Jornalistas portadores de deficiência física, visual etc foram tema da edição especial do Newsletter Jornalistas&Cia, edição do dia 8 de abril de 2021, nº 1302.
"Foi uma edição excepcional, que tem rendido muitos comentários e sugestões", segundo seu fundador o jornalista Eduardo Ribeiro.
A edição ocupou mais de 60 páginas.
É histórica, pois até hoje órgão nenhum da Imprensa brasileira tratou do assunto.
Eu perdi minha visão, recebi
o laudo técnico do Hospital das
Clínicas no dia 17 de fevereiro de
2013. São mais de oito anos. Isso
depois de eu me submeter a duas
cirurgias em clínica particular – laser
e sei lá mais o quê – e em seguida
HC, porque pensei que ali seria um
caminho mais fácil, haveria ali para
mim uma luzinha no final do túnel.
Mas essa luzinha não chegou para
o cego. Então, depois de um total
de nove cirurgias, recebi um laudo técnico, de uma junta – porque vários médicos
assinaram −, dizendo que todos os meios haviam sido tentados, mas infelizmente...
− E tem retorno isso, doutor?
− Não, não tem.
J&Cia – O seu problema é...
Assis – Descolamento de retina. Então,
não há notícia de alguém que tenha ficado
cego, completamente cego, e voltado. Se a
retina caiu de vez, lascou-se! E no meu caso
foi terrível! Inclusive, no próprio HC ela estava
descolando e descolou. Fui orientado a ir lá pra
o pronto-socorro, acompanhado, e lá embaixo
não havia ninguém, médico ou enfermeiro...
Fiquei esperando, esperando, esperando e o
trem não chegava nunca. E quando o responsável pelo pronto-socorro chegou, olhou e
pronto! Já foi. Eu chorei pra danar, não parava
de chorar. Mandaram voltar uns dias depois,
voltei e a tortura continuou. Uma cirurgia aqui,
outra acolá, e acabou! Descolamento de retina
total, absoluto. As cirurgias foram dolorosas em
todos os sentidos. Foram cirurgias na alma,
cortes no pensamento...
J&Cia – Foram quantas semanas
nesse período?
Assis – Cerca de um ano. Esse
problema aconteceu quando eu
me apresentava no palco do Centro
Cultural dos Correios, no Rio de
Janeiro. Era o mestre de cerimônias
do meu projeto Rodas Gonzagueanas. Levei Osvaldinho do Arcordeon, a cantora Socorro Lira, um
monte de gente boa.
De repente, aconteceu. Não foi
total, no meu caso foi devagarinho.
Quando terminei o negócio lá eu
não via mais nada. E o choro...
sou mole demais, não parava de chorar. Ninguém entendeu nada. Todo mundo desceu do palco e eu fiquei que nem uma
barata tonta, rodando pra lá e pra cá. A Socorro
Lira chegou e perguntou: “O que tá havendo,
baixinho?”. Eu não conseguia falar nada. Ela
me pegou pela mão, me tirou dali e a coisa
ficou assim. Acabou com a minha noite. No
dia seguinte já voltei pra São Paulo.
J&Cia – Você ainda conseguia ver alguma
coisa?
Assis – Conseguia. Com o olho direito,
porque o esquerdo já tinha apagado. Só me
sobrou o olho direito. Pensei que o mundo
tinha acabado, mas que não poderia acontecer
mais nada comigo. Depois, as cirurgias, sempre
acreditando que podia fazer alguma coisa. No
hospital fiz um poema/oração:
Creio em ti, Santa Luzia,
Dos cegos a padroeira.
Creio em ti, Santa Luzia,
Dos cegos a mensageira.
Rogo a ti, Santa Luzia,
Que me dês boa visão
Para que eu possa
Ver as maravilhas da criação.
Ó minha Santa Luiza,
Luzia santa querida,
As maravilhas da criação
São os pilares da vida.
Eu quero ver esses milagres,
Quero ver essa magia.
Eu quero luz nos meus olhos.
Eu quero ver, Santa Luzia.
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Amém.
Essa prece eu fiz no Hospital das Clínicas.
Mas a santa estava com outras preocupações...
J&Cia – Como era a sua vida até aquele
momento?
Assis – Muito agitada. Eu viajava o Brasil
inteiro.
J&Cia – Não tinha um emprego fixo, né?
Assis – Não, porque chegou uma hora em
que optei, apostando na cultura popular. O
estudo da cultura popular sempre foi muito
importante pra mim. Sempre, sempre fiz isso,
sempre me envolvi com a cultura popular. E
olhando prum lado e pra outro, notei – como
hoje ainda dá pra notar – que o País, os seus
dirigentes, em todas as esferas, não dão lá muita bola pra cultura popular. Não sabem esses
dirigentes que a cultura popular é a marca de
um país, a marca de um povo. É a “personalidade” de um país, sua identidade. Aí me envolvi mais ainda. Foi como Dom Quixote: não estou
fazendo nada mesmo, então vamos inventar...
J&Cia – Você fez trabalhos pra várias instituições...
Assis – Muitas. Pra Sesc... Me apresentei muito em palcos, fazendo palestras, basicamente
sobre cultura popular, embora pudesse fazer
sobre vários assuntos. Mas cultura popular
sempre foi o meu interesse. Para falar de cultura
popular você sempre faz um voo, uma viagem,
por outras facetas, como a cultura erudita... é
um tema muito amplo, por isso sempre me
interessou.
J&Cia – O Assis desse período era o quê?
Um poeta, um jornalista, um declamador, um
compositor. O que você era? Tudo isso e um
pouco mais?
Assis – Era um pedaço de cada coisa. Era,
não, sou um pedaço de cada coisa. A vida para
mim sempre foi um desafio. Sempre procurei
coisas na vida pra me ocupar e entender. Sempre tive a cabeça cheia de interrogações. Então, sempre procurei respostas para as minhas
indagações, às minhas perguntas. As respostas
que ninguém me dava fui buscar. Fui à pé, fui
entrevistar, com um gravadorzinho, às vezes
com um bloco de papel. Enfim, cruzei o Brasil
de cabo a rabo, como diria Luiz Gonzaga. Fui
pra fora, pra França, pra... e pra onde eu fosse ia buscar
a cultura
popular,
especialmente o Brasil perdido pelo mundo.
Então, achei lá nos alfarrábios de Portugal
muita coisa bonita relativa ao Brasil. Achei
nos alfarrábios da França muita coisa bonita
relativa ao Brasil. Achei discos que nunca
foram lançados aqui, nos seus originais.
Como de Geraldo Vandré, lá gravados e
que lá mesmo ficaram. Uma vez falei pra
ele, que duvidou. Sentado neste sofá, onde
estou, mostrei a ele. Geraldo se emocionou,
evidentemente.
Então, muita coisa tenho aqui. Por exemplo, mais de três mil discos só de músicas de
brasileiros gravadas em outras línguas. Tenho
milhares e milhares de folhetos de cordel, do
Brasil e de outros lugares. Inclusive de Portugal,
das suas origens. Fora outros milhares de livros,
de partituras, jornais e revistas a partir do final
do século 19, do Brasil inteiro. É por aí, pela
cultura popular, que se pode fazer o resgate, é
possível recompor, recontar a história de um
cidadão, de uma cidadã, de um país, de um
lugar qualquer.
J&Cia – Você aplicou nisso boa parte do que
ganhou na vida, não é? Até onde sabemos, não
considerava isso um gasto, mas uma realização
e um investimento. Tem ideia de quanto vale
esse acervo? Quantos itens são?
Assis – Aproximadamente 150 mil itens. É
muita coisa mesmo. E não me arrependo, absolutamente. O que comprei, está comprado.
O que comprei, ninguém comprou.
J&Cia – Você ganhou muito dinheiro pra
poder comprar tudo isso?
Assis – Eu trabalhava muito, né? Fui repórter
da Folha, do Estado, ocupei chefia no Estadão,
em vários lugares. Rádio, TV, revistas... assessoria de imprensa. Deixei a TV Globo a convite
do Quércia [Orestes Quércia (1938-2010),
governador de São Paulo de 1987 a 1991] pra
assumir a assessoria da Secretaria da Agricultura
do Estado. O secretário era um ex-prefeito
de Bauru, Tidei de Lima. Fui ganhando muito
bem, três ou quatro vezes o que ganhava na
Globo. Fiquei mais ou menos um ano, até
que o Estadão me chamou pra ser chefe da
editoria de Política. Fui pra lá ganhando mais
ainda.
Na época o editor era José Nêumanne
Pinto, paraibano como eu. Anda sumido. Desde
que fiquei cego nunca mais telefonou. Mas faz
parte, né? Quando perdi a visão, só perdi a visão
dos meus olhos. Mas estou inteiro. Continuo
falando direito, não esqueço as coisas, ando
− mas sozinho não dá... −, tá tudo na minha
memória. Sei escrever, é claro. Mas como não
posso escrever... Não sei escrever em braile.
O braile foi muito importante, mas agora não
mais. Principalmente pra alguém como eu, que
se mexeu tanto na vida.
J&Cia – Quando você ficou cego os amigos
desapareceram?
Assis – Olhe... gato, cachorro, papagaio... etc
etc etc. Até o macaquinho que havia ali no pé
de côco foi embora também. Ficou um aqui,
outro acolá. As pessoas mais queridas, pessoas
lindas como a minha filha Ana Maria. Devo
muita coisa a ela, por que não dizer: a vida.
J&Cia – Porque o seu apartamento aqui era
um centro de referência, não? Um intenso
vaivém...
Assis – Vinha gente do Brasil inteiro. Professores, estudiosos do México, da França, dos
Estados Unidos, de países aqui do Cone Sul.
Sempre abri as portas e sempre orientei a quem
pude orientar. Atendi a muitos estudantes de
jornalismo, de artes, de artes visuais... Vejam vocês, de artes visuais (risos)... Agora não dá mais
pra atender a ninguém porque não poderei
ajudar. Claro que sei mais ou menos onde estão
os discos, os livros, as partituras. Mas é o que
digo: mais ou menos. Não serei um orientador
rico de informações como antes.
J&Cia – Depois de tantos anos tendo você
como colaborador e amigo, sabemos que
você tem uma memória de elefante. A cegueira
reforçou ainda mais a sua memória?
Assis – Uma memória fantástica, uma carinha
maravilhosa e um corpinho dando sopa (risos).
Mas voltemos ao tema central dessa conversa.
Os seres humanos nasceram tortos desde
sempre. Desde que o homem desceu da árvore
foram surgindo pessoas que se arrastavam
no chão, pessoas mudas, surdas, cegas. Em
algumas sociedades essas pessoas deficientes
eram atiradas em precipícios, assassinadas
ainda bebês. Isso na antiga Roma, na velha
Grécia... Grécia, berço de Homero, um cego,
que deixou para a humanidade obras, pérolas,
como a Ilíada, a Odisseia, escritas séculos antes
de Cristo. Não é brincadeira, não. Ele escapou.
Até porque era de uma família abastada. Mas
o governo da época o exilou em Atenas. Aí
ficou meio chapado, ficou doido, e escreveu
aquelas obras.
Aliás, em Odisseia tem uma coisa muito
importante. O personagem, Ulisses, luta dez
anos até a vitória e volta pra casa disfarçado
de mendigo. Todos o davam como morto,
menos a mulher, que era a rainha, Penélope.
Durante todo esse tempo ela resistiu ao assédio
para que se casasse, dizendo que só faria isso
quando terminasse de tecer um sudário, mas
toda noite desmanchava o que tinha feito de
dia. Quando Ulisses voltou, ela não o reconheceu. Quem o reconheceu foi o cachorro, que
já estava velho e cego, e morreu em seguida.
Então, os cegos, mais do que outros, sempre
sofreram muito. E ainda sofrem.
J&Cia – Mas você conseguiu preservar a sua
memória e ela é uma luz pra você...
Assis – É, com certeza. Vejam bem: havia
essa desgraceira toda, deficientes sendo mortos por causa dessa sua condição. O tempo
foi passando até que em 1784, na França, o
rei Luís XVI criou o Instituto Real dos Meninos
Cegos de Paris. Em 1825, um menino chamado Louis Braille, com 16 anos de idade, criou
o sistema de leitura tátil que leva seu nome.
Nesse mesmo ano nascia no Brasil D. Pedro II.
O que tem a ver? Já vou contar. Em 1844, um
menino de dez anos, cego, de família abastada,
vai para a França estudar no instituto, volta seis
anos depois trazendo o sistema Braile, começa
a mostrá-lo a outras pessoas cegas no Rio de
Janeiro e a coisa vai evoluindo. D. Pedro assiste
a uma demonstração desse método de leitura
e em 1854 cria algo parecido com o que havia
na França: Real Instituto dos Meninos Cegos do
Rio de Janeiro. O instituto foi inaugurado em
dezembro daquele ano, mas sem a presença
do menino, que havia morrido em março,
aos 19 anos. O nome dele era José Álvares
de Azevedo. Em 1891 – portanto, logo após a
queda do Império −, o instituto ganhou outro
nome: passou a chamar-se Instituto Benjamin
Constant, que era professor de Matemática da escola.
O tempo
correu e o
IBC está lá até hoje.
J&Cia – Hoje, com toda a sua capacidade
produtiva, boa memória, capacidade de escrever, de acompanhar o mundo contemporâneo,
por que nada acontece, o que está faltando pra
você ter um trabalho?
Assis – Tá faltando muita coisa, que poderia
se resumir numa canetada do bem. Estão
faltando pessoas com decisão, que dessem
atenção às pessoas não só cegas, mas às pessoas portadoras de algum tipo de deficiência,
seja de nascença ou adquirida. Falta muita
coisa. Por exemplo: esse menino aí, Álvares
de Azevedo, foi o primeiro professor de cegos.
Isso poderia se multiplicar. Depois do instituto
lá no Rio de Janeiro, surgiu outro em Minas
Gerais, cujo nome não recordo; surgiu outro
aqui em São Paulo, acho que o Padre Chico.
Deve haver outros por aí.
Quando eu perdi a visão dos olhos, uma das
pessoas políticas com quem falei foi a Luíza
Erundina, deputada amiga, pessoa querida, minha conterrânea. Ela me recomendou ir a uma
instituição na praça da Árvore. Uma instituição
pequena, mas que não oferecia nada do que eu
precisava. Tinha muito jogo de dominó, xadrez.
A minha vontade é produzir, escrever, editar,
falar. Atualmente duas pessoas me ajudam.
Uma é Anna Clara da Hora, garota de 23 anos,
estudante de artes visuais, que tem uma paciência enorme em me ouvir – com ela escrevo
um ou dois textos diariamente para o blog,
com exceção dos finais de semana; e o Vito
Antico, jornalista recém-formado pela PUC, que
estagiou no meu Instituto Memória Brasil, com
minha orientação. Fechei o IMB como entidade
cultural e sem fins lucrativos – até porque era
sem fins lucrativos mas eu só pagava; então,
quando só tira e não repõe, complica. O IMB
ficou só na memória e o acervo ficou aqui,
onde sempre esteve. Falta isso: mais atenção
ao cego. O último censo do IBGE, que tem já
11 anos, indicava cerca de 600 mil cegos totais
no País, mais de seis milhões de pessoas com
visão reduzida. Mas é censo antigo e quem diz
que fazem um novo?
J&Cia – Tem ideia de quantos deficientes
são no total?
Assis – Segundo esse mesmo censo, 46
milhões de brasileiros tinham então algum tipo
de limitação, de deficiência.
J&Cia – E o que existe de informação pra
essas pessoas?
Assis – Nada! Elas estão no canto da parede,
como eu fiquei quando recebi o laudo. Só pensava em me matar. Posso falar isso agora. Muitos
na mesma condição que eu estão no canto da
parede, chorando ou se matando. Não aparece
em lugar nenhum porque suicídio não é notícia;
especialistas dizem que esse tipo de noticiário
incentiva mais suicídios. Só sei o seguinte: é
muito sério o problema de uma pessoa sem
visão. Qualquer tipo de deficiência é ruim, mas
a falta de visão dos olhos é uma coisa danada.
Tudo na vida é feito para o visual. Quando você
perde isso, tem que se refazer, tem que se
reestruturar, se reinventar. Mas é difícil para um
invisível se reinventar. Eu me tornei uma pessoa
invisível, infelizmente. (chora, emocionado) Somos humanos, temos o que pensar. A cabeça
está boa, mas tenho a certeza de que muitas
cabeças de cegos não estão boas. A propósito,
sabem quem são? Procurem. Não vão achar. Os
cegos estão escondidos. Escondidos pelo pai,
pela mãe, pela irmã, pela família, engordando,
sem meta, sem objetivo algum. Essa é a história.
Eu, apesar de tudo, sou um privilegiado. Estou querendo trabalhar há muito tempo. Quero
voltar ao rádio, à televisão. Posso fazer isso
com a maior naturalidade do mundo. Minha
memória é boa, não preciso de script. Basta
dar uma geral: olha o assunto é esse. Vamos
fazer? Vamos fazer... No rádio, na televisão...
J&Cia – Você teve um programa de rádio
que foi líder de audiência, não foi?
Assis – Na Rádio Capital. Durante sete anos
apresentei um programa chamado São Paulo,
Capital Nordeste. Líder de audiência em São
Paulo. E era AM, ia pro Brasil inteiro. Levei cerca
de quatro mil artistas, jornalistas, poetas, escritores, atores... todo mundo participou.
J&Cia – Você acha que poderia contribuir
com isso, de algum modo? Acabar com essa
invisibilidade, essa ausência? O que teria de
ser feito?
Assis – Sim! Visão Cidadã! Esse será o título
do programa de televisão e rádio que apresentarei em breve... (risos) Não é possível que não
apareça alguém pra me chamar pra fazer um
negócio desses. Esse é um projeto que já existe
há algum tempo, no papel... Tenho já 13 episódios escritos, bonitinhos, com personagens
sendo entrevistados, por mim e por uma amiga
jornalista, Cilene Soares. Ela é uma jornalista
muito boa e uma produtora excepcional. É
isso aí, vamos fazer!
Olha aí, pessoal! É possível fazer! Por quê?
Pra mostrar a minha cara feia, a minha fala?
Não, não! É exatamente pra mostrar as lacunas que há na nossa sociedade em relação ao
cidadão que está ali atrás, esquecido, quase
como se fosse um cidadão de segunda classe.
J&Cia – Fale um pouco desse programa.
Assis – O ponto de partida, o gancho, é
o deficiente visual, o cego. Sempre vamos
fazer uma viagem pelo mundo, pela história,
pelo passado, mostrando histórias de cegos
incríveis, mas vamos trazer pessoas portadoras de outras deficiências. Então a ideia é dar
visibilidade a essas pessoas, fazê-las mostrar a
importância de ser cidadão, de ser cidadã neste
País que não dá bola pra cultura popular. Mas
é obrigação do governo, seja qual for a esfera
– municipal, estadual ou federal −, patrocinar e
abrir espaços para mostrar esse problema. Não
tenho conhecimento que haja ou tenha havido
algum momento no mundo um programa de
televisão mostrando a dificuldade do cego.
No Brasil, nem pensar... Visão Cidadã. Já fiz
música pra ele. E vamos apresentar sempre
um filósofo, um estudioso, um professor, um
juiz, um advogado, um jornalista... Por que?
Porque a cegueira é democrática. Ela ataca
a todos. É que nem essa “gripezinha” aí: pega
todo mundo. Mas vamos direcionar isso para
o lado positivo da vida, porque todos nós precisamos viver, e viver bem. Não nascemos pra
sofrer, não nascemos pra chorar o tempo todo.
Chorar faz parte, pra lubrificar os olhos. Então,
é preciso se mexer nesse sentido.
Eu falei desse menino aí, Álvares de Azevedo... Lá em 1749, havia em Portugal um rei chamado D. João V. Ele nasceu em 1689 e morreu
em 1750. Um ano antes de morrer ele chancelou a Irmandade do Menino Jesus dos Homens
Cegos de Lisboa. O que os cegos dessa irmandade faziam? Vendiam impressos da época principalmente folhetos de
cordel. Essa era uma forma de o cego não se
perder na vida nem nas esmolas. Uma maneira
de eles ganharem a vida com o próprio trabalho, vendendo folhetos sem pagar impostos.
Isso é uma coisa para se lembrar e replicar, mas
não se replica. Esse é o problema. Exemplos do
século 18 em Portugal, do século 19 na França
e no Brasil, que não se replicam.
J&Cia – Acompanhamos o universo das
empresas, onde parece que essa questão está
bem avançada. Há programas de inclusão, leis
que obrigam a contratação de pessoas com
deficiência. Na área privada esse é um processo crescente. E na área pública?
Assis – Não sei... Na nossa área, acho que a
Jovem Pan tem um cego... Não sei mais onde
tem, estão todos escondidos. Ninguém fala de
cego. Existe a lei de inclusão, lógico, de 2015.
J&Cia – Existe a lei, mas ela é aplicada?
Assis – Ela não se movimenta. Um amigo,
Luiz Guerreiro, me levou para o Laramara, uma
entidade sem fins lucrativos. Ele sumiu – onde
estiver, um abraço... Ele me levava uma vez por
semana. Não me falaram quanto tempo eu ia
ficar lá. Teve uma festa de fim de ano e nunca
mais ninguém me chamou. Supus que aquilo tivesse sido um encerramento, mas ninguém me
avisou. Três meses depois, alguém em nome
da entidade começou a me ligar pedindo ajuda
financeira. Falei: “Pôxa, estou desempregado.
Não tenho fonte de renda”. Ligou várias vezes.
Então, o que falta? Uma orientação maior, até
pra aposentadoria. Eu estava completamente
perdido; se morresse, ninguém ia perceber. É
uma pasmaceira total. Essas entidades também
precisam levar a sério esse lado. Tem também
a Dorina Nowill, que não conheço mas dizem
ser muito boa.
O que eu quero com esse projeto de rádio
e televisão é exatamente mostrar que invisíveis
podem ser vistos. E que cego pode ver
J&Cia – Como é a sua rotina hoje, o seu
dia a dia?
Assis – Costumo dormir por volta das 22h,
que é quando o sono bate. Acordo por volta
de 1h, 2h, ligo o rádio; canso, aí ligo o aparelho
de audiolivros. Quando o galo canta na minha
memória, aí pelas 5h, como umas frutas, ligo
o rádio de novo e vou fazer uma hora de ginástica. Depois, cuido do meu asseio e tomo
o café da manhã. Fico na sala até começar o
jornal na TV. Tem dias que faço o primeiro texto
para o blog com o Vito por volta das 11 horas.
Após o jornal, falo com a Aninha e faço mais
dois textos. Há dias em que faço até seis textos.
Tudo por telefone, ditado. Mas eu dito rápido,
com pontuação. Sai bonitinho. Faço poemas,
gravo... Tenho um amigo, Darlan Zurc, intelectual, escritor, historiador e quadrinista, que
grava pra mim, põe música e solta na internet.
Aos sábados e domingos tenho outro companheiro, colaborador, o Carlos Silvio, que faz
o programa Paiaiá na webrádio Conectados...
Minha rotina é essa. Às vezes vou a Portugal,
Espanha, Roma, vou pra Rússia... Não quero
nem saber, vou fazendo as minhas viagens.
Nessa pandemia, escrevi e publiquei quatro
folhetos de cordel, que têm dados atualíssimos,
até hoje. É como se fosse uma recontagem
poética. Também concluí a adaptação para
teatro de Os Lusíadas, de Camões. É uma ópera
popular. Não divulguei isso ainda, mas está na
hora de começar a falar, porque no ano que
vem, 2022, vamos comemorar os 450 anos do
lançamento da primeira edição de Os Lusíadas
em Portugal. Está prontinha.
Estou também me envolvendo com a história de Maria Firmina dos Reis, que nasceu no
Maranhão em 1822 e morreu cega, em 1917, na
casa de uma amiga. Primeira professora negra
no Brasil, primeira romancista e poeta a publicar
livro e poesia no Brasil. Outra cuja história me
interessa muito é da primeira soldada brasileira,
a baiana Maria Quitéria, que nasceu em 1792 e
morreu em 1853. Ela participou das lutas pela
independência do Brasil, cuja última grande
briga foi na Bahia. E assim vai.
O maior exemplo de personagem deficiente
é o corcunda de Notre Dame, imortalizado por
Victor Hugo. Shakespeare também tem personagem deficiente. Machado de Assis, pouca
gente sabe ou lembra, ficou cego durante uns
meses, tinha diabetes e era epilético.
Voltemos ao descolamento de retina. Descolamento de retina não tem reposição, transplante, não tem conserto. Perguntei a vários
especialistas, muitos: o que é isso? Você pode
sofrer uma queda e a retina cair; levar uma
pancada; entrar num táxi e estar cego ao descer; dormir e acordar sem enxergar nada. Isso
tudo me foi dito várias vezes, repetidamente.
Eles não conseguem explicar, não existe uma
causa só. Também não tem cura, porque não
é doença. Existem centenas de males que
atacam os olhos, mas esse é pra gente grande
(risos). Você cai e tem que se levantar. Estou me
levantando, fazendo poesia, cordel, ouvindo
muitos livros. Livros de domínio público, porque
os livros novos ninguém pode botar na internet.
Esses eu precisaria de alguém que lesse pra
mim. Sinto saudades da leitura, de ter um livro
na mão. Isso nunca mais terei.
Na Bíblia há muitos personagens cegos. Jesus vai lá, esfrega terra nos olhos do camarada
e ordena: “Abra os olhos e veja!”. Eu, hem? Não
existe prova disso. Deus que me perdoe, eu
blasfemando...
A cegueira está presente em todo canto,
mas o cego é invisível, está na hora de o
Brasil acordar, de as pessoas acordarem, de
as pessoas serem mais doces com outras, as
discriminações existem, meu Deus do céu!
Quando cheguei a São Paulo, em 1976, pensei
que era brincadeira quando gozavam da minha
cara, do meu sotaque. Eu ria. Agora sei que era
discriminação. Contar piada de cego, de aleijado, de nordestino, sempre teve... Agora é que
a vaca tosse, que a barra pesa. Aconteceu aqui
na minha casa mesmo. O camarada botou o pé
na minha frente e saí catando coquinho, quase
enfiei a minha fuça na televisão. E esse era um
amigo: “Ah, foi sem querer!”. Um tempo antes
fomos tomar um caldo de cana na feira aqui
perto, ele se afastou, conversando não percebi
que tinha tirado minha mão do ombro dele e
de repente, pa! – dei com a cara no poste. Os
óculos escuros me feriram. Por que isso, cara?
Acontece, infelizmente acontece. Histórias
incríveis, algumas até cabeludas, de que nem
vale a pena falar.
A discriminação mata. Encolhe, deixa a gente
pequenininho. Somos todos iguais perante a
lei de Deus. E a dos homens também, tá lá na
Constituição. Todos os direitos para cegos e
portadores de deficiências!
J&Cia − Quais são os grandes cegos da
nossa história?
Assis – Estou muito bem acompanhado. Estou com Homero, Camões, Patativa do Assaré,
Luiz Gonzaga (em 1961 ou 1962 ele perdeu a
visão num acidente de carro no Rio de Janeiro),
Maria Firmina dos Reis, Cego Sinfrônio, Cego
Oliveira, Cego Aderaldo (foi o mais importante
violeiro, cantador e repentista cego que o Brasil
já teve), Titulares do Ritmo, um grupo musical
constituído só de cegos. Aliás, quero levar músicos como esses todos para o rádio, a televisão,
fazer festivais de música, de literatura, de poesia
de cegos. Ninguém fez! Por que não vou fazer?
Fiz o maior encontro de repentistas do Brasil,
mais de 100 deles. Primeiro Campeonato
Brasileiro de Poetas Repentistas, em 1997, que
rendeu um belíssimo CD duplo.
Quero trazer à
tona, à vida, as pessoas que estão escondidas,
sem quererem. Há caminhos a trilhar. A cegueira não é o fim. Qualquer deficiência não pode
ser o fim da pessoa. Até o corcunda de Notre
Dame apaixonou-se por uma bela. Quer dizer,
existe alma num corpo defeituoso. Há coisas
boas também na memória de um cego. Aliás,
Ulisses, lá na Odisseia de Homero, dizia: “No
meu peito há um coração que suporta a dor”.
Então, há caminhos, e é esse que eu quero
percorrer.