Marco Haurélio e Némer Salamún |
Marco Haurélio é um baiano nascido na roça. No sudoeste da
Bahia. Ele plantou e, agora, está colhendo os frutos da cultura, da vida e da
história. Fugindo à regra nordestina, das quebradas lá de longe, ele aprendeu o
beabá desenvolvendo o intelecto. Intelecto é aquela coisinha, massa cinzenta,
que carregamos no cérebro. E os seus pais, Valdi e Maria, fizeram tudo para lhe
dar um canudo uma beca. E, assim, Marco Haurélio Fernandes Farias entrou na
universidade m Caetité (BA) e, quatro depois, licenciado em Letras, fez sorrir
seus pais. E o mundo abriu-se para Marco. Abriu-se, ele continua lutando
apaixonadamente pela história do Brasil, pela cultura popular, pelas coisas da
gente. Eu conheci muitas pessoas importantes da área da cultura popular como
Luís da Câmara Cascudo ou Mário Souto Maior. Eu tenho certeza de que Cascudo e
Souto Maior orgulhar-se-iam do Marco como eu.
Assis – Marco, você andou pelo mundo todo, ou quase. Você esteve ausente? Tá
bom, eu sei onde você esteve, mas os leitores do blog não sabem. Diga. Onde
você esteve ultimamente.
Marco – Estive em Sharjah, nos Emirados Árabes
Unidos, a convite do Institute for Heritage, ou melhor, do presidente desta
importante instituição do Oriente Médio, o Dr. Abdul Aziz Al-Mussalam.
A – E você foi o que lá, nesse lugar
tão distante?
M – Fui contar histórias de nossa
tradição oral num evento que acontece por lá há 18 anos, o International
Narrator Forum, que reúne narradores e pesquisadores de várias partes do mundo.
A – O que se fez mais presente lá, a
cultura popular ou a erudita? Ou as duas se juntaram?
M – As duas estão tão mescladas que não
dá para saber onde termina uma e começa a outra. Vi grupos de música
tradicional, ouvi a voz do muezzin,
convocando os fiéis para a mesquita, e lembrei do nosso vaqueiro na solidão dos
ermos nordestinos. Li sobre lendas e mal-assombros muito próximos dos nossos
mitos, como o camelo sem cabeça, em tudo semelhante à nossa mula-sem-cabeça.
Vi, no Museu da Civilização Árabe, artigos em couro que lembravam a civilização
do couro do Nordeste, evocada por Capistrano de Abreu. Confesso que me senti em
casa.
A – Ao pisar o solo árabe, você
lembrou-se de quê? Das Mil e Uma Noites?
M – As Mil e Uma Noites são a nossa principal referência cultural em
termos de literatura, abrangendo a vastidão do mundo islâmico, que vai da Índia
ao Marrocos. Lá, a arquitetura, os trajes, as saudações, a devoção remetiam aos
velhos contos narrados por Xerazade, mas vai muito além disso. Há todo um
caudal de tradições que dialogam com os nossos costumes, com o Brasil que, irresponsavelmente,
estamos deixando morrer.
A – O real e o imaginário se confundem
mais em Sharjah do que em outro lugar que você conhece?
M – O trabalho de recolha e catalogação
feito pelo Dr. Abdulaziz Al-Mussalam, entre os povos do deserto, revelou um
mundo muito rico, em que as superstições, os seres fantásticos impregnam a vida
cotidiana. Na capital, isso não está tão presente, mas, uma coisa é certa:
Sharjah é um exemplo de país em que a modernidade e a tradição convivem em
perfeita harmonia.
A – Estamos falando de cultura popular.
Provocado, o que você viu no mundo árabe semelhante ao local em que você
nasceu?
M – Muita coisa em comum. O fato de as
mulheres usarem lenço no sertão é uma herança do mundo árabe. O medo de
criaturas que habitam nas profundezas da caatinga, assombrando árvores como
juazeiro, umbuzeiro e gameleira é parecida com uma lenda de lá, de uma
tamareira assombrada. Lá, tem um camelo que leva embora as pessoas ruins num
saco que traz entre os dentes, assim como nós temos o velho do saco ou velho do
surrão. E, na música, embora não saiba nada de árabe, conversando com pessoas
de lá, descobri que os temas eram quase sempre amorosos, líricos, e me lembrei
de Teófilo Braga, etnógrafo português, que estudou as cantigas de amor
portuguesas, as aravias, assim chamadas, pois tiveram origem entre os povos do
deserto que conquistaram e deitaram raízes na Península Ibérica.
A – A distância é um ponto de vista.
Você encontrou na Arábia o Brasil, Marco?
M – Claro. O Brasil recebeu, dos povos
de cultura islâmica, além de várias palavras incorporadas para sempre ao nosso
vocabulário, crenças arraigadas na alma de nosso povo. O saci preso na garrafa
com o fito de propiciar riqueza deriva do djin do folclore árabe, o gênio das
lâmpada dos contos das Mil e Uma Noites.
Outra ligação que merece ser ressaltada tem a ver com a culinária,
principalmente a nordestina, carregada de tempero, saborosa como mais não pode
ser. A história explica isso, pois, além de Portugal ter sido dominado pelos
mouros, tempos depois, no período de expansão marítima, os nossos patrícios
foram os primeiros povos do Ocidente a conquistar a região, usada como
entreposto em suas viagens à Índia.
A – O que te fez aceitar um convite
para ir para um lugar tão distante?
M – Na Bienal do Livro de São Paulo,
por indicação da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, participei de
uma mesa redonda sobre contos folclóricos com o Dr. Abdulaziz, representante de
Sharjah, país homenageado no evento. Dois dias depois, numa cerimônia
reservada, recebi, das mãos do Dr. Addulaziz, uma medalha de honra por meu
trabalho de pesquisa e salvaguarda da tradição oral brasileira. O convite foi
feito nesse mesmo dia, 6 de agosto, uma segunda feira.
A – Marco, fala-se muito da mulher
árabe. O que você viu por lá?
M – Lá, as mulheres
ocupam cargos importantes, dirigindo entidades, na coordenação de importantes
eventos. Lá estive com minha companheira Lucélia, também convidada pela
organização do Forum, para ministrar uma oficina de xilogravura para crianças.
Lá esteve ainda um casal de amigos, Fabio Lisboa e Bianca Tozato, também
representando o Brasil. Sentimo-nos muito à vontade, como eu disse antes, estávamos
em casa.
A – Então, você se sentiu em casa.
Temos muito a ver com o mundo árabe. E a Donzela Teodora, você a encontrou?
M – A Donzela Teodora, Simbad, Ali
Babá estão presentes na fala cantada de nossos irmãos. A Donzela Teodora é a
Douta Simpatia das Mil e Uma Noites,
a mulher sábia que foi imortalizada em nosso cordel por Leandro Gomes de Barros
e na voz de Elomar. Afinal de contas, o nosso Brasil, repositório de culturas,
é também filho das Arábias. Salam Aleikum!
A – Dá pra resumir tudo isso numa
estrofe em decassílabo?
M – O Brasil, um país continental,
Traz na veia o sangue de mil povos,
Dos nativos e de outros bem mais novos,
Integrando o concerto universal.
Das Arábias herdou um cabedal,
Reunido ao cantar do lusitano,
Índio negro, francês, bantu, cigano,
Que atravessam minh’alma como açoites,
Como os contos das Mil
e Uma Noites,
Que eu celebro em martelo alagoano.
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