970, já com o afastamento de Costa e Silva, a censura prévia desabou nas relações de jornais, revistas e emissoras de rádio e TV. 

Não custa lembrar que alguns jornais apoiaram o golpe de 1° de abril. 

Durante anos que nunca terminavam foram censurados pelos menos, 500 filmes, 500 composições musicais, 450 peças de teatro, 200 livros e tal.

Muitos brasileiros tombaram mortos pela fúria assassina dos milicos. 

Além dos mortos pela ditadura, foram presos milhares e milhares de brasileiros. Foi nessa leva que sumiu o deputado Rubens Paiva. 

O Congresso foi fechado e muita coisa feia aconteceu no decorrer daquele triste capítulo da vida brasileira que jamais algo sequer parecido volte a ocorrer no nosso Patropi. 

segunda-feira, 31 de março de 2025

EU E MEUS BOTÕES (85)

Opa Zilidoro, por que você está aqui quase correndo pra falar comigo?

"Seu Assis, é que lá em cima está uma conversa tão interessante sobre coisas que não conheço. Tá uma briga...".

Muito bem, muito bem, Zilidoro. E fui chegando, fui chegando à casa de Lampa. Lá encontrei uma conversaria de fato estranha pra quem não conhece o grupo nosso dos queridos botões. Fui chegando...

"Seu Assis, seu Assis, estamos aqui conversariando sobre a sua impoluta pessoa...", recomeçou Mané na simplicidade do seu tempo. De repente, Lampa pergunta onde está Flor Maria. 

Maliciosamente, Biu olha pra Barrica sem saber de fato o que fazer, o que responder, o que dizer. Pisca o olho.

Um barulho lá embaixo chamou a nossa atenção. E então ouvimos passos...

Oooh, é você Magrão? Pessoal, o Magrão é multimídia. Meu amigo desde o século passado. O cabra canta, toca, pinta e borda e é, rigorosamente, contra quem é contra as minorias. Meu amigo Magrão é um cara do caralho!

Zé, lá no silêncio dele, pergunta de modo um tanto confuso: "Seu Assis, o Magrão é aquele grandão pai do Vira Lata?".

Vocês continuam me surpreendendo o tempo todo. 

De repente, Zoião interrompe dizendo que cada vez mais se sente bem estando junto com a gente.

O Vira Lata é filho do tempo. Um filho que sofreu tanto quanto a sua mãe, que era prostituta. Histórias incríveis há na nossa esquina, nas esquinas do Brasil...

Surpreendentemente, pra mim foi o fato de Mané levantar a mão pra dizer o seguinte: "Estou aprendendo muito, aqui. Há uma modificação muito legal de compreensão entre nós, depois que a dona Flor chegou dizendo aquelas coisas que a gente nem conhece".

Pôôôxa, pessoal! Quero crer, e digo alto e bom som, que também eu e dona Flor estamos aprendendo com vocês. 

Lá do canto, do canto mais discreto da casa do Lampa, Jão pergunta se é possível na próxima reunião trazer o Vira Lata. 

Magrão olha pra mim, eu olho pra ele e pergunto: 

Dá pra trazer o Vira na nossa próxima reunião?

Zilidoro olha pra um lado, olha pra outro e batendo palmas diz: "A vida é maravilhosa!".



sábado, 29 de março de 2025

LICENCIOSIDADE NA CULTURA POPULAR (174)

CHICO ANYSIO: “Mulher é uma boa. A sapatão que o diga!”


Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho, humorista, comediante, escritor, compositor, 50 anos, quatro casamentos. Dono de uma incrível capacidade de criação, ele se multiplica, se transforma e de repente é Topó, Salomé, Tavares, Meinha, Azambuja, Roberval Taylor e por aí afora, fazendo todo mundo rir. Mas, para HOMEM & MULHER, ele, Chico Anysio, é o seu maior personagem. Veja, nesta entrevista [ao repórter Assis Ângelo], se não é a pura verdade.



Homem & Mulher — Na verdade, quem é Chico Anysio?

Chico Anysio (sério, pigarreia, cruza as pernas e se ajeita na poltrona) — Eu sou poeta, teimoso, batalhador, trabalhador, cearense, cabeça chata. Três de mim juntos dá pra fazer um Caravelle descer... (faz pausa, dá um sorriso meio sem jeito; procura, com os olhos, um cinzeiro e acende um cigarro). Sou boa-praça, bom pai, bom caráter; sou mau amigo, porque procuro pouco os amigos; sou bom colega, procuro dar emprego; sou mau marido, pelo menos as aparências indicam; sou bom ator, não um bom comediante ou humorista. É isso aí. Sou impaciente por ser ariano e, por ser ariano, sou explosivo; e por ser explosivo, sou controlado para evitar que pinte a implosão (aqui, ele se abre num sorriso largo, satisfeito, talvez por encontrar as palavras certas para fazer o próprio per- fil). Além do mais sou alto, forte, feio, fraco, baixo, lindo, louco, certo, esperto, errado, pilantra, mestre, miserável, estroina, bobo, bêbado, lúcido, lépido, lento, lerdo... dependendo do personagem que eu interprete.

Homem & Mulher — Tudo isso?

Chico Anysio — E mais alguma coisa. No fim, eu sou um covarde que se esconde atrás de várias caras por receio de me expor; ou um mau caráter que, em vez de se dar ao trabalho, prefere pôr vários infelizes para trabalhar no seu lugar. Mas faço questão de ser a música do Belchior porque nasci num engenho, com o vento agitando o verde-marinho dos pendões da cana, num tempo em que havia galos, noites e quintais. Eu sou o quintal, de pé no chão, pião na unha, pião no mundo, rodando, rodando, rodando, esperando uma palma de mão que o sus- tente, pelo menos por algum tempo. Cadê?


"MINHA MÃE É MINHA MELHOR PARCEIRA"


Homem & Mulher — Poxa, que fôlego! Você grava discos, programas de televisão e rádio, faz shows, escreve livros, mantém colaborações freqüentes em jornais e revistas e faz parceria com um monte de intérpretes da nossa música popular. E, mais ainda, nos faz rir. Agora, responda depressa: em você o que nasceu primeiro, o compositor ou o humorista?

Chico Anysio — Eu acho que os dois nasceram ao mesmo tempo. Não há quem saiba o que vem antes, se o toco ou a água. As coisas vêm no rio. O rio corre, e eu nele. Comecei a fazer letra de música por volta de 1951 com o Jaime Florence, autor de "Molambo". Depois com Altamiro Carrilho, Monsueto, Dolores Duran, João Roberto Kelly, Nonato Buzar, dona Aide, minha mãe e melhor parceira. Isso, no tempo da Rádio Mayrink Veiga. O humor veio um pouco antes, na Rádio Guanabara. 

Homem & Mulher — Como é que você consegue separar todas essas funções?

Chico Anysio — Simples: não tenho esquema nenhum.

Homem & Mulher — …e desenvolver uma por uma sem prejuízo de nada. Nesse seu trabalho tão diversificado você não se confunde, não mistura as bolas?

Chico Anysio — Olha, não dá pra confundir. São coisas muito diferentes. É como jogar futebol, basquete, beisebol. Quer dizer, tudo é jogo... mas são jogos diferentes, todos com bolas no campo, jogadores uniformizados e tal, mas não dá pra confundir (diminui a fala, sorri maroto, levanta as sobrancelhas; ar professoral). Nós podemos confundir economia com finanças, mas isto jamais acontecerá com o Delfim.

Homem & Mulher — Voltemos à música. A rapaziada de hoje não te conhece como compositor. O que é que você acha disso?

Chico Anysio (aparentemente indiferente) — Eu devo isso à falta de sucesso. Se eu tivesse alcançado o sucesso do Herivelto Martins, eu seria conhecido. Mas a música nunca foi o meu degrau mais importante, talvez o descanso da escada.


"SOU MAIS ATOR. O RESTO É ALFACE"


Homem & Mulher — Você disse que não se considera um bom humorista. Compositor, então? Ou escritor?

Chico Anysio — Ator. Mais ator, porque é disso que eu vivo. O resto é alface. (Luiz, o fotógrafo. pede para Chico mudar de poltrona. O comediante não se faz de rogado, e até concorda que a luz ambiente, fraca, pode prejudicar as fotos. E aproveita para dizer que, não faz muito tempo, fez, no Rio de Janeiro, um curso de fotografia com um profissional famoso. Diz também que chegou a montar um estúdio completo e a possuir onze câmaras.)

Homem & Mulher — Atualmente, e olha que esse atualmente faz anos, fala-se muito em crise. Crise no humor, crise no Carnaval e outras. Há até quem garanta que o circo morreu...

Chico Anysio — Eu vejo isso com muita tristeza, porque é verdade. O rádio foi o veículo responsável pelo surgimento de muitos humoristas. Mas o rádio mudou. Ele hoje se abstém de lutar contra a televisão e, talvez por isso, tornou-se menos importante, principalmente para fazer novos humoristas. Um humorista não se faz em menos de dez anos.

Homem & Mulher — Chico... 

Chico Anysio — Eu sou do tempo em que amar era feio, era pecado, era crime. Hoje em dia já se sabe que amar é bonito, é o lógico, é o certo. As pessoas começaram a ter novos interesses, descobriram o surf, o sol, o mar. Isso tudo é um pouco obra da minha geração, que permitiu que a geração atual tivesse o que tem. Apesar disso, acho que já não se fazem humoristas como antigamente.

Homem & Mulher — Quem está fazendo humor hoje no Brasil?

Chico Anysio (num repente) — Os mesmos de sempre. Nós somos vinte. Não aparece ninguém novo, embora eu tenha tentado muito. Cheguei a aceitar convites para ser jurado em festivais de humor da Record e da Globo, mas esses festivais foram cancelados porque faltou material de alguma categoria. Nível péssimo. Os textos que chegaram às nossas mãos eram, em sua maioria, copiados de revistas, banais ou profundamente cultos. Ora, o humorista não tem que mostrar cultura; humorismo é a arte do óbvio.


"SOU A FAVOR DO POBRE, DO PRETO E DO DESEMPREGADO"


Homem & Mulher — Você teve muitos problemas com a Censura Oficial?

Chico Anysio — Não. Eu nunca tive um texto cortado. Acho até que eu sou o sujeito menos censurado no Brasil, na área do humor, é claro.

Homem & Mulher — A que você deve isso?

Chico Anysio — A minha sinceridade. Eu nunca falei sobre hipóteses, nunca chamei ninguém de ladrão sem ter provas. Sempre falei a verdade. Eu não faço piadas sobre "o que eu acho que", mas sobre "o que todo mundo sabe que". Se eu faço uma piada sobre o Juca (Chaves) dizendo que ele tem o nariz grande, ele não pode reclamar. Mas se eu fizer uma piada dizendo que ele é seqüestrador, ele pode me processar. E com razão, entende? 

Homem & Mulher — Como é que você vê o sistema político implantado há 17 anos no Brasil?

Chico Anysio — Vejo tudo isso com a cabeça fria, porque não tenho culpa nenhuma do que aconteceu. Eu votei no Marechal Lott. Sou do pobre, do preto e do desempregado. E até do assaltante. Eu sou a favor do preso, do menor abandonado...

Homem & Mulher — E a "abertura", e o liberalismo, e...

Chico Anysio — Acho que todos os excessos são demasiados. Outro dia eu comentava com um amigo que, atualmente no Brasil, só se faz filmes de sacanagem. Mas acho que essa "abertura" acontece no mundo inteiro e é um processo irrefreável.

Homem & Mulher — Você acredita nela?

Chico Anysio — Eu habito nela. O acreditar não é importante. Acho que não há como evitar, há como maneirar. Se eu só dissesse palavrões nos meus shows, certamente não surtiriam efeitos.


"A MULHER MANDA HÁ MUITO TEMPO"


Homem & mulher — Falar em sacanagem, tem uma história aí que diz que nordestino é homem "até debaixo d'água". Machismo? O que é que você acha disso?

Chico Anysio — Para mim, esse negócio de machismo é um equívoco. Não tem nada a ver. Acho que a gente andando em dois encontra o caminho mais fácil. O feminismo é a mesma coisa. Aliás, o feminismo nasceu por descuido de uma geração. Besteira pura, porque entendo que a mulher manda há muito tempo. Ela é o meio-campo.

Homem & Mulher — E os outros? Existe o homem e a mu- lher e os outros: "bicha", "sapatão", o escambau.

Chico Anysio (soltando uma risada) — É isso aí. A "sapatão" descobriu que mulher é uma boa, coisa que nós já sabíamos há muito tempo. Mas é uma minoria tão menor que não me preocupa. Inclusive, se eu fizer uma piada sobre "sapatões" não vai funcionar porque há mulheres que nem sabem que isso existe. Portanto, não faz sentido eu me preocupar.

Homem & Mulher — Chico, você não acha que o lesbianismo está aumentando cada vez mais?

Chico Anysio — Não sei, talvez sim, talvez não. Mas acho que o homem perdeu um pouco o romantismo. E a mulher sente falta disso, sem dúvida. Então, se vem uma pessoa e dá atenção à mulher, carinho e tudo o mais, a mulher vai se ligar, se prender a essa pessoa. A mulher quer se sentir mulher, isto é lógico. Também acho que homem nenhum tira uma mulher de outra mulher. Mulher que transa com mulher, "só" transa com mulher. É isso aí. E olha que tenho experiência própria.

Homem & Mulher — Esse tipo de mulher não sabe o que está perdendo...

Chico Anysio — Às vezes até que a danada sabe, só que pensa que acabou. Já tive implicações com mulheres que gostavam de outras mulheres. Mas eu só soube disso depois, porque se soubesse antes eu nem tentava. É uma pena, porque ninguém faz o "gol" sozinho. Alguém tem que dar a bola, é ou não é?


quinta-feira, 27 de março de 2025

EU E MEUS BOTÕES (84)

Hummm... Tá faltando alguém... Cadê o Lampa?

Zilidoro dá uma risadinha safada. Barrica cutuca o mamo Biu, enquanto é observado por Mané, Zé e Zoião. 

Sentados, num banco rente à parede, se acham Pitoco e Fuinha. 

Maria passa os olhos na sala perguntando por onde anda Olavim, que já começa a ser apelidado de O Sumido. Zilidoro:

"Seu Assis, o Lampa tá que tá! Tem feito a barba e penteado o cabelo todo dia...".

Zoião interrompe pra dizer que "O Lampa está ultimamente todo vaidoso. Acho até que ele tem tomado banho todo dia, coisa que não fazia há muitos anos".

Ah! É, é? A que se deve isso? 

Zé, um tanto matreiro, com um sorriso irônico no canto da boca diz depressa: "É amor! É amor!".

Mané: "Eu acho também. E acho que o motivo disso tem a ver com dona Flor".

A fala de Mané provocou risos gerais, menos na historiadora. Para agravar a situação, Lampa deixa o banheiro enxugando o rosto e passando em si mesmo um perfume de péssima qualidade. Ele vem penteado e sorrindo numa ingenuidade de dar pena. E pela primeira vez dá boa tarde, com voz caprichada. Nisso, chega silenciosamente à sala o tão esperado Olavim. Ao vê-lo Barrica vai logo perguntando qual o seu mundo de origem. Pitoco cutuca Fuinha, que pisca pra Olavim. O silêncio é total. Sorrindo, Olavim dirige-se a Barrica:

"Já ouvi pessoas dizerem que são cidadãs do mundo. Eu posso dizer que sou um cidadão dos mundos. Conheço de perto muitos planetas, além dos oito que são indicados nas escolas por professores. As estrelas não conheço todas, até porque se acham na casa dos bilhões. Quando me canso dos passeios que faço, bem além da Via Láctea, corro pra descansar na Lua".

Ouve-se um ôôôôh geral. De queixo caído se acham quase todos. Flor Maria:

"Poxa! Que história fantástica!".

Pois bem, realmente é incrível essa história do Olavim. Satisfeito, Barrica?

"Barrica parece que se acha no mundo da lua", diz rindo Mané. 

Todos caem numa risada só. Até Olavim dá um ar da risada, enquanto desaparece como num passe de mágica. 

Flor, você costuma ler histórias de ficção científica? Eu gosto e gosto de autores como Isaac Asimov. 

Rindo, Flor responde: "Passei a gostar dessa tipo de literatura depois que descobri um cara chamado H.G. Wells. Esse cara estreou na literatura em 1895, com A Máquina do Tempo. Em seguida, ele escreveu O Homem Invisível. Esse é de 1897. Em 1898, Wells lançou A Guerra dos Mundos. Mas também gosto de Asimov, Arthur C. Clarke e Ray Bradbury. E vocês aqui, também gostam de ficção científica?". 

Um pequeno tumulto se forma rapidamente, com todos querendo se sobressair dizendo que gostam desse ou daquele autor. 

Bom, chega né? A hora já bateu seu tempo e ainda tenho de pegar o trânsito. 

domingo, 23 de março de 2025

EU E MEUS BOTÕES (83)

"Olha lá, olha lá, olha lá, pessoal!", disse em voz alto chamando a atenção dos amigos botões, Mané. 

Num passe de mágica, quase todos se levantaram. Mané:

"Agora quem está rindo à toa é a dona Flor!".

Oi, pessoal! Ué, por que vocês estão aí de pé esperando pela gente? Zilidoro:

"Seu Assis, pra ser franco devo dizer que as reuniões com o Sr. têm sido ótimas, mas depois que a dona Flor chegou aqui houve, da parte de todos nós, um interesse maior pela...".

"Isso mesmo, isso mesmo! A gente escolheu Zilidoro porque o Zili fala com mais desembaraço do que nóis", disse no seu jeitão um tanto estapafúrdio o Lampa. 

Obrigado, obrigado. Devo dizer que estou muito satisfeito com todos vocês...

"Essa é boa! Eu pago uma depois!", interrompe com cara de bobo o solerte Barrica.

Hummm.... Calma, calma...

"Bom pessoal, quando aqui há pouco chegamos ouvimos alguém ou mais de alguém chamando a atenção de que eu estava rindo. Sabem por que eu estava rindo? Eu estava rindo porque eu passei a gostar de vocês", disse com seu jeito natural a historiadora Flor Maria. Na verdade, nem chegou a dizer a frase completa porque a casa encheu-se de palmas e urras. E de repente, surpreendentemente Olavim, Pitoco e Fuinha incrivelmente se sobressaíram dizendo que nunca viram pessoas tão interessantes, juntas, se entendendo. Todos voltaram-se aos três novos amigos. 

Pitoco olhou pra Olavim, que olhou pra Fuinha. Fuinha:

"Eu vou usar aqui uma palavra que o seu Assis sempre fala: Vocês são incríveis".

Pitoco olha pra Olavim, Olavim olha pra Pitoco. 

Lá detrás, Biu e Barrica dizem: "Queremos saber se Olavim é daqui ou do Além?".

Calma, pessoal! Desse jeito a gente não vai chegar a canto nenhum.

"Seu Assis, eu tenho certeza que a dona Flor concorda que temos de saber quem está com a gente", expressa na sua linguagem natural o Zé. Dona Flor balança a cabeça concordando com o que foi dito.

Displicentemente Fuinha dá um toque de cotovelo no seu amigo Olavim. Numa fração de segundos, Olavim se levanta e diz que está adorando o lugar onde está. 

Silêncio... 

Fique à vontade, amigo novo Olavim. É claro que há uma grande curiosidade sobre você...

"Amigos, aposto tanto no Olavim quanto o Zilidoro aposta em mim. Mas eu não sou nada, não sou ninguém. O Olavim vai surpreender muito", diz o Fuinha de modo peremptório. De repente, Olavim se levanta de onde está e diz:

"Eu sou de longe, vim de longe. Antes de mim, outros vieram".

Depois de dizer o que disse, o lugar onde estava Olavim ficou vazio. 

sábado, 22 de março de 2025

LICENCIOSIDADE NA CULTURA POPULAR (173)

PEGANDO O LEITOR À UNHA

Foi preciso, primeiro, que o livro fosse traduzido e fizesse sucesso na Itália, para que os editores brasileiros criassem coragem de lançá-lo. Mas a coragem não foi suficiente. A censura cassou o livro e, somente depois de muita espera, Ignácio de Loyola Brandão conseguiu que o seu romance Zero chegasse ao leitor do seu País. Autor de oito títulos (entre eles, “Pego Ele, Silêncio”, “Dentes ao Sol”, “Cuba de Fidel” e “Cadeiras Proibidas”), traduzido na Itália, Espanha, Alemanha e França, Loyola abdicou o jornalismo há menos de um ano para se dedicar apenas à sua tarefa literária. Entretanto, longe de se encastelar em seu gabinete, ele faz de cada livro ser um motivo de comício. E vai por esse Brasil afora buscar seu leitor e conhecê-lo. Um escritor que se projetou nos anos 70, Ignácio de Loyola Brandão fala da sua experiência ao repórter Assis Ângelo.



FOLHETIM — Loyola, seria possível fazer um retrospecto dos anos 70, na área da Literatura, sem se falar no regime autoritário, na censura oficial?

LOYOLA — Claro que não. Essa década foi o período mais brutal acontecido no Brasil. Os anos 70 foram os anos da repressão a todo tipo de criação.

FOLHETIM — Não houve período pior?

LOYOLA — Bom, há bem pouco tempo, numa mesa redonda feita na Unicamp, em Campinas, São Paulo. Roberto Schwartz levantou uma questão curiosa. Na ocasião, ele disse que a censura dos anos 70, apesar de muito violenta, não foi tão grande quanto a do Estado Novo. Mas eu não conheci aquela, eu conheci essa. Inclusive eu fui atingido pessoalmente pela censura da década passada, e é dela que eu posso falar. A censura imposta pelo regime me mostrou uma coisa muito importante, que não adianta brigar sozinho. Então, de repente, percebi que era necessário todo mundo brigar junto contra o inimigo, no caso o Sistema. Esta é uma das lições que aprendi.

FOLHETIM — Mas há quem diga que os escritores são alienados.

LOYOLA — Antes de tudo, eu acho que o grande acontecimento dessa década, em relação à literatura e ao escritor, foi exatamente isto. Gradualmente, à medida em que os anos foram avançando, os escritores, que são uma raça vamos dizer assim isolada, que lutam por uma solidão e que acham que a criação é uma coisa que não tem a ver com a vida política, com briga, com mudança de condições e com a transformação do País — os escritores não alienados — eles entenderam, de repente, a necessidade de lutar contra o inimigo comum: a censura, o Sistema. E a partir desse momento, houve a união. Portanto, acho que a primeira grande marca dos anos 70 foi a união dos escritores.

FOLHETIM — Concretamente, o que resultou disso?

LOYOLA — Resultou no fortalecimento do Sindicato dos Escritores no Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que começava a luta pelo Sindicato dos Escritores em São Paulo. Quer dizer, já temos uma casa sindical com uma diretoria embora, pessoalmente, eu não esteja completamente de acordo com ela. No entanto, temos mais é que brigar, criar uma chapa e renovar. Em Belo Horizonte já há uma Associação, que é o primeiro passo para a formação de um Sindicato. No Rio Grande do Sul já tem isto: e em Goiânia os escritores estão brigando unidos e em breve, também terão seu Sindicato. Do jeito que a coisa está indo, em pouco tempo teremos uma Federação.

FOLHETIM — Quando os escritores começaram a despertar para a gravidade da situação e partiram para a briga?

LOYOLA — Logo depois que foram proibidos livros como Zero, Feliz Ano Novo, Aracelli. Na ocasião, houve um movimento de âmbito nacional e 1946 intelectuais assinaram um manifesto que foi entregue ao então ministro Armando Falcão. Esse foi, praticamente, o primeiro movimento de escritores protestando concretamente a não aceitação da censura.

FOLHETIM — Você diria então que os anos 70 foram os anos da conscientização?

LOYOLA — Sim, pois de repente se abriram as cabeças. Escrever é um ato solitário, tudo bem. Mas somente enquanto estou na minha escrivaninha, escrevendo um livro. Depois disso, tem-se mesmo é de lutar, pois há uma grande luta lá fora. O país que está ali fora e é o País ao qual estou me dirigindo. Portanto, se esse País não ler, se esse País está reprimido, se esse País está violentado, então eu tenho de brigar pela transformação desse estado de coisa. Entendo que o ofício de escrever tem duas etapas. Algumas pessoas discordam disto, mas tudo bem. Eu até concordo que elas discordem. Para mim, o escritor tem de ter uma atuação política. Digo isso no sentido de transformação. E me parece que os autores brasileiros já estão tendo essa consciência, pois a gente tem de estar em constante estado de alerta. O inimigo pode atacar a qualquer instante, e por isso é preciso que estejamos preparados.

FOLHETIM — Lutou-se contra a censura, mas ainda há muito mais por que lutar.

LOYOLA — Claro, ainda há muito por que lutar. Por exemplo: direito autoral, mercado, etc. Há, mesmo, uma série de coisas, como a aposentadoria e até a profissionalização do escritor. No brasil não existe profissão de escritor. Se você disser que é escritor, as pessoas vão rir porque não existe esta profissão. Na verdade, o escritor existe apenas simbolicamente.

FOLHETIM — Nos primeiros anos da década, alguns escritores começaram a participar de debates e a aceitar convites para falar nas escolas, universidades…

LOYOLA — Essa experiência foi muito proveitosa, inclusive porque a censura não foi o único problema que enfrentamos. Descobrimos que tínhamos de sair às ruas, conversar com as pessoas, fazer comício enfim, ir ao encontro do leitor. Na ocasião, tínhamos várias interrogações, como: Quem é o leitor? Ele existe? Não existe? Se não existe, qual o motivo? Quem é o culpado dessa situação toda? O Sistema? A escola? O analfabetismo? O governo? A televisão? O pai? Ou os culpados somos nós mesmos? O preço do livro? O livreiro? O distribuidor? O editor? Ou tudo isto reunido? Sim, descobrimos que o problema era muito grande, eram todas estas interrogações e algo mais, como escritor silencioso.

FOLHETIM — E daí, o que foi feito?

LOYOLA — Bom, baseados intuitivamente numa experiência que a música popular brasileira enfrentou por volta de 1965, quando ela estava num impasse, num beco sem saída e descobriu o circuito universitário, nós, escritores, partimos em busca do nosso público. E então saímos às ruas, eu, Torres, Scliar, Miguel Jorge, João Antônio, Wander Pirolli, Márcio de Souza. Aí fizemos o circuito universitário. Não houve escola primária, secundária, organização, clube que a gente não tivesse feito contato. O resultado foi muito bom, e hoje, se estou vivendo de livros, exclusivamente, é graças a essa experiência. O trabalho ainda está rendendo, pois em cada cidade que passei eu deixei cinco, dez, vinte, 400 leitores.

FOLHETIM — Dá para saber quantas palestras você fez até hoje?

LOYOLA — Com precisão, é difícil saber. Só sei que estive em mais de 250 escolas nos últimos cincos anos.

FOLHETIM — No seu entender, o povo lê?

LOYOLA — Olha, falar em literatura para o povo é uma grande bobagem. Bobagem porque o povo não pode ler. Ele não está participando da realidade do País. E as razões nós todos sabemos. O povo não tem escola, ganha pouco  e por isso não pode comprar livro. O povo está mais preocupado com outras coisas, como o leite, o pão, a carne e com a própria família. O brasileiro trabalha tanto que, quando chega em casa, só pensa mesmo em descansar. Quem lê no Brasil é a elite, a classe média, os estudantes universitários. Então a gente termina se dirigindo a elite. Leitor no Brasil a gente conquista indo pessoalmente a ele — os meus leitores, pelo menos, eu os conquistei assim. Não houve outra forma.

FOLHETIM — E não há perspectivas de mudança?

LOYOLA — Não, pelo menos por enquanto. Antes, é preciso que o Sistema mude, que haja uma verdadeira revolução, com escola para todos, trabalho, comida, enfim, uma vida mais condigna. Somente a partir daí é que se poderá pensar em cultura. Mas como as coisas estão, não dá sequer para pensar em cultura. Somente com uma verdadeira revolução poderemos levar as pessoas a encontrarem nos livros uma forma de lazer. Hoje, no Brasil, cultura é uma brincadeira de gente rica, um hobby.

FOLHETIM — Antes dos anos 70, o escritor era considerado uma espécie de deus. Ele era colocado sobre algo como um pedestal. Agora, porém, percebe-se perfeitamente que este tipo de raciocínio mudou. Como se deu isso?

LOYOLA — Exato. O escritor era aquele indivíduo cultuado pelo professor de Literatura, de Letras. Mas o raciocínio começou a mudar no momento em que passamos a ter um contato maior com o leitor. O leitor percebeu que o escritor era um sujeito igualzinho a ele, que comete erros, fala errado, que ouve as mais diversas perguntas e para todas elas procura uma resposta, e quando não a encontra se mostra humilde e sincero, admitindo ou confessando sua ignorância. Portanto, a partir do instante em que a gente se expõe, o mito cai e fica o homem igual a todos os outros.

FOLHETIM — Fala um pouco sobre as andanças.

LOYOLA — Ah, eu tenho aprendido muito. Especialmente sobre a realidade brasileira, com detalhes mínimos. O Brasil não é só São Paulo e Rio de Janeiro. E isto parece que nem todo brasileiro está sabendo. O Rio Grande do Sul, por exemplo, é muito diferente de Goiás… Há poucos dias estive nas cidades de Bento Gonçalves, Farroupilha e Garibaldi. Lá, alguém me procurou dizendo que a feira de livros era um acontecimento importante para a juventude, principalmente , porque as moças aproveitavam como motivo para sair de casa a noite. Claro, fiquei abismado e disse: pôxa, em Araraquara, interior de São Paulo, há dez anos, as minhas primas de 16 e 17 anos saíam e voltavam no dia seguinte, às 7 horas da manhã. E não inventaram nenhum pretexto, chegavam e diziam aos pais: estivemos num baile. Quer dizer, não tinha problema nenhum e não necessitavam de uma feira de livro ou seja lá o que for para sair de casa à noite.

FOLHETIM — Realmente, chega a ser absurdo. No Rio de Janeiro, em São Paulo ou outro grande centro, dificilmente algo idêntico poderia acontecer. No interior do Brasil, porém…

LOYOLA — Pois é. Antes, eu imaginava o Brasil de outra forma, mas até então eu não conhecia as cidade menores. Por isto, acho que ainda há muita gente enganada a respeito da verdadeira realidade deste País. Quer dizer, nas minhas andanças eu tenho aprendido muito, muito mesmo. Tenho assimilado muitas informações… Chega a ser inacreditável que, num lugar qualquer do Brasil, uma menina de 17 anos precise de um pretexto para sair de casa à noite. Mas este é o Brasil que pouca gente conhece!!

FOLHETIM — Nos anos 70 falou-se insistentemente sobre um tal “boom” da literatura brasileira. Que história foi essa?

LOYOLA — Foi simplesmente um modismo resultante do boom latino-americano, que também não era um boom tão grande como se propagou. Na verdade, o boom latino-americano favoreceu a uma meia dúzia de monstros sagrados, como Vargas Liosa, Garcia Marques, Ernesto Sabato, Cortazar e alguns outros que se utilizaram da máquina. Eles aproveitaram aquele movimento das universidades norte-americanas e, pronto, faturaram em cima. Na verdade, o boom foi uma coisa ilusória, um negócio forjado. Em Cuba, quando alguém falava no tal boom todo mundo morria de rir.

FOLHETIM — Qual o grande momento da literatura brasileira nos anos 70? Esse momento chegou a existir?

LOYOLA — Não, creio que não. Publicou-se muito, especialmente depois de 1974/75. Alguns livros estouraram, como Zero e alguns outros. A crítica literária inclusive sumiu para dar espaço ao noticiário comum, que por sinal aumentou bastante. Mas houve um instante de euforia. Um cara chegava com alguns originais debaixo do braço, e dizia: sou novo. Imediatamente o seu livro era editado. No entanto, ser novo não significa nada. Aliás, ser velho também nada significa. O que importa é ser bom, ter o que dizer num livro. Os anos 70 foram de grande efervescência. É isto, no meu entender, foi positivo. Acho que é só.



[Nota: entrevista publicada originalmente no extinto FOLHETIM (FSP), no dia 13 de janeiro de 1980].


quinta-feira, 20 de março de 2025

EU E MEUS BOTÕES (82)

"Olha lá, olha lá, gente!", diz Mané eufórico, chamando a atenção dos coleguinhas. E todos voltam o olhar à porta por onde entra Flor Maria. "O seu Assis está logo atrás. Olha lá, olha lá. E ele está sorrindo".

Muito bem, gostei de ver. Agora quero saber o motivo de tanta euforia. 

De certo modo e pra começo de conversa, Lampa diz em nome de todos que a alegria que se vê é devida ao modo sábio de falar de Flor Maria.

Hummm... 

Com leve sorriso no rosto, a historiadora agradece o elogio e diz: "Falar é se comunicar. Comunicação é item necessário à boa convivência social. E falar de história falo com prazer, pois sempre é tempo de aprender".

Dito isso, com firmeza e brejeirice, Flor diz que está à disposição para qualquer pergunta que lhe façam sobre história. 

Zoião: "Dona Flor, achei muito interessante a leitura do polêmico livro Os Sertões. Acho que todos aqui poderiam lê-lo".

"Concordo, concordo. E a mim não custa dizer, mais uma vez e sempre, que ler é fun-da-men-tal.

Zé, aproveitando a deixa, abre a boca pra pedir de empréstimo a Zoião o livro de Euclides da Cunha. 

O trio Olavim, Pitoco e Fuinha está atento a tudo que ali se diz. 

Zilidoro: "Seu Assis, dona Flor, confesso que estou sem dormir desde ontem. Isso porque não me saiu da cabeça a ideia de o nosso novo amigo Olavim ser um ser de fora do planeta Terra".

Pra mim isso que você diz não é surpresa. Também não consegui dormir pensando no que foi dito. Nem café da manhã tomei direito...

Fuinha devagar foi se levantando. E disse: "Curiosidade mata".

"E mata mesmo. Curiosidade mata, sim!", reforça no seu jeito natural de ser o sempre enervado Lampa. 

Calma, calma. Deixemos o Fuinha dizer o que quer dizer.

"Obrigado, seu Assis. Sou muito amigo do Olavim. Pessoa rara, raríssima. E o que aqui digo tem a sua anuência. Ele confia em mim e eu nele...".

Os manos Bio e Barrica interrompem a fala de Fuinha pra perguntar: "Queremos saber é de onde vem o Olavim".

Calma, calma. Pra que tanta pressa?

"É de muito longe. Ele vem de lugar longínquo, de distância inimaginável pra nós mortais comuns. É pra lá de..., retoma à fala Fuinha enquanto Olavim dá sinais de que vai dar o ar de sua graça e responder as perguntas que lhe forem feitas. Num piscar de olhos, porém, no lugar que estava já não está. Sumiu, evaporou-se, sabe-se lá! Fuinha:

"Ele é assim mesmo, quando se sente ameaçado toma chá de sumiço e chau!".

Pelo jeito teremos bons papos no correr dos dias. Eu, particularmente, sou leitor assíduo de Júlio Verne, Isaac Asimov e outros bambas da ficção científica. 

"Eu também sou grande apreciador desse tipo de literatura. Além de Verne e de Asimov, também gosto de Arthur C. Clarke", revela o poeta Zilidoro. Zoião:

"Seu Assis, o sinhô sabia que o nosso Machado de Assis também enveredou na trilha desse tipo de ficção?".

Realmente, vocês estão impossíveis! Passo batido. Sei, no entanto, que há autores brasileiros de ficção científica. 

Zoião, todo orgulhoso: "Em 1882, o bruxo do Cosme Velho escreveu e publicou o conto O Imortal. Esse conto trata do enfado que seria a imortalidade humana".

Lampa, se ajeitando no tamborete: "No meu caso, seu Assis, estou fazendo uma pesquisa sobre esse assunto e também sobre o Cangaço".

Zé: "Muito bem, muito bem. Agora pergunto se vocês sabem que existe até o Dia Nacional da Ficção Científica?". Zilidoro:

"Eu sei, eu sei que esse dia existe. É o 11 de dezembro".

De repente,  como num passe de mágica, entre Pitoco e Fuinha se acha o incrível Olavim. 


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